#13 - Nota sobre o Processo e sobre a “presunção” de inocência que lhe habita      

20/05/2019

 

  Coluna Garantismo Processual / Coordenadores Eduardo José da Fonseca Costa e Antonio Carvalho

 

 

 

 

 

NOTA SOBRE O PROCESSO. A reflexão contida neste tópico é o gérmen de uma elaboração mais ampla, a ser apresentada noutro escrito. Efetivamente não passa de uma “nota sobre o processo”. O vocábulo “processo” – assim mesmo, em minúscula – ostenta significado polimórfico nas três dimensões elementares do discurso jurídico: a legal “lato sensu” (=analítica), a dogmática (=semântica) e a casuística (=pragmática). A dimensão legal do discurso jurídico é aqui chamada de lato sensu porque implica qualquer atividade estabelecedora de regras escritas; portanto, não apenas a Lei (=v.g. Constituição, qualquer das espécies legislativas, regulamentos impositivos ou instrumentos de contrato do âmbito público ou privado). A dimensão dogmática compreende as ensinanças ex professo de maior ou menor complexidade intelectual, aquilo que comumente é chamado de “doutrina” ou – quando a soberba se impõe – de “ciência” jurídica; algo similar também é observado nos ditames que estruturam o parecer do jurisconsulto, que se apresenta como peça de arquitetura da juridicidade que se propõe a explicar. A dimensão casuística do discurso jurídico é fomentada pelos arrazoados forenses que exteriorizam o contraditório – direito fundamental da parte e não juiz (LÚCIO DELFINO) – e é concretizada pelos pronunciamentos incidentais e definitivos do poder judiciário. Nessas três dimensões do discurso jurídico a palavra “processo” – outra vez, em minúscula – é manejada com insuperável promiscuidade. Há uma razão para isso. É que esse “processo” – ainda em minúscula, reitere-se o ponto – irradia-se difusamente na topologia da gramática constitucional. O termo “processo” está por toda a parte! Abaixo uma amostragem de como a coisa está posta no texto de nossa Constituição:

[1] ninguém será privado do devido “processo” legal (CR, art. 5º, LIV); [2] em “processo” judicial ou administrativo assegura-se contraditório e ampla defesa (CR, art. 5º, LV); [3] inadmite-se no “processo” – judicial ou administrativo – provas obtidas por meio ilícito (CR, art. 5º, LVI); [4] a regra da anualidade da entrada em vigor das regras do “processo” eleitoral (CR, art. 16, caput); [5] criação, funcionamento e “processo” do juizado de pequenas causas (CR, art. 24, X); [6] iniciativa popular no “processo” legislativo estadual (CR, art. 27, § 4º); necessidade de “processo” de licitação para aquisição e alienação de bens, produtos e serviços por parte do Poder Público (CR, art. 37, XXI); [7] exigência de “processo” administrativo para imposição de penalidade demissão ao servidor público estável (CR, art. 41, § 1º, II); [8] autorização da Câmara dos deputados para o “processo” contra Presidente da República, Vice e Ministro de Estados (CR, art. 51, I); [9] “processo” legislativo (CR, art. 59, caput); [10] instauração de “processo” (=impeachment) pelo Senado Federal para apuração dos crimes de responsabilidade do Presidente; [11] regras para o “processo” de vitaliciamento de juízes (CR, art. 93, IV); [12] distribuição imediata de “processos” em todos os graus de jurisdição; [13] atribuição da “justiça de paz” para verificar de ofício ou mediante impugnação a regularidade do “processo” de habilitação de casamentos (CR, art. 98, II); [14] atribuição do CNJ para rever os “processos” disciplinares de juízes (CR, art. 103-B, V); [15] a distribuição imediata de “processos” no Ministério Público (CR, art. 129, § 5º); [16] defesa do meio ambiente mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental de produtos, serviços e de seus “processos” de elaboração e prestação (CR, at. 170, VI); [17] “processo” seletivo público para admissão de agentes comunitários de saúde (CR, art. 198, § 4º); [18] asseguramento às comunidades indígenas de ensino regular de suas línguas maternas e seus “processos” próprios de aprendizagem (CR, art. 210, § 2º); [19] proteção que deve ser dada pelo Estado brasileiro às manifestações culturais exteriorizadas do “processo” civilizatório nacional; [20] “processo” de gestão e promoção conjunta de políticas públicas de cultura (CR, art. 216-A, caput); [21] democratização dos “processos” decisórias com participação e controle social no âmbito do Sistema Nacional de Cultura (CR, art. 216-A, § 1º, X); [22] incumbência do Poder Público de preservar e restaurar os “processos” ecológicos de salvaguarda do manejo ecológico (CR, art. 225, § 1º, I).

