1954-2024: 70 ANOS DA DEFENSORIA PÚBLICA NO BRASIL - os primórdios da Defensoria Pública no antigo Estado do Rio de Janeiro –

21/07/2024

Neste domingo, dia 21 de julho de 2024, comemora-se o transcurso dos 70 anos de promulgação da Lei nº 2.188, do antigo Estado do Rio de Janeiro, que é reconhecida como o marco fundacional não apenas da atual Defensoria desse Estado, mas também da própria Defensoria Pública nacional. Essa lei, que foi sancionada pelo então Governador Amaral Peixoto, criou os seis primeiros cargos de defensor público para atuação em Niterói, então capital do Estado do Rio e em algumas cidades do interior. Mas então, por que tal lei é tão importante para história da Defensoria brasileira?

Para compreender a relevância dessa singela lei é preciso resgatar um pouco da história dos serviços que, na época, ainda eram designados – em todo o país – pelo nome de “Assistência Judiciária”. O Artigo 141, § 35, da Constituição Federal de 1946, determinava que a União e os Estados deveriam prestar assistência judiciária aos pobres (necessitados), o que abrangia o patrocínio gratuito, em juízo, por advogado e a isenção de quaisquer despesas do processo. Esse direito foi regulado pela Lei Federal nº 1060/50. Essa lei estabelecia que, quando tal serviço não fosse prestado pelo poder público o juiz poderia designar um advogado dativo que era obrigado então a atuar sem qualquer contraprestação financeira, desempenhando um dever preconizado pela ética profissional, de caráter caritativo. É fato que em alguns Estados da federação o poder público já vinha prestando o serviço de assistência judiciária, através dos chamados “advogados de ofício”, conforme inclusive ocorria na esfera federal, na Justiça Militar, desde 1920. Na capital da República, ou seja, na cidade do Rio de Janeiro, desde 1948, havia sido aprovada uma lei que mudara o nome dos “advogados de ofício” para “defensor público”. Porém, tal lei estabelecia que esse seria o cargo inicial, de ingresso na carreira do Ministério Público. Ou seja, a função de defensor figurava não como uma atividade de cunho permanente mas sim uma simples etapa de passagem, enquanto se aguardava futura ‘ascensão’ ao cargo de promotor de justiça. Esse modelo, naturalmente, traduzia uma distorção, uma disparidade, pois o Estado não conferia tratamento de isonomia entre duas funções que – por lógica e por justiça – devem estar em posição de paridade e não de subalternidade: ou seja, a defesa e acusação num processo judicial. Porém, não se pode desconsiderar que tal modelo já apresentava como virtude a compreensão de que deveriam possuir ambas as funções estatais (promotor de justiça e defensor público) o mesmo regime jurídico funcional, distinto daquele dos demais funcionários públicos, usufruindo de idênticas prerrogativas funcionais, na medida em que integravam uma mesma carreira, como agentes políticos do Estado.

Porém cabe reconhecer que o modelo que veio a surgir e se desenvolver no antigo Estado do Rio de Janeiro era inovador, na medida em que esses cargos de defensor público, criados pela lei de 21 de julho de 1954, eram cargos isolados de caráter permanente, quer dizer, não estavam inseridos como simples fase transitória na carreira do MP. Obviamente que apenas os seis cargos originariamente criados em 1954 não eram suficientes para atender a necessidade do serviço de assistência jurídica em todas as cidades do antigo Estado do Rio. Assim, nos lugares onde não havia defensores, os juízes continuavam tendo que nomear advogados particulares conforme preconizava a Lei Federal que regia a Assistência Judiciária. Para preencher tal lacuna, nos anos seguintes, sucessivas leis aprovadas pela Assembleia Legislativa do Estado criaram novos cargos de defensor público para atuação nas diversas Comarcas do interior, até atingir o número de 50 em meados dos anos sessenta.  Todavia, na cidade do Rio de Janeiro, que após a transferência da capital pra Brasília, em 1960, tornou-se o Estado da Guanabara, continuou em vigor aquele modelo distorcido, em que o cargo de defensor público era simples cargo de ingresso na carreira do Ministério Público.

