2017: O ANO DA INDIFERENÇA DEMOCRÁTICA

28/12/2017

Serei franco às minhas leitoras e leitores: 2017 foi um fracasso quanto ao aperfeiçoamento dos espaços democráticos globais. Pior: conseguiu acentuar e aprofundar as diferenças humanas como símbolos da violência, de negação do Outro, de posturas egoístas. Representa tudo o aquilo que não se deseja como projeto de civilização. No entanto, apesar de todos esse cenário de destruição global, nada nos comove, nada nos transforma. A apatia se tornou nosso dia-a-dia. Nenhuma constrição ética[1] é capaz de nos constranger a agir contra essa correnteza de desumanização.

Na América do Sul teve-se uma excelente oportunidade de uma “virada cultural e constitucional” na qual traria exemplos próprios para que houvesse a integração regional, bem como atitudes em prol do desenvolvimento da vida em larga escala, inclusive interespécies. Infelizmente, o que se percebe é o exato oposto. No Peru, indulto a Alberto Fujimori. No Chile, os saudosos de Pinochet conseguem a vitória presidencial. Na Argentina, com todo o Povo[2] nas ruas, a corrupção e os “valores de mercado” impuseram novas regras para a aposentadoria. No Brasil, sob iguais condições, desrespeitou-se as regras constitucionais, retirou-se uma Presidenta democraticamente eleita e assumiu um governo no qual age segundo a vontade mercantil. Propostas como a reforma da previdência e a trabalhista são exemplos claros dessa conjugação de esforços em contrariedade ao Estado Democrático de Direito. Talvez, hoje, vive-se o que Casara chama de “Estado Pós-Democrático”[3].  

Nos Estados Unidos, pratica-se outro jogo. Inicia-se a prática do “bullying internacional”, desestabilizando qualquer esforço histórico empreendido para consolidar a Democracia, a Liberdade, a Igualdade, a Fraternidade, a Justiça. Na última assembleia geral, a ONU rejeitou as declarações do Presidente Norte-Americano Donald Trump, o qual afirmou que se não houvesse votação favorável sobre o reconhecimento de Jerusalém como capital de Israel, os Estados Unidos interromperiam a contribuição de 250.000.000,00 (duzentos e cinquenta milhões) de dólares aos programas e ações promovidas pela ONU[4]. Outros temas igualmente complexos como o veto presidencial acerca da entrada dos imigrantes – validada pela Suprema Corte -, bem como a saída desse Estado da Cúpula de 2017 sobre os efeitos das Mudanças Climáticas agrava tão somente a instabilidade dos cenários democráticos globais.

Na Europa, a Grã-Bretanha insiste na saída da União Europeia, embora não seja uma decisão unanime e já gera fortes sinais de descontentamento e violência. Sabe-se que esse é um projeto ousado, nos mesmos moldes como se estabeleceu em 2008 a União de Nações Sul-Americanas – UNASUL -, porém não se justifica a atitude sem que haja efeitos colaterais aos demais países. Mais: por enquanto, o que se constata, seriam as pesadas cláusulas (econômicas, especialmente) de saída da União Europeia por parte do Reino Unido e como essa condição afeta diretamente o cotidiano desses povos.

O tema da Sustentabilidade[5] ambiental também se torna cada vez mais precária nas terras da Europa. As principais decisões que deveriam orientar a última Cúpula sobre as Mudanças Climáticas foram adiadas para o ano de 2018 porque não houve consenso. A tragédia da cidade de Mariana não tem qualquer solução própria – seja às pessoas ao à natureza – para reverter os danos cometidos. A excessiva postura neoextrativista[6] na Bolívia, Equador e Amazônia não cessam diante das sanções legais e constitucionais. Novamente, a Sustentabilidade deixa de ser atitude para uma vida digna e saudável para ser fruto de uma mentalidade ideológica hipócrita[7]

A Coreia do Norte insiste na sua força bélica e representa ameaça devido às sanções recebidas pela ONU, bem como entra em conflito direto com os Estados Unidos. Nessa “demência beligeferante”, cujos resultados já se comprovou historicamente, a paz se torna apenas uma ideologia descompassada com a realidade das pessoas, infelizmente.    