 A presença pulverizada do vocábulo “processo” no ambiente constitucional e, claro, também no legal, encerra um fenômeno bifronte, com um lado bom e outro ruim. O lado bom está no fato de que o ordenamento jurídico optou por desenvolver-se/mover-se sistemicamente pela cadeia lógica-criacional formada pelos atos jurídicos que substanciam o “processo”. Significa dizer que a atividade jurígena gerada pelo ordenamento depende do “processo” – novamente em minúscula – para acontecer, estabelecendo a dinâmica da processualidade para dar “vida” ao Direito. O lado ruim é que o “processo” apresenta-se polimórfico, subtraindo-lhe atributos que viabilizem uma melhor, mais exata e mais específica compreensão a seu respeito. No jogo de forças entre o lado bom e o lado ruim da realidade bifronte aqui apontada, e na tensão aí gerada, não sobra espaço confortável para que as especulações dos processualistas possam se movimentar no sentido de uma elaboração mais refinada do que é e para que serve o específico macrofenômeno jurídico-constitucional que chamamos de “Processo”, agora sim em letra maiúscula. Não se pode negar que este se compõe de partículas que formam a ideia de “processo” espargida pelo texto constitucional. Mas com este definitivamente não se confunde. Talvez seja por isso que “até hoje a discussão sobre a natureza ou o caráter constitucional do processo é praticamente inexistente” (EDUARDO COSTA, “A natureza jurídica do processo”, https://emporiododireito.com.br/leitura/9-a-natureza-juridica-do-processo). É dizer: há uma nítida confusão dogmática, quiçá uma conveniente ignorância, sobre a identificação/distinção de duas realidades que não se confundem: o “Processo” em maiúscula, que ostenta significado juridicamente específico, e o “processo”, em minúscula, rigorosamente destituído de sentido jurídico único e específico. Em se tratando de uma nítida confusão dogmática, ela se justifica pela forma como o discurso jurídico é produzido, onde se toma o “processo” em sua polimorfia. Em se tratando de uma conveniente ignorância, ela apenas dissimula a ideologia de se vislumbrar o “processo”[?] como instrumento do poder (=jurisdição), e não como GARANTIA contra ele, uma concreta garantia contrajurisdicional, conforme sintagma perspicazmente bolado por EDUARDO COSTA.

O macrofenômeno jurídico-constitucional a que chamamos de “Processo” é a síntese performática de três categorias constitucionais que são: a Ação, o Processo e a Jurisdição.

