#111 - O JUIZ E O ADMINISTRADOR PÚBLICO: ENTRE IMPARCIALIDADE E IMPESSOALIDADE

05/07/2021

 Coluna Garantismo Processual / Coordenadores Luciana Carvalho e Antonio Carvalho

 

 

Ao Fernando Fonseca Rossi,

I

Na versão comercial da sua brilhante tese de doutorado, o meu colega de Magistratura Federal MARCELO BARBI GONÇALVES afirma que «a imparcialidade que se espera do administrador é, essencialmente, a mesma que se espera do juiz. Ambos devem aplicar o ordenamento de forma desapaixonada, racional e objetiva» (Teoria geral da jurisdição. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 324). Dessa maneira, o autor procura mostrar que a imparcialidade não é uma das notas características da atividade jurisdicional, tendo em vista que também se exige imparcialidade na atividade administrativa. Ser ou não ser imparcial não mais seria, portanto, um critério distintivo para que determinada atividade aplicativa do direito seja ou não seja jurisdicional. No entanto, é necessário tomar a afirmação supracitada com enormes ressalvas. Afinal de contas, com a devida vênia, ela aborda o complexo fenômeno da imparcialidade com açodamento e simplismo inadequados. Decerto a imparcialidade do juiz e a «imparcialidade» do administrador público possuem o mesmo caráter. Isso é indiscutível. De ambos se exige um esforço objetivante na aplicação do direito. Contudo, entre a autoridade jurisdicional e a autoridade administrativa essa exigência se institucionaliza em intensidades bastante diferentes. A imparcialidade do juiz é muito mais «densa», «espessa», «pesada», «profunda». É um fardo funcional que nem de longe o administrador público carrega. Sustentar que o juiz e o administrador público são similarmente imparciais é virar as costas para a prática. É dar de ombros para o quotidiano da res publica. É teorizar sobre o fenômeno a partir de conceitos cerebrinos, descolados da realidade. A bem da verdade, a imparcialidade do juiz e a «imparcialidade» do administrador público não se diferenciam entre si por natureza, mas por grau. Daí por que não se pode empregar a mesma nomenclatura para designar gradações tão distantes entre si. O nível de objetividade exigido do administrador público não se classifica exatamente como uma imparcialidade. Em suma, a «imparcialidade» exigida do administrador público não é propriamente uma imparcialidade. Está muito aquém disso. É, na melhor das hipóteses, um «esboço», um «projeto», um «ensaio» de imparcialidade. Por conseguinte, a imparcialidade continua sendo «caráter essencial da função jurisdicional» (GRINOVER, Ada Pellegrini. O princípio do juiz natural e sua dupla garantia. RePro 29, p. 11).

 