Diante de todos esses fatos, constata-se que os pressupostos do ambiente democrático, tais como a alteridade e reconhecimento, são ignorados e se assume (apaticamente) os riscos de sua própria destruição. Ao invés de libertar, de emancipar, de empoderar, de oportunizar a sua autocritica, a Democracia, aos poucos, consolida a sua sobrevida pelo autoengano. Tudo o que faz é odiar a própria Democracia[8]. Faz parte do jogo democrático a participação, o engajamento à convivência – muito embora existam dificuldades. Todavia, é necessário, nesses casos, identificar quais são os limites deste jogo a fim de consolidar seus objetivos mais primários e não enaltecer paixões, ressentimentos capazes de fomentar a intolerância contra qualquer opinião divergente na qual destrua os espaços democráticos globais.

Por esse motivo, não obstante a Democracia permita a manifestação da indiferença, da intolerância, da violência (moral, psicológica, simbólica), dos discursos de ódio, esses se tornam vetores da sua autofagia. Ao se suplantar a diferença como aspecto contingencial da vida de todos os dias e enaltece-la como fonte de segregação sócia, a Democracia pode, sim, eliminar a sua própria existência.

A força vital da Democracia, de seus significados, de seu sentido formal presente nas leis e instituições – governamentais e não governamentais – de sua orientação como estrutura da paz e da liberdade reside na pluralidade de diferenças de valores, de culturas, de tribos urbanas ou indígenas, das vozes silentes, marginalizadas, ignoradas, rejeitadas, abandonadas. Nem sempre o consenso democrático, ao sinalizar ações comuns para que haja paz nas relações humanas (e além), sintetiza a vontade de todos. Nisso, percebe-se a sua incompletude. A Democracia existe para que todos participem, todos opinem, todos sejam ouvidos. A Democracia pertence oportuniza aos “invisíveis” – locais e globais -, aos vulneráveis, a chance de reivindicarem o seu status existencial negado por tantos.

A indignação[9] e a impaciência são valores caros ao ambiente democrático. A primeira não se satisfaz com as misérias humanas. A segunda não aceita a passividade deste cenário se repetir ano após ano. Todo agir livre na Democracia pressupõe responsabilidade, pressupõe o enfrentamento daquilo que nos constrange, que põe em dúvida a moral pela avaliação ética. Afinal, é a partir desse tempo de maturação entre o ideal e o real que as utopias democráticas se corporificam, ou seja, o improvável se corporifica e demonstram a saída dos domínios da impossibilidade. As realidades de injustiça, de corrupção, de ausência da solidariedade humana, aos poucos esmaecem, e se tornam em fontes de convivência digna e sadia.

Essa, talvez, seja a principal lição de 2017, um ano em que a indiferença se fez presente em todos os momentos. Ao se constatar a legitimação de golpes contra o Estado Democrático de Direito, contra os Direitos Humanos, contra a Sustentabilidade, deve-se erguer a voz, a vontade dos povos e dar corpo às nossas mais profundas utopias para que o ano de 2018 seja um campo fértil em prol da sadia convivência humana e o desenvolvimento de toda a cadeia da vida.   

 

 [1] “[...] Em geral, as éticas opressoras geram um subproduto: a hipocrisia. A distância entre o discurso e a realidade, entre o que uma pessoa diz que faz e aquilo que realmente faz. A ética legalista não fugiu à regra, e esse fato apenas acelerou e fortaleceu a reação das novas posturas éticas. Não queriam buscar apenas maior liberdade, mas também autenticidade”. CAVALCANTI, Nicolau da Rocha. A beleza humana: histórias e reflexões ética e estética. São Leopoldo, (RS): UNISINOS, 2013, p. 66.

[2] “[...] o povo não é apenas – de forma indireta – a fonte ativa da instituição de normas por meio de eleições bem como – de forma direta – por meio de referendos legislativos; ele é de qualquer modo o destinatário das prescrições, em conexão com deveres, direitos e funções de proteção. E ele justifica esse ordenamento jurídico num sentido mais amplo como ordenamento democrático, à medida que o aceita globalmente, não se revoltando contra o mesmo”. MÜLLER, Friedrich. Quem é o Povo? A questão fundamental da democracia. Tradução de Peter Naumann. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 49.     

[3] “Por ‘Pós-Democrático’, na ausência de um termo melhor, entende-se um Estado sem limites rígidos ao exercício do poder, isso em um momento em que o poder econômico e o poder político se aproximam, e quase voltam a se identificar, sem pudor. No Estado Pós-Democrático a democracia permanece, não mais com um conteúdo substancial e vinculante, mas como mero simulacro, um elemento discursivo apaziguador”. CASARA, Rubens. R. R. Estado pós-democrático: neoobscurantismo e gestão dos indesejáveis [Versão Kindle]. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017, pos. 192-195.