A Ação é projeção da liberdade constitucionalmente garantida em se levar ao poder democraticamente competente (=Poder Judiciário) a resolução de qualquer problema jurídico ocorrido no mundo da vida. Nem mesmo a assim chamada ação penal pública incondicionada escapa a essa realidade fenomênica. A liberdade funcional na qual se funda a atuação dos órgãos executivos do parquet, consequência direta da independência funcional que caracteriza o Ministério Público (CR, art. 127, § 1º), permite que determinado promotor de justiça ou procurador da república, no ambiente próprio de suas atribuições, vislumbre em certo procedimento investigatório indícios de autoria e prova da materialidade, quando, no tocante ao mesmo procedimento, outro promotor ou procurador da república NÃO vislumbrou tais requisitos formadores da opinio delicti que consubstanciará a justa causa  para a chamada ação penal. A dinâmica gerada pelo art. 28 do CPP, conquanto traga consigo o ranço da inquisitividade ao prever que o gatilho seja disparado por iniciativa judicial, estabelece um procedimento de controle interna corporis, onde a última palavra sobre a liberdade do exercício da ação penal será dada pelo respectivo Procurador Geral. Ainda que diga respeito à determinada atuação funcional, é a liberdade de ação que aí se mostra. A constatação inequívoca de que mesmo a chamada ação penal se projeta a partir do valor jurídico-constitucional “liberdade” está na Lei nº 12.850/2013, que estabelece o regramento da colaboração premiada  no Brasil. Em seu art. 4º, § 2º, a Lei prevê a possibilidade de que o Ministério Público, a qualquer tempo, postule pela concessão de perdão judicial, o que necessariamente pressupõe a existência de um processo judicial no qual o perdão será requerido e concedido; na prática, teríamos uma hipótese de desistência da ação ou mesmo de renúncia à aplicação do  direito objetivo sancionatório. Já no § 4º do mesmo art. 4º, a Lei que trata da colaboração premiada sic et simpliciter deixa a cargo da liberdade funcional do Ministério Público a possibilidade de deixar de oferecer a denúncia. Portanto, no âmbito cível ou penal a Ação se mostra articulada com o valor supremo liberdade.

O Processo é a garantia por excelência. GARANTIA contra o arbítrio no exercício do poder jurisdicional. GARANTIA contra indevidas invasões autoritárias sobre as esferas de liberdade constitucionalmente estabelecidas. GARANTIA contra desvios jurisdicionais na “arte do proceder” (=durante as várias etapas do procedimento) e na “arte do julgar” (=momento do ato racional-decisional). GARANTIA contrajurisdicional, portanto. O Processo, que necessariamente pressupõe a Ação [sem esta aquele não se inicia], desenvolve-se a partir de um arquétipo garantístico constitucional de cariz adversarial (=acusatório), já que alguém pede alguma providência jurídica contra outrem para que um terceiro independente, imparcial e impartial (=que não pode atuar como se parte fosse) resolva qual das pretensões antagônicas deve prevalecer. O Processo constitui um método de debate [ADOLFO ALVARADO VELLOSO] que se desenvolve por sobre uma plataforma de trabalho procedimentalmente organizada pelos chamados CPC e CPP em torno de engrenagens que garantam o contraditório, a ampla defesa e os recursos que lhes dizem respeito (CR, art. 5º, LV). Quando em pleno vigor de seu funcionamento, essa plataforma de trabalho resulta no devido processo legal voltado a GARANTIR que ninguém será privado de sua liberdade ou de seus bens pela atuação – por vezes leviatânica – do Estado-juiz (CR, art. 5º, inc. LIV).  Note-se que o Processo – em maiúscula – aqui descrito ostenta atributos que lhe substanciam como categoria jurídica dotada de certas especificidades. Isso o diferencia de várias outras acepções que a palavra “processo” – em minúscula – ganha em diversas passagens frasais dispostas ao nível constitucional e infraconstitucional.      