II

Do juiz se exigem: 1) terceiridade [= deve ser im-parcial, não-parte, alheio ou terceiro à relação discutida]; 2) desinteresse [= não deve ter qualquer interesse jurídico, moral ou econômico no desfecho da causa]; 3) distanciamento [= não deve ter conexão forte de afeição, aversão ou envolvimento profissional com qualquer das partes (ascendente, descendente, cônjuge, companheiro, noivo, namorado, amigo íntimo, inimigo, sócio etc.)]; 4) esforço por neutralidade psicológica [= deve lutar contra eventual predisposição, preferência, antipatia ou preconceito que nutra por qualquer das partes em razão de raça, cor, religião, gênero, orientação sexual, idade, estado civil, ideologia política, status socioeconômico, grau de escolaridade etc.]; 5) não enviesamento cognitivo [= não se deve enviesar pelas heurísticas de confirmação, ancoragem, representatividade etc.); 6) inércia funcional [= não deve, mediante iniciativas oficiosas, favorecer ou perseguir qualquer das partes, devendo apenas agir por provocação]; 7) independência [= não deve sofrer interferência nem pressão interna ou externa, direta ou indireta, de ordem política ou técnica, para beneficiar ou prejudicar qualquer das partes]; 8) aparência de neutralidade [= não deve externar predisposição, preferência, antipatia ou preconceito por qualquer das partes, mesmo que essa condição íntima jamais enseje privilegiamento ou perseguição funcional; 9) integridade e correção [= deve manter sua imparcialidade incorruptível e aparentar em sua conduta pública essa incorruptibilidade]; 10) urbanidade e lhaneza [= deve tratar as partes com urbanidade e lhaneza, evitando atritos que o indisponham contra elas]; 11) juiz natural [= deve integrar órgão cuja competência haja sido definida ex ante facto por critérios legais, impessoais e objetivos, impedindo-se nomeações ad hoc que visem favorecer ou prejudicar qualquer das partes]; 12) substituibilidade [= deve ser substituído ex ante, por iniciativa sua ou a requerimento da parte interessada, caso impedido ou suspeito] (sobre o tema, v. nosso As garantias arquifundamentais contrajurisdicionais… <https://cutt.ly/qnCUMaM>). Cada uma das doze exigências é uma condição necessária, mas não suficiente, de objetivação. Somadas, porém, elas tendem a garantir uma aplicação objetiva do direito. Todavia, de nenhum outro agente público se exige tanto. Só ao juiz se faz essa imposição duodécupla. Por isso ele ocupa a faixa mais elevada do espectro deôntico de objetividade. Por isso, enfim, ele ocupa a faixa superior da imparcialidade.

 

III

Em contrapartida, não se exige tanto do administrador público. De ordinário, no âmbito da Administração Pública não existe: i) terceiridade (pois ela é parte da própria relação jurídica discutida para a qual aplica o direito); ii) desinteresse (pois atua na consecução do interesse da coletividade em geral); iii) inércia funcional (pois pode agir tanto de ofício quanto por provocação); iv) independência (pois o administrador público se subordina a uma estrutura hierárquica que lhe impõe estrita obediência a ordens e instruções); v) naturalidade («administrador natural») (pois, em situações excepcionais de escassez, o administrador público pode ser nomeado ad hoc para a realização pro tempore de atos para os quais não tenha atribuição); vi) substituibilidade (pois o administrador público impedido ou suspeito não pode ser substituído ex ante a requerimento da parte interessada, senão por iniciativa própria; se não se afastar declarando-se impedido ou suspeito, o ato porventura praticado será nulo). É óbvio que aqui e ali existem exceções. No processo administrativo disciplinar, por exemplo, exige-se que a composição da comissão processante obedeça ao juiz natural. Nada obstante, na ordinariedade dos casos, o administrador público ocupa a faixa mais baixa do espectro deôntico de objetividade. Consequentemente, não convém chamá-la de imparcialidade. A palavra sofreria profundo desgaste semântico, passando a funcionar como uma mera peça de retórica. Usar um rótulo diferente para cada uma das faixas do espectro não implica estudá-las em separado. O importante é ter em mente que todas elas se integram e que, portanto, esses rótulos não exprimem «tipos estanques». Para cada comprimento de onda pertencente à faixa de luz visível se encontra associado o nome de uma cor; da mesma forma, deve-se associar um nomen juris distinto para cada «comprimento de onda» pertencente ao espectro deôntico de objetividade. Daí por que é de bom alvitre reservar o termo impessoalidade [it.: impersonalità; esp.: impersonalidad; fr.: impersonnalité] - já consagrado na tradição dogmática do direito administrativo - para designar a faixa inferior ocupada pelo administrador público. Com isso se tem o seguinte: do juiz se exige imparcialidade (que é majus); do administrador público, impessoalidade (que é minus). Não existe «imparcialidade da autoridade administrativa», tal como não existe «impessoalidade da autoridade jurisdicional». Juiz de quem se exige desempenho impessoal é juiz no exercício anômalo de função administrativa (ex.: juiz membro de comissão de concurso público para a magistratura).

