20 de novembro: um convite à discussão sobre branquitude

28/11/2016

Por Thula Pires - 28/11/2016

Depois de muita militância, os movimentos negros que se articulam, resistem e reexistem no Brasil conseguiram marcar no calendário de datas nacionais o feriado de Zumbi dos Palmares, como o “dia da consciência negra”. Para além das muitas discussões que essa data pretende manter na agenda política nacional, interessa-me hoje, destacar uma dimensão imprescindível para o avanço da luta antirracista: a discussão sobre branquitude.

Se você está estranhando o meu convite é porque provavelmente pouco se dedicou a acompanhar os debates sobre relações raciais e racismo no Brasil e/ou foi expropriado desse debate pelo racismo epistêmico que marca a universidade brasileira, desde a sua fundação e nas mais diversas áreas do conhecimento.

Pode-se entender a branquitude como “uma posição em que sujeitos que a ocupam foram sistematicamente privilegiados no que diz respeito ao acesso a recursos materiais e simbólicos, gerados inicialmente pelo colonialismo e pelo imperialismo, e que se mantém e são preservados na contemporaneidade” (SHUCMAN, 2014).

Trata-se, portanto, de identificar nas relações raciais entre os diversos grupos que compõem o tecido social brasileiro os processos de normalização de padrões de humanidade, respeito, cidadania, racionalidade e estética, bem como verificar em que medida esses processos determinam o outro, o periférico, o anormal, o imoral, o ilícito, o ilegal, a exclusão.

Essa investigação foi feita inicialmente por Alberto Guerreiro Ramos (em 1957), a quem devemos a primeira crítica negra mais incisiva à colonialidade do saber em terras brasileiras, de que temos conhecimento. Ao criticar o tratamento dado ao negro pela academia no Brasil, coloca pela primeira vez a branquitude e os brancos como objetos de análise teórica. Na mesma época, Frantz Fanon[1] (em 1952) e Albert Memmi[2] (em 1957) dedicavam-se também a evidenciar os efeitos do projeto colonial de base escravista na conformação da subjetividade e dos papéis sociais atribuídos a colonizadores e colonizados.

Nas palavras de Guerreiro Ramos (1995, p.220): Para garantir a espoliação, a minoria dominante de origem europeia recorria não somente à força, à violência, mas a um sistema de pseudojustificações, de estereótipos, ou a processos de domesticação psicológica. A afirmação dogmática da excelência da brancura ou a degradação estética da cor negra era um dos suportes psicológicos da espoliação”. Apesar de ter sido um modelo construído no processo de dominação colonial, as estruturas da colonialidade acabaram por consolidá-lo em nossas instituições e relações sociais.

A branquitude está menos relacionada à busca por uma essência branca e mais diretamente articulada aos complexos processos que marcam a noção de superioridade branca e que são histórica e socialmente determinados. Em alguns lugares, a origem terá papel preponderante sobre a cor da pele, em outros a representação nos espaços de poder confronta dimensões culturais, de modo que as categorias sociológicas de etnia, cor, cultura e raça se imbricam e de deslocam, a partir de contextos geopolíticos e temporais distintos, em permanente transformação.

A importância da discussão está evidenciada pelo fato de que essa chave de entendimento sobre o racismo desvela que as hierarquias raciais se sustentam, em grande medida, na crença generalizada de que o branco não é racializado. Tomar a brancura como padrão, como norma e como modelo de humanidade universalmente reconhecido faz com que as violências e falsos reconhecimentos promovidos em relação aos não brancos sejam justificadas e naturalizadas. Como diz Lia Schucman (2012), é preciso romper o pacto racista colocando o branco em questão ou como prefere dizer Maria Aparecida Bento (2014): romper com o pacto narcísico entre brancos que se estrutura na negação do racismo e desresponsabilização pela sua manutenção.

Assim como expõe Simone Nogueira (2014), trata-se de evidenciar as tensões entre a política de identidade colonial moderna, baseada na branquitude como único modelo de humanidade que historicamente reservou um lugar de privilégio material e simbólico para povos de aparência branca ou descendência europeia e impôs um lugar de inferioridade e desqualificação a diversos povos não brancos, entre eles, negros, indígenas e aborígenes.

Em lugar de perspectivas teóricas que não enfrentam o sistema de privilégios gerado pela branquitude e que ajudam a manter a “invisibilidade” do branco como ser racializado e a sobre-visibilidade dos não brancos a partir de sua racialização, pretende-se que nesse 20 de novembro os debates decoloniais, em especial aqueles produzidos na área do direito, passem a comprometer-se com uma dimensão tão constitutiva quanto desconsiderada de suas análises sobre a colonialidade, que é experiência do negro e do racismo.

