Coluna Garantismo Processual / Coordenadores Luciana Carvalho e Antonio Carvalho
Em coluna publicada recentemente (ver clicando aqui), tratou-se daquilo que pensava Alfredo Rocco, o legislador da “revolução fascista”, sobre o processo (rectius, procedimento) civil. Conforme observado, “o processo vinha, na visão de Rocco, servindo interesses demasiadamente privados. Na visão fascista, seria necessário que o processo atendesse a determinados fins desejados pelo Estado”. A questão que se coloca, agora, é: como isso ocorreu concreta e legislativamente? Dito de outra forma, constatado o teor substancial que serviu de fundamento para o pensamento de um “processo civil” nos moldes fascistas, pergunta-se: quais foram os efeitos práticos de tal comprometimento na lei? De que forma isso impactou nas faculdades e deveres das partes?
Com efeito, uma das consequências imediatas da ideologia fascista é que a atuação do magistrado não poderia ser limitada por “meras formalidades”, que, havendo a necessidade, deveriam ser desconsideradas para o fim do atingimento de valores ou construções como “paz social”, “justiça”, “verdade”[1], etc. É interessante notar que é justamente em tais conceitos de guerrilha[2] que se encontrava o reduto de expansão da atuação do Estado (=expansão da atuação do Poder). Em outros termos: dado o fato que conceitos abstratos como “justiça”, “paz social”, “verdade” – especialmente utilizados no “procedimento civil” – possuem uma alta disputa semântica[3], e estavam (e ainda estão) longe de um estabelecimento objetivo de consenso acerca de seus significados e critérios, tais conceitos passam a operar como uma forma de justificativa para atos que são, em sua essência, arbitrários. Essa estratégica é utilizada, no âmbito do Poder Executivo ou Legislativo, por exemplo, quando seus representantes dizem atuar em “nome da vontade geral” – expressão que raramente tem significado verificável[4]. Não difere no modelo fascista de processo, quando questões como as referenciadas (“justiça”, “paz social”, “verdade”) passaram a ser o parâmetro (ou a sua própria falta) para a tomada de decisões. A vantagem discursiva desse tipo de construção passa pela ideia de que o magistrado decidiu pautado em critérios – afastando-se do arbítrio –, afinal de contas foi limitado pela necessidade de concretizar a “paz social”, a “verdade” e così via.
O modelo fascista, portanto, é um modelo que colocou o processo à disposição do Estado para a concretização de tais fins ––embora, reitera-se, ninguém consiga dizer objetivamente o significado desses conceitos em face de sua anemia significativa[5]. Por necessidade lógica, as consequências práticas disso podem ser resumidas na (i) hipertrofia das funções do juiz e (ii) no arrefecimento do papel das partes. Eduardo José da Fonseca Costa, ao abordar a questão, afirma que dessa construção – do processo construído sob o entorno das vigas dos “fins públicos” – decorre que o juiz “imponha aditamentos oficiosos ao objeto litigioso; supra oficiosamente os pressupostos processuais; investigue ou fixe fatos não alegados; flexibilize o procedimento-padrão; inverta o ônus da prova; relativize a res iudicata sem provocação das partes (especialmente em favor da própria Fazenda Pública em juízo); conceda provimentos ex officio [ativismo autoritário publicístico radical]”[6].
Com efeito, ao observar a “relazione” redigida pelo então Ministro Guardasigilli Grandi, em 1940, para a aprovação do Codice di Procedura Civile, isso se materializa de forma incontroversa. São inúmeras as passagens que mostram que o modelo fascista apostou na diminuição do papel das partes em detrimento do papel do juiz, sempre fundamentado na ideia da existência de fins superiores, tais quais a “paz” ou a “justiça” social. Obviamente, isso aconteceu porque as diretrizes da “revolução fascista” foram a “característica essencial do código”[7].
Os poderes do juiz são mencionados em diversas passagens. A título exemplificativo, veja-se que existiu a constatação da necessidade do “fortalecimento do princípio da autoridade no Estado [...] porém, que não se reduz a um simples aumento das atribuições de um órgão do Estado, nem a uma extensão da ingerência deste nas relações da vida privada e na esfera dos direitos individuais do cidadão”. Afirmou-se que o processo no Estado fascista era sobretudo um “instrumento para realizar aquilo que as palavras do Duce indicaram como meta da revolução fascista: uma concretização de uma justiça social superior” daí decorrendo a necessidade de um “reforço sistemático dos poderes do juiz e concentração das atividades processuais sob a sua guia”[8].
Tal reforço foi sempre justificado pela “fé do povo na justiça”, vale dizer, tal aumento de poderes do Estado-juiz tinha como base transformar o processo em um instrumento “digno de tal fé”[9]. Outra consequência dessa “fé/confiança” no Estado foi a ideia de um juiz “próximo” dos litigantes, que ficou evidente na justificativa da concessão de poderes ao juiz para determinar o comparecimento pessoal das partes, algo que permitiria uma aproximação, que, por sua vez, facilitaria “uma espécie de conversa confiante e esclarecedora”[10]. Existindo a figura do juiz confiável, defensor dos superiores interesses públicos, justificou-se também a concessão ao juiz de poderes para flexibilização procedimental, com o intuito de “caso a caso, fixar o procedimento que ele considere mais adequado às necessidades concretas da controvérsia”[11].
A própria organização do código também deixou clara a troca de racionalidade: “enquanto o código de 1865 iniciava o seu primeiro livro, dedicado ao processo de cognição, das disposições gerais sobre o exercício da ação, o novo código começa com a jurisdição e o juiz. Esta variação de ordem sistemática é uma indicação de uma mudança de mentalidade”[12].