 

IV

Contudo, entre um extremo (imparcialidade) e outro (impessoalidade) se estica uma longa corda. Ao longo dessa corda se estendem zonas intermediárias contínuas para as quais faltam nomes específicos. Muito próximo à faixa deôntica da imparcialidade, mas um pouco abaixo dela, está o promotor. Isso porque se lhe fazem quase todas as exigências institucionalizadas de objetividade. Do presentante do Ministério Público se exigem desinteresse, distanciamento, esforço por neutralidade psicológica, não enviesamento cognitivo, independência, aparência de neutralidade, integridade-correção, urbanidade-lhaneza, naturalidade («promotor natural») e substituibilidade. Entretanto, o Ministério Público não se rege por um princípio de inércia funcional: pode agir por iniciativa própria. Ademais, a sua terceiridade é ocasional: como custos legis, é terceiro; como acionante, é parte. Assim, o promotor transita em uma região fronteiriça de quase-imparcialidade, de imparcialidade a caminho. Anyway, isso já é suficiente para que atue num padrão mais alto que um litigante civil (cf. Comissão de Veneza, European standards as regards the independence of the judicial system: part II - the prosecution service, item V. 14). Isso explica porque o MP pode: a) como custos legis, atuar contra os fundamentos aduzidos pelas partes ou contra as resoluções do juiz; b) como acionante penal, pedir a absolvição do próprio réu contra quem ofereceu denúncia e recorrer em favor dele; c) como acionante civil, pedir o julgamento de improcedência da própria demanda que propôs e recorrer em favor do demandado. Não sem motivo, o MP senta-se «no mesmo plano e imediatamente à direita dos juízes singulares ou presidentes dos órgãos judiciários perante os quais oficiem» [LC 75/1993, art. 18, I, a. Em sentido similar: Lei 8.625/1993, art. 41, XI] (para um aprofundamento do tema, v. nosso O fundamento do Ministério Público. <https://cutt.ly/5nBotXl>). Perceba-se, porém, o simbolismo dessa topologia das cadeiras: sentados no mesmo plano, juiz e promotor ocupam a banda superior da objetividade; sentados lado a lado, juiz e promotor ocupam faixas distintas dessa banda. Assim, ao menos sob o ponto de vista simbólico, não faz o menor sentido tanto o advogado quanto o defensor público se sentarem à esquerda do juiz. O plano em que se senta não é apenas uma prerrogativa do promotor. Tampouco é uma vaidade institucional do MP. Logo, não deveria estender-se por isonomia a outras profissões jurídicas. Nem advogado nem defensor público são imparciais. Se fossem, trairiam o augusto mister que se lhes imputa.

 

V

Muito próximos à faixa da quase-imparcialidade estão, e. g., os conselheiros do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Lei 12.529/2011), os ministros do Tribunal de Contas da União (Lei 8.443/1992) e os juízes do Tribunal Marítimo (Lei 2.180/1954). Também deles se exigem desinteresse, distanciamento, esforço por neutralidade psicológica, não enviesamento cognitivo, independência, aparência de neutralidade, integridade-correção, urbanidade-lhaneza, naturalidade e substituibilidade; porém, faltam-lhes inércia funcional e terceiridade. Seja como for, como se pode verificar, esses julgadores estão mais próximos da imparcialidade que da impessoalidade. Semelham mais um juiz que um administrador público. Nem mesmo se pode dizer que são julgadores administrativos, tal como os membros de um tribunal administrativo tributário de composição paritária. Esse adensamento de objetividade, que os coloca numa quase-imparcialidade, os coloca numa conseguinte quase-jurisdicionalidade. Sem embargo, de jurisdição ainda não se trata. De todo modo, esse «quase» não raro inibe a intromissão judicial no mérito dos seus julgamentos. De quando em vez, o Judiciário hesita em controlar esses atos impressionado pela tenuidade do «quase» e pela forte aparência de jurisdicionalidade de que se revestem. Apesar disso, é preciso lembrar que «a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito» [CF/1988, art. 5º, XXXV]. Logo, a hesitação não se justifica. Há quem sustente que a superespecialização temática desses órgãos impede per se que o mérito dos seus julgamentos sofra controle judicial. Todavia, a nota de jurisdicionalidade se dá pelo grau de imparcialização do julgador, não pelo grau de especialização dele exigido para o enfrentamento das causas. A maior ou menor especialidade técnica do tribunal extrajudiciário não determina o maior ou menor intrometimento judiciário em suas decisões. No modelo de judicial review, cabe ao juiz enfrentar toda e qualquer questão de fato, dês que necessário para se afastar lesão ou ameaça de lesão a direito. Destarte, são desimportantes a complexidade fático-probatória e o conhecimento diferenciado incomum para resolvê-la. O juiz pode socorrer-se de provas técnicas simplificadas, perícias simples, perícias complexas, amici curiæ, consultas a órgãos especializados etc. A jurisdicionalização plena do CADE, do TCU e do TM somente é possível ex constitutione. Depende de reforma constitucional, que lhes exclua as decisões do controle judicial, ou as submeta ao controle per saltum do STJ ou de TRF.