A Jurisdição é Poder, que só se pronunciará onde há Processo, que pressupõe a Ação. O seu exercício submete-se aos limites jurídicos e políticos estabelecidos nos marcos republicanos e democráticos da Constituição.  De pronto descarta-se o paralogismo encerrado na ideologia que sustenta que a Jurisdição se vale do “processo” como seu instrumento para atingir “cândidos fins” que somente o “poder” que lhe é próprio poderia alcançar. O eventual impacto retórico que a “bondade utilitarista” daí emergente possa sugerir e que, ao fim e ao cabo, acaba sugerindo na atuação concreta da pessoa física exercente da Jurisdição, não resiste à racionalidade constitucional. Ao se conceber a Jurisdição como “poder” que se vale do “processo” como instrumento para a realização de escopos estatais políticos, sociais, jurídicos etc., cuja missão última seria uma espécie de “justiça/paz social”, abre-se o flanco para que juízes e tribunais destilem por sobre a esfera de liberdade do indivíduo e da sociedade suas próprias idiossincrasias políticas, sociais, jurídicas etc. Quando isso ocorre a Jurisdição estará sendo exercida fora dos marcos republicanos e democráticos que estabelecem os limites jurídicos e políticos ao uso do “poder”. Trilhando à margem de tais marcos, o poder jurisdicional esvazia-se de racionalidade e converte-se em arbítrio totalitário; torna-se um malfadado exercício excêntrico (=fora da Constituição) e egocêntrico (=como quer o exercente do poder) de justiçamento, que se apresenta dissimulado na atuação jurisdicional. Este estado de coisas provoca uma letargia que afeta o senso comum, que se conforma ou não percebe estar sendo vitimado pela Jurisdição que faz do “processo” o seu instrumento autoritário de magia. Em miúdos: Jurisdição é poder, que somente se exerce de forma legítima no ambiente de garantia formado pelo Processo, que só entra em funcionamento após a Ação exercida em decorrência da liberdade.

Expostas as coisas dessa forma, vê-se que aquilo que vulgarmente chamamos de “Processo” no dia-a-dia forense é um macrofenômeno jurídico-constitucional representado na síntese da atividade produzida pela Ação (=liberdade), pelo Processo (=garantia) e pela Jurisdição (=poder).

Mas não é só.

Este “Processo” [maiúscula] tem uma peculiar característica que lhe diferencia dos vários outros “processos” [minúscula] que integram o ordenamento jurídico. Os chamados “processos” administrativo e legislativo, por exemplo, encerram cadeias lógicas de atos criacionais voltados à consecução dos objetivos típicos de caráter funcional-constitucional do Poder Executivo (=administrar) e do Poder Legislativo (=criar leis), conforme as promessas republicanas feitas pelas pessoas físicas eleitas para tal mister. Ainda que o resultado final destes “processos” também se projete para “fora” dos quadrantes do Executivo (=v.g., solução que interesse diretamente ao administrado) e do Legislativo (=as leis sempre serão de caráter geral e abstrato), o empreender via “processo”  administrativo ou legislativo implica a realização de uma atividade voltada imediatamente ao atingimento do próprio interesse, representado no ato de administrar e no ato de legislar. Já o “Processo” (=Ação+Processo+Jurisdição) realizado no dia-a-dia forense não é voltado para atingir qualquer resultado que seja próprio ou que diga respeito ao Poder Judiciário e aos seus juízes e tribunais. Toda a atividade que no “Processo” é desenvolvida, que em essência representa a síntese da Ação, do Processo e da Jurisdição, é voltada à solução de um problema externo ao Poder Judiciário. O que ali se “processa” são interesses antagônicos sobre situações jurídicas surgidas no mundo da vida, cuja solução é necessariamente voltada para “fora” do Poder Judiciário. O Judiciário não “administra”, tampouco “legisla”, no interesse seu ou de seus juízes. Por expressa vocação funcional-constitucional, o Judiciário resolve sobre problemas jurídicos de terceiros (=partes), que se valem do “Processo” e de todo o cipoal de garantias fundamentais que o formam.