[4] Disponível em: http://www.bbc.com/portuguese/internacional-42449771. Acesso em: 28 de dez. 2017. 

[5] “A Sustentabilidade não pode alimentar um tempo inexistente, mas contribuir, estimular, oportunizar a criatividade e a práxis para a melhoria do conhecimento e a amplitude da participação. Insisto: Sustentabilidade não é expressão de salvação. Ninguém salva ninguém, sob o ângulo do verbo deificar. Veja-se: é a cumplicidade, o esclarecimento conjunto acerca daquilo que se vivenciou historicamente pela atitude desmedida do Homem que a Sustentabilidade se torna, mais e mais, pressuposto de outra convivência entre humanos e não humanos”. AQUINO, Sérgio Ricardo Fernandes de. (Contra o) eclipse da esperança: escritos sobre a(s) assimetria(s) entre o Direito e Sustentabilidade. [recurso eletrônico]. Itajaí, (SC): Editora da UNIVALI, 2017, p. 141.

[6]El punto de partida de esta cuestión radica, en gran medida, en la forma em que se extraen y se aprovechan dichos recursos, así como en la manera em que se distribuyen sus frutos. Por cierto que hay otros elementos que no podrán ser corregidos. A modo de ejemplo, hay ciertas atividades extractivistas como la minería metálica a gran escala, depredadora en esencia, que de ninguna manera podrá ser “sustentable”. Además, un proceso es sustentable cuando puede mantenerse en el tiempo, sin ayuda externa y sin que se produzca la escasez de los recursos existentes. Sostener lo contrario, aunque se sostenga esta posición en una fe ciega en los avances tecnológicos, es practicar un discurso distorsionador. La historia de la región nos cuenta que este proceso extractivista ha conducido a una generalización de la pobreza, ha dado paso a crisis económicas recurrentes, al tiempo que ha consolidado mentalidades “rentistas”. Todo esto profundiza la débil y escasa institucionalidad democrática, alienta la corrupción, desestructura sociedades y comunidades locales, y deteriora gravemente el medio ambiente. Lo expuesto se complica con las prácticas clientelares y patrimonialistas desplegadas, que contribuyen a frenar la construcción de ciudadanía”. ACOSTA, Alberto. Extractivismo e neoextractivismo: dos caras de la misma maldición. Disponível em: http://www.cronicon.net/paginas/Documentos/paq2/No.23.pdf. Acesso em 20 de agosto de 2015.  

[7] Essa mentalidade “[...] se caracteriza pelo fato de que, historicamente, tenha a possibilidade de desvendar a incongruência entre suas ideias e suas condutas, mas, ao invés de o fazer, oculta estas percepções, em atenção a determinados interesses vitais e emocionais”. MANNHEIM, Karl. Ideologia e utopia. Tradução de Sérgio Magalhães Santeiro. 4. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1982, p. 219.

[8] “[...] A vida democrática torna-se a vida apolítica do consumidor indiferente de mercadorias, direitos das minorias, indústria cultural e bebês produzidos em laboratório. Ela se identifica pura e simplesmente com a ‘sociedade moderna’, que ela transforma ao mesmo tempo em uma configuração antropológica homogênea”. RANCIÈRE, Jacques. O ódio à democracia. Tradução de Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2014, p. 43.  

[9] "É verdade, os motivos para se indignar atualmente podem parecer menos nítidos, ou o mundo pode parecer complexo demais. Quem comanda, quem decide? Nem sempre é fácil distinguir entre todas as correntes que nos governam. Não lidamos mais com uma pequena elite cujas ações entendemos claramente. É um vasto mundo, no qual sentimos bem em que medida é interdependente. Vivemos em uma interconectividade que nunca existiu antes. Mas nesse mundo há coisas insuportáveis. Para vê-las é preciso olhar bastante, procurar. Digo aos jovens: procurem um pouco, vocês vão encontrar. A pior das atitudes é a indiferença, é dizer 'não posso fazer nada, estou me virando'. Quando assim se comportam, vocês estão perdendo um dos componentes indispensáveis: a capacidade de se indignar e o engajamento, que é consequência desta capacidade". HESSEL, Stéphane. Indignai-vos! Tradução de Marli Peres. São Paulo: Leya, 2011, p. 21/22.

 

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