Uma das alterações mais fortes apareceu no tema das provas: além das inúmeras concessões de atividade probatória ex officio com o fito de não mais constranger o juiz a “fechar os olhos de frente para a verdade” – a já mencionada possibilidade de determinar o comparecimento pessoal (art. 117); a hipótese de inspeção de pessoas e coisas (art. 118) e a sua exibição em juízo (art. 210); o poder de ordenar variados tipos de prova (art. 258 e seguintes) –, também se apostou fortemente na “libera valutazione” da prova, em detrimento de qualquer espécie de “tarifação”, uma vez que essa seria uma necessidade para compreender “in modo non meccanico la viva realtà”[13].
Concentrado na figura do juiz, o código apostou em uma grande ampliação dos poderes do Estado. Há uma troca de vetor, ou, nas palavras do próprio Ministro Guardasigilli Grandi, uma mudança de mentalidade no modo como se passa a encarar o “processo” civil: de coisa das partes, passa a ser meio/instrumento do Estado concretizar seus interesses[14]. Requisito indispensável para a consolidação do modelo, é claro, foi a formação de uma cultura jurídica apta a recepcionar tal ideia[15]. Em outros termos, a dita “fé do povo na justiça” poderia ser bem ressignificada como “fé do povo no Estado [na figura do juiz]”. Configurada essa cultura, que enxerga no Estado o ente capaz de saber e realizar aquilo que é melhor para as partes dentro de um processo que trata dos seus próprios interesses, o descalabro da liberdade é recepcionado menos como um achaque do tirano que o impõe, e mais como uma delegação virtuosa daquele que, ciente de sua ignorância, delega ao médico o cuidado de uma doença, por conta de sua própria inépcia em tratar a enfermidade. Talvez o problema esteja, justamente, em tratar a liberdade como se trata uma doença: uma se delega, a outra não.
Notas e Referências
[1] Lacchi, Luigi. Tra giustizia e repressione: i volti del regime fascista. In: Lacchi, Luigi (ed.), Il diritto del duce. Giustizia e repressione nell'Italia fascista, Rome: Donzelli, 2015. p. 24.
[2] Cf. Otávio Luiz Rodriguez, o “conceito de guerrilha” é aquele que “nunca se sabe onde está, o que é, suas dimensões e seus efeitos. Pode estar em todos os lugares e em lugar nenhum. Como estratégia de combate, é um excelente modo de se fomentar o desenvolvimento de um conceito, até porque inviabiliza qualquer crítica sistemática ou tentativa de controle”. RODRIGUES JR., Otávio Luiz. Direito civil contemporâneo: estatuto epistemológico, constituição e direitos fundamentais. 2. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2019. p. 237.
[3] Vale retomar crítica de Diego Crevelin ao instrumentalismo processual, que, nesse sentido, aborda justamente o uso dessa espécie de conceitos para fundamentar suas proposições teóricas: “Indagações não respondidas, forçoso concluir que nesse campo o instrumentalismo promete demais e entrega de menos: exige sensibilidade para captar valores sociais em comunidades complexas e conclama juízes a fazerem justiça, mas não oferece uma teoria dos valores nem uma teoria da justiça para orientá-los; arroga para si (sem revelar os critérios da sua avaliação) os resultados que considera bem-sucedidos, mas imputa os excessos àqueles que, seduzidos e desorientados por seu discurso frouxo, se perdem pelo caminho; apela à sensibilidade, embora o Direito não possa impô-la, avaliá-la nem controlá-la; depende de pessoas inatamente virtuosas, não de disciplina metodológica. Daí a contraposição entre ‘justiça’ e ‘fórmulas frias da lei’: esta, em maior ou menor medida, independe de seres humanos ilustrados; aquela, sem teorização de base, só pode vir a lume a partir de juízes ‘verdadeiramente’ instrumentalistas (seja lá o que isso queira dizer)”. CREVELIN, Diego. Impartialidade: A divisão funcional de trabalho entre partes e juiz a partir do contraditório. Belo Horizonte, MG: Casa do Direito, 2021, pp. 260-261.
[4] Razão pela qual os maiores avanços do Poder sobre a liberdade se deram em Estados configurados nesses moldes. Ora, se na monarquia o Poder geralmente era ancorado (i) pelos obstáculos do Direito divino; (ii) pelos costumes de uma tradição forte no domínio social e, por fim; (iii) pela sua própria personificação na figura do monarca, diferente passa a ser o modelo opositor. Com a ruptura fornecida pelo abandono da monarquia, o Poder encontrou uma forma de expansão invertendo todos esses fundamentos: agora, o Poder passa a decorrer direto da soberania popular, sendo acompanhado pela praga do relativismo moral e por sua própria abstração. Aqui, o raciocínio é simples: como o Poder decorre da vontade geral da soberania do povo – e não mais do Direito divino – o Poder não pode errar, porque é o próprio povo em exercício. As amarras rígidas do Direito divino também desmoronam, porque a vontade geral não é mais perene por natureza, mas maleável e pueril. Ver em DIETRICH, William Galle. O processo: a história natural do seu sufocamento. Empório do direito, São Paulo, 08 mai. 2019.
[5] Expressão frequentemente utilizada por Lenio Streck. A título exemplificativo, “[...] mas apenas (ou quase tão somente) ao ‘interesse público’, que, convenhamos, não passa de uma expressão que sofre de ‘anemia significativa’, nela ‘cabendo qualquer coisa’, mormente se for a partir do ‘princípio’ da razoabilidade, álibi para a prática de todo e qualquer pragmatismo”. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 6. ed. ver. mod. e ampl. São Paulo, Saraiva, 2017. p. 667.
[6] COSTA, Eduardo José da Fonseca. Uma espectroscopia