Portanto, o discurso jurídico em matéria de “Processo” é racionalmente unitário [OMAR BENABENTOS], sendo constitucionalmente irrelevante as adjetivações “processo” civil, “processo” penal, “processo” do trabalho, “processo” eleitoral e così via. Tais sintagmas referem-se ao regramento procedimental estabelecido pelo legislador infraconstitucional, que necessariamente devem guardar compatibilidade vertical com as regras de “Processo” estatuídas na Constituição, muito embora saibamos que isso nem sempre acontece (=há diversas regras no CPC ou no CPP de duvidosa constitucionalidade). Esclareça-se que a troca de nome – ou “cambio de sexo” [CIPRIANI] – da respectiva disciplina universitária de “procedimento civil” para “processo civil”, deve-se diretamente a CHIOVEDA, quando aos trinta anos de idade assumiu como professor extraordinário, para o ano acadêmico 1901-1902, a cátedra de “Procedura civile e ordinamento giudiziario” da Faculdade de Direito da Universidade de Parma (cf. CIPRIANI, Franco. “Giuseppe Chiovenda en Parma – De la ´procedura civile´ al ´diritto processualle´”, em Batallas por la justicia civil – Ensayos. Editorial Cuzco: Lima, 2003, trad. Eugenia Ariano Deho). Aí está a raiz dos “porquês” de, ainda hoje, um procedimentalista civil ou penal enxergar-se como um processualista e, mesmo assim, menoscabar a leitura das regras de procedimento previstas no CPC ou no CPP pelas lentes constitucionais que revelam a estrutura GARANTISTA na qual se assenta o “Processo”. Este, na abordagem garantista que lhe dá legitimidade dentro do Direito, se explica e se compreende a partir das regras de nível constitucional. Os elementos de sua construção encontram-se devidamente descritos na Constituição e nos pactos internacionais que estabelecem GARANTIAS processuais, como se dá, v.g., com o Pacto de San José da Costa Rica, que ao lado de outros diplomas de direito internacional se impõe, aqui no Brasil, como regra de direito positivo (CR, art. 5º, §§ 2º e 3º).

SOBRE A “PRESUNÇÃO” DE INOCÊNCIA. De imediato faço uma afirmação categórica: a “presunção” de inocência é uma garantia fundamental que decorre da estrutura adversarial (=acusatória) do “Processo”. Logo, independentemente de o “Processo” estar em marcha para a solução de um tema cível ou penal, o direito fundamental à “presunção” de inocência estará presente, inclusive na etapa pré-processual (=v.g., durante o inquérito policial ou o inquérito civil público). Cumpre-me, agora, comprovar racionalmente o acerto desta afirmação.

Em primeiro lugar deve ser observado que a palavra “presunção”, que compõe o nosso sintagma-garantia, explica menos do que deveria, por isso apresentei-a “entre aspas”. Melhor seria, como faz parte da doutrina processual-penal, chamar a garantia fundamental de estado de inocência ou mesmo situação jurídica de inocência [EUGÊNIO PACELLI]. Realmente, em sentido jurídico estrito, de “presunção” não se trata. A ideia de presunção implica uma operação mental voltada a estabelecer uma ligação logica entre dois fatos afirmados e provados, onde essa ligação seria feita pelo fato que se presume, a rigor, um indício. Por exemplo, se choveu num campo aberto (=fato provado) mas, mesmo assim, ficou constatado que uma área equivalente a três mil metros quadrados desse campo aberto está completamente seca (=fato provado), pode-se dizer que há a presunção de que sobre essa área seca havia algum tipo de anteparo. No caso da “presunção” de inocência não existe qualquer fato intermediário a ser presumido para se concluir pela presença do estado ou situação jurídica de inocência, que simplesmente existe como GARANTIA processual positivada na Constituição por opção política do poder constituinte originário.