O fato histórico inequívoco é que aqueles pioneiros defensores públicos fluminenses foram então os artífices e protagonistas de um modelo peculiar do serviço de Assistência Judiciária que mais tarde passaria a ser denominado nacionalmente – na Constituição Federal de 1988 – de Defensoria Pública, com características de simetria e paridade com as demais carreiras jurídicas estatais, no que se refere ao regime funcional, especialmente com o Ministério Público. De se notar que, originariamente, nesse modelo que foi sendo gestado no antigo Estado do Rio, inclusive ambas as funções eram regidas por uma mesma Lei Orgânica e integravam um único órgão administrativo que, conforme consta da Lei estadual nº 5.111/1962, se chamava “Procuradoria Geral do Estado” (e não “Procuradoria Geral de Justiça” como é hoje), sendo certo que dentro nos quadros funcionais desse órgão estavam também os cargos que eram denominados de “procurador dos feitos da fazenda”, os quais exerciam funções correspondentes à dos atuais procuradores do Estado.

Nessa contínua trajetória de estruturação institucional, deve ser registrado que a partir de 1970, pelo Decreto-Lei nº 286, ainda do antigo Estado do Rio, os cargos de defensor público que compunham um quadro funcional especial separado (o quadro funcional de promotores públicos era designado de “Quadro A” e o de defensores públicos designado de “Quadro B”) passaram a constituir uma carreira própria paralela, simétrica à da Magistratura e do MP, ficando estabelecido que o acesso deveria se dar por concurso público. Esse modelo foi objeto de debates durante o primeiro “Encontro Nacional de Procuradores de Justiça” realizado em Petrópolis-RJ, em junho de 1970, quando se deliberou aprovar uma recomendação no sentido de que deveria ser replicado nas demais unidades federativas, conforme indicamos em trabalho anterior que publicamos, referente ao cinquentenário da Carta de Petrópolis.  Nos anos seguintes o modelo continuou sendo aprimorado e, quando da fusão com o Estado da Guanabara, em 1975, foi o que prevaleceu no novo Estado do Rio, inclusive passando a figurar expressamente no texto da Constituição Estadual, o que se deu de modo pioneiro em todo o país no plano constitucional e não apenas legal.

Anos depois, com o fim de regime militar, e a mobilização da sociedade brasileira pela aprovação de uma nova Constituição Federal, como já ressaltado, foi exatamente o modelo que era o adotado no Estado do Rio de Janeiro que acabou sendo escolhido pela Assembleia Nacional Constituinte que promulgou a Constituição de 1988, tornando-se então obrigatório que fosse replicado por todos os demais Estados, constituindo-se ao lado do Ministério Público numa das “funções essenciais à justiça”. A partir de então foi estabelecido que o nome da instituição não seria mais Assistência Judiciária mas sim Defensoria Pública, tomando-se como referência o que já tinha sido estabelecido, em 1987, por uma Emenda na Constituição de 1976 do Estado do Rio de Janeiro.

Neste momento de resgate da história da Defensoria Pública no Brasil, cujo modelo tem suas origens na Lei nº 2.188, de 21 de julho de 1954, do antigo Estado do Rio de Janeiro, prestamos homenagens a uma plêiade de defensores e defensoras públicas fluminenses que foram protagonistas na construção e aprimoramento desse modelo, muitos já falecidos, como é o caso dos seis primeiros a serem nomeados (foram eles os bacharéis José de Carvalho Leomil, Messias de Moraes Teixeira, Alcy Amorim da Cruz, Nelson Joaquim da Silva, Herval Basílio e Antônio Carlos Nunes Martins.) e de outros que ingressaram nos anos seguintes e que tiveram atuação decisiva nessa luta pela consolidação de tal modelo, cabendo mencionar aquele que foi certamente o mais destacado dentre eles: José Fontenelle Teixeira da Silva. Dentre os veteranos, que hoje estão desfrutando da merecida aposentadoria, prestamos homenagem, em particular, três ilustres colegas, que tiveram – cada um a seu modo – um contribuição ímpar à Defensoria fluminense e, por via de consequência, brasileira: tratam-se de Ideel Coelho Silva, Célio Erthal Rocha, Humberto Peña de Mores e Maria Nice de Miranda, figura feminina marcante entre esses desbravadores, que foi a primeira mulher a exercer o cargo de Corregedora da Defensoria Pública do Rio de Janeiro.

 

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