 

VI

Ante o exposto, entende-se por que não se pode excluir da apreciação do Poder Judiciário nenhuma lesão ou ameaça de lesão a direito [CF/1988, art. 5º, XXXV]: malograda a aplicação do direito como uma realidade externa objetiva, que independe da vontade individual subjetiva de quem o interpreta, os juízes são o último bastião para essa aplicação. Afinal, deles se espera o máximo grau de objetividade. Por isso, a imparcialidade judicial, embora não explicitada na Constituição Federal, é uma garantia constitucional subentendida, que lhe habita as entrelinhas. Mais: é a garantia contrajurisdicional das garantias contrajurisdicionais. Trata-se de garantia contrajurisdicional arquifundamental, que integra a definição mesma de jurisdição. Pois, grosso modo, jurisdição é isto: a aplicação estatal do direito por um terceiro imparcial à relação discutida. Ora, conquanto mencionada expressamente no caput do artigo 37 da CF/1988, nem de longe a impessoalidade tem o mesmo nível de primordialidade. A impessoalidade não está para o administrador público do mesmo jeito a imparcialidade está para o juiz. A imparcialidade é elemento essencial da jurisdicionalidade; a impessoalidade, elemento acidental da administratividade. Em outros termos, a impessoalidade não integra a definição mesma de administração. Porque, de maneira genérica, administração é isto: a aplicação estatal do direito por um terceiro sem imparcialidade, ou por quem seja parte da própria relação discutida (para um aprofundamento sobre a diferenciação entre jurisdição e administração, v., p. ex., nosso Levando a imparcialidade a sério. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 15-18). Se o juiz e o administrador público fossem igualmente imparciais, sequer se poderia cogitar do controle externo judicial dos atos administrativos (obs.: entre dois agentes imparciais só é possível um controle interno, intrapotestativo, intrajudiciário, de uma instância a quo por uma instância de revisão ad quem). O juiz controla os atos do administrador e de todos os demais agentes públicos justamente porque os excede no espectro deôntico de objetividade. Daí por que o controle judicial cobre amplamente a banda inferior desse espectro. Vai desde a faixa deôntica da quase-imparcialidade até a faixa deôntica da impessoalidade. Sem se compreenderem essa espectrologia e a sua descrição analítica precisa, não se compreendem a causa, o fundamento último e a estrutura material do judicial review.

 

FUNÇÃO

Grau devido de objetividade

NOME

Juiz do Poder Judiciário

12

Imparcialidade 

Promotor (custos legis)

11

Quase-imparcialidade 

Promotor (acionante)

10

Quase-imparcialidade 

Conselheiro do CADE

10

Quase-imparcialidade 

Ministro do TCU

10

Quase-imparcialidade 

Juiz do Tribunal Marítimo

10

Quase-imparcialidade

Membro de Comissão Processante Disciplinar

7

Impessoalidade 

Administrador Público

6

Impessoalidade

 

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