Ao versar sobre a garantia do estado de inocência a doutrina processual-penal identifica sua incidência em dois âmbitos muito claros em favor do acusado: (a) garantia ao tratamento como “inocente” durante o curso do “Processo”, ou mesmo antes dele, e (b) garantia de que os fatos nos quais se funda a pretensão do autor sejam por ele, e somente por ele, provados. Ainda há uma terceira incidência bastante evidente da “presunção” de inocência em favor do acusado: (c) quando da motivação sentencial, já que fatos afirmados pelo autor mas por ele não provados serão o fator determinante da improcedência da pretensão. Na hipótese (a) podemos perscrutar que a garantia de ser tratado como inocente diz respeito: i) ao não decreto de prisão cautelar se não estiverem presentes os respectivos dispositivo legais, ii) preservação da liberdade corporal durante o “Processo” ainda que mediante aplicação de medidas cautelares alternativas à prisão, iii) no âmbito cível, a imperiosidade de contraditório prévio antes do decreto de tutela de urgência. Na hipótese (b) o estado de inocência opera para: i) que a prova dos fatos em que se funda o pedido seja feita exclusivamente pelo autor, ii) que em nenhuma hipótese a autoridade judicial se imiscua na atividade probatória determinando prova de ofício ou indeferindo as provas requeridas pelas partes, iii) que a não-prova do fato constitutivo do direito do autor implique a improcedência do pedido. Na hipótese (c) a chamada “presunção” de inocência se impõe na fase de motivação da sentença: i) para que o juiz somente aceite provas produzidas licitamente, ii) para que o juiz interprete a prova para saber se ela confirma a ocorrência do fato imputado e a vinculação do réu na sua ocorrência, iii) para que o juiz valore a prova levando em conta o estado de inocência, iv) para que o juiz proceda a uma fundamentação racional que estabeleça o nexo lógico entre o fato afirmado pelo autor, aquilo que foi confirmado (=provado) e a eventual responsabilidade do réu diante do enredo fático. Sem maiores dificuldades observa-se que todas essas operações possíveis que o estado ou situação jurídica de inocência impõe ao Estado-juiz e garante ao jurisdicionado, antes e durante a marcha do “Processo”, encontra sua justificativa lógica na estrutura da processualidade acusatória que a Constituição nos submete. Sendo o “Processo” o objeto de uma racionalidade constitucional unitária, pouco importa se o procedimento pelo qual ele tramita é tratado infraconstitucionalmente como civil, penal, trabalhista, ou o seja lá qual for o procedimento pelo qual se desenvolverá o macrofenômeno jurídico constitucional aqui tratado. Enquanto atributo lógico do “Processo”, é a acusatoriedade que justifica a observância da garantia fundamental da “presunção” de inocência.

A literalidade redacional da Constituição ao positivar essa GARANTIA não a restringe ao ambiente do “processo” penal, não nos deixemos impressionar. A afirmação que faço é de fácil constatação. A Constituição brasileira assim prevê no inciso LVII do art. 5º: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”. O qualificativo “penal” aí contido não é suficiente para restringir a “presunção” de inocência ao “Processo” de caráter condenatório a que se refere. O vocábulo jurídico sentença implica a exteriorização, geralmente documental, de um ato de poder tipicamente emanado da Jurisdição. Esta, por imperativo constitucional, somente pode incidir sobre situações concretas por intermédio de um Processo, que por sua vez foi iniciado pela Ação.  Logo, será o trânsito em julgado de qualquer sentença condenatória a ser proferida em um “Processo” que fará desaparecer a situação jurídica de inocência que milita em favor do acusado-réu-imputado-requerido.

Ainda se pode avançar nos meandros da racionalidade jurídica para se constatar que o adjetivo “penal” inserto na redação do inciso LVII do art. 5º não aprisiona a garantia fundamental aqui tratada nos domínios do “processo” (=procedimento) penal.

Ao lado de todas as GARANTIAS fundamentais estatuídas na Constituição da República, o Pacto de San José da Costa Rica estabelece garantias judiciais que também determinam a forma de ser do macrofenômeno jurídico constitucional a que chamamos de “Processo”. Vale lembrar que os direitos e GARANTIAS constitucionais estabelecidos na Constituição NÃO excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos TRATADOS INTERNACIOANAIS que o Brasil seja parte (CR, art. 5º, § 2º). O Pacto de San José, que estabelece a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH), ingressou no ordenamento jurídico brasileiro por intermédio do Decreto nº 678/92. Portanto, seus dispositivos devem amalgamar-se aos dispositivos da Constituição para que se construa racionalmente o discurso jurídico em torno dos temas que lhe são afetos, como é o caso das GARANTIAS que integram o “Processo”. O Artigo 8 da CADH trata das GARANTIAS JUDICIAIS, e em seu respectivo item “2” estabelece a garantia da “presunção” de inocência, fazendo-o sob os seguintes dizeres:

Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:”     