Espera-se que a crítica decolonial seja apreensível em pretuguês e capaz de acessar as múltiplas realidades que formam a complexa Améfrica Ladina. Para isso, socorremo-nos de Lélia Gonzalez. Na crítica ao uso da linguagem como mecanismo de poder e da sua utilização para perpetuar hierarquizações racializadas, Lélia Gonzalez confronta os padrões de linguagem exigidos na academia, com o objetivo de explicitar o preconceito racial existente na própria definição da língua materna brasileira (CARDOSO, 2012). Lélia Gonzalez (1983) destaca a necessidade de afirmar o pretuguês, a mistura entre a língua herdada de Portugal e as referências linguísticas africanas que nos apropriamos.

Ainda que Gonzalez tenha feito referência expressa às influências africanas e portuguesa, a utilização do termo pretuguês aqui reconhece e agrega a riqueza e sonoridade das línguas indígenas e expressa a vontade de que as reflexões aqui expostas possam ser compartilhadas e acessadas pelas múltiplas experiências que compõem o tecido social brasileiro.

No texto A categoria político-cultural de amefricanidade, Lélia Gonzalez (1988) propõe uma maneira alternativa de compreender o processo histórico de formação do Brasil e da América. Ao eleger a noção de Améfrica Ladina como representativa das experiências que aqui se conformaram, Gonzalez redimensiona a importância da influência da cultura ameríndia e africana para produção e compreensão da realidade. Além da afirmação dessas pertenças, o termo ladino[3] desessencializa essas matrizes culturais, ao pressupor um processo de aculturação e os desafios do “não lugar” que se apresentam na dificuldade de integração dessas heranças e sujeitos à sociedade colonial.

Nesse sentido, em um dia que se propõe a reviver e memorializar a experiência de Palmares, chamamos para sentar à mesa com Aqualtune, Ganga Zumba, Dandara e Zumbi, outras pensadoras e pensadores brasileiros que, ainda que não tenham trabalhado sob esse “rótulo”, produziram reflexões decoloniais. É o caso de Lélia Gonzalez, Abdias Nascimento e Guerreiro Ramos, para fazer referência apenas a alguns.

A luta antirracista deve ser necessariamente uma luta contra o racismo, o sexismo, a heteronormatividade compulsória e para além do modelo de produção organizado na desumanização e descarte de seres humanos. Espera-se que a experiência intercultural da Améfrica Ladina, aberta às múltiplas formas de ser, estar e bem-viver, seja tomada em toda sua complexidade para desarrumar as fronteiras que estabelecem o centro e a periferia e garantir uma agenda de enfrentamento real contra as muitas colonialidades (do poder, do saber, do ser, da natureza, do gênero e etc).


Notas e Referências:

[1] O livro em que o autor trabalha essa questão é Peles negras, máscaras brancas. (FANON, 2008).

[2] Nesse sentido, ver análises de Memmi no livro Retrato do colonizado, precedido pelo retrato do colonizador. (1989).

[3] Outro autor que explora o conceito de ladino para retratar essa dificuldade de integração de indígenas e negros na colonialidade vivenciada no Brasil é Darcy Ribeiro (2006).

BENTO, Maria Aparecida Silva. Notas sobre a expressão da branquitude nas instituições. In Identidade, branquitude e negritude: contribuições para a psicologia social no Brasil. Maria Aparecida Bento [org.]. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2014.

CARDOSO, Claudia Pons. Outras falas: feminismos na perspectiva de mulheres negras brasileiras. 2012. Tese. PPGNEIM, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2012.

FANON, Frantz; DA SILVEIRA, Renato. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.

GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade. Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, n. 92/93, jan./jun., 1988.

________. "Racismo e sexismo na cultura brasileira." Luiz Antonio Silva, Movimentos sociais, urbanos, memórias étnicas e outros estudos, Brasília, ANPOCS (1983).

GUERREIRO RAMOS, Alberto. Patologia social do "branco brasileiro. In Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1995.

MEMMI, Albert. Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador. São Paulo: Paz e Terra, 1989.

NOGUEIRA, Simone Gibran. Políticas de identidade, branquitude e pertencimento étnico-racial. In Identidade, branquitude e negritude: contribuições para a psicologia social no Brasil. Maria Aparecida Bento [org.]. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2014.

SCHUCMAN, Lia Vainer. "Entre o “encardido”, o “branco” e o “branquíssimo”: raça, hierarquia e poder na construção da branquitude paulistana." Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2012.

________. Branquitude: a identidade racial branca refletida em diversos olhares. In Identidade, branquitude e negritude: contribuições para a psicologia social no Brasil. Maria Aparecida Bento [org.]. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2014.


thula-pires. . Thula Pires é Doutora em Teoria do Estado e Direito Constitucional (PUC-Rio) e professora da graduação e pós graduação na mesma instituição. . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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