O vocábulo delito tem sua origem etimológica no latim, derivando da palavra delictum. que significa “culpa”, “falta”. Nas duas acepções que lhe dá o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, em nenhuma delas o termo delito apresenta-se como sendo do domínio semântico-pragmático exclusivo das coisas próprias do direito penal. Primeira acepção: “qualquer ato que constitua uma infração às leis estabelecidas; ato considerado punível pelas leis que regem uma sociedade; crime, infração. Em sua segunda acepção: “transgressão da moral ou de preceito estabelecido; falta, infração. Portanto, nos termos do art. 8.2 da CADH, a pessoa “acusada de delito” o poderá ser em relação a qualquer delito, constitua ele uma falta/infração penal, constitua ele uma falta/infração não-penal (=civil). Significa dizer que o fato imputado pelo autor em desfavor do réu, em relação ao qual pede providências jurídicas, poderá trazer em sua narrativa qualquer delito, penal ou não-penal.

Importante, ainda, uma similar análise em relação ao vocábulo inocência, cuja situação é expressamente “presumida” na redação do art. 8.2 da CADH. De etimologia proveniente do latim, a palavra vem de innocentia, que significa “brandura”, “mansidão”. O mesmo Dicionário Houaiss dá-lhe quatro acepções, mas fiquemos com as três que aqui interessam. Primeira acepção: estado, caráter daquilo que é inocente. Segunda acepção: qualidade de quem é incapaz de praticar o mal; estado daquele que não é culpado de uma determinada falta ou crime. Terceira acepção: ingenuidade excessiva; ignorância. Vê-se que o substantivo feminino ‘inocência” revela a condição daquele que não é culpado por uma determinada falta. Se uma das GARANTIAS que informam o “Processo” é a igualdade (CR, art. 5º, caput, inc. I), não há qualquer sentido lógico em considerar aquele que comete uma falta penal, em essência mais grave, como “inocente” a priori, e aquele que comete uma falta civil como culpado a priori

Reforçando o argumento a partir de outro texto normativo internacional, tomemos como o exemplo o disposto na Constituição da Espanha (cf. em www.senado.es). Sob a rubrica “Dos direitos fundamentais e das liberdades públicas”, o art. 24.2 da Constituição espanhola assim estabelece:

Todos têm direito ao Juiz ordinário predeterminado pela lei, à defesa e à assistência por advogado, a ser informado da acusação contra si dirigida, a um processo público sem dilações indevidas e com todas as GARANTIAS, a utilizar os meios de prova pertinentes para sua defesa, a não declara contra si, a não confessar-se culpado e à PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA

(trad. livre)

Como se vê, o texto constitucional espanhol deliberadamente desatrela da “presunção” de inocência qualquer sugestão que lhe possa vincular, preponderantemente, à ideia delitiva penal. AURY LOPES JR. lembra que com base no art. 24.2 da Constituição espanhola, JAIME VEGAS TORRES considera a “presunção” de inocência uma garantia que vai muito além do “processo” penal (Presunción de inocência y Prueba en el Proceso Penal, Madrid: La Ley, 1993, p. 14 e ss, apud LOPES Jr., Aury, Direito Processual Penal, Ed. Saraiva: São Paulo, 11ª ed., 3ª tiragem, 2014, pp. 218-219). 

A não ser que se queira cerrar os olhos à racionalidade constitucional unitária a que se submete o macrofenômeno jurídico chamado de “Processo”, não há como negar que a chamada “presunção” de inocência tem nele o seu habitat, seja ele posto a serviço da resolução de impasses jurídicos-penais ou não-penais. Em suma, somente uma sentença condenatória devidamente transitada em julgado é que será capaz de romper com o estado jurídico de inocência que a Constituição e a CADH, por exemplo, estabelecem em favor dos acusados em geral como consequência funcional da estrutura acusatória que o ordenamento jurídico dá à processualidade que se desenvolve perante o Poder Judiciário.

Tudo isso para dizer que não percamos de vista o fato de que no chamado “processo” (=procedimento) civil a “presunção” de inocência também se impõe como GARANTIA decorrente da acusatoriedade. Assim compreendidas as coisas, urge redimensionar algumas pautas daquilo que praticamos no dia-a-dia do foro cível, notadamente diante do “processo” de conhecimento e do “processo” de execução do título executivo extrajudicial. Naquele porque a sentença condenatória só transitará em jugado ao final do procedimento. Neste porque o título extrajudicial forma-se por iniciativa privada, longe da sentença condenatória. Por mostrarem-se desconhecedores de que a “presunção” de inocência no foro cível também faz morada, práticos e teóricos inconscientemente sonegam de seus discursos jurídicos a abordagem que lhe seria merecida. Ao fim e ao cabo, a não utilização argumentativa dessa e de outras garantias fundamentais enfraquece a ampla defesa que os sujeitos parciais ou imparciais da cena processual estão comprometidos, por dever de ofício, a concretizar.   

FECHAMENTO. A “presunção” de inocência é garantia fundamental que tem seu habitat no “Processo” (=Ação+Processo+Jurisdição), e isso independe do procedimento pelo qual tramitará. Ao processualista cabe chamar a atenção para o fato de que essa compreensão só é alcançada a partir da abordagem dada ao tema pelo GARANTISMO PROCESSUAL. Ainda que se queira justificar outras abordagens de recorte, por exemplo, ativistas, neoconstitucionalistas, decisionistas, instrumentalistas, cooperativistas e outras manifestações que revelam vocações estatólatras ou mesmo que dissimulam posturas ideológicas utilitaristas em enredos doutrinários, que então se tenha a consciência de que, ao fazê-lo, estar-se-á construído um direito processual do inimigo, produzido, no caso, por aqueles que se entendem “bons” contra aqueles que estes considerem “maus”. Daí, sem nos darmos conta, estaremos viabilizando que os “senhores” da Velha Ordem [MURRAY ROTHBARD] sigam reinando por sobre o senso comum dos práticos, dos teóricos e dos jurisdicionados, estes últimos invariavelmente os mais vulneráveis. São reféns de uma espécie de boa-fé objetiva de mão única: de um lado acreditam eles que estão sendo adequadamente tratados; de outro, fazem com que continuem a assim acreditar.

O tema da “presunção” de inocência está em alta no Brasil. Avizinha-se o julgamento do Supremo Tribunal Federal que, entre idas e vindas, [re]examinará o assunto no plano jurisprudencial, notadamente no que diz respeito a incidência desta fundamental garantia em processos-crime em que a sentença condenatória ainda não transitou em julgado. Em razão disso juristas em geral veem se manifestando das mais diversas formas sobre o assunto, ora com (i) argumentos menos jurídicos e mais ideológicos e/ou políticos, ora com (ii) argumentos que abordam o tema em perspectiva metódica rigorosamente jurídica. Há vários pronunciamentos a respeito. Garimpando-se em plataformas físicas ou digitais, rápido se localiza a opinião dos experts.

Como exemplo do enfoque descrito em (i) há o texto de LUIZ GUILHERME MARINONI, “Sobre a possibilidade de prisão antes do trânsito em julgado da condenação”, publicado em 08 de abril p.p. (link: https://www.conjur.com.br/2019-abr-08/direito-civil-atual-possibilidade-prisao-antes-transito-julgado).

Já com a abordagem descrita em (ii) há o texto de DIEGO CREVELIN, “Sobre a impossibilidade de prisão após o trânsito em julgado”, publicado em 10 de abril aqui neste EMPÓRIO DO DIREITO (link: https://emporiododireito.com.br/leitura/abdpro-80-sobre-a-impossibilidade-de-prisao-pena-antes-do-transito-em-julgado).

A leitura deste meu ensaio, somada à leitura de cada um dos textos acima apontados, indicará a você, leitor, a linha argumentativa com a qual me identifico.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Sao Paulo Metropolis // Foto de: Brian Levy // Sem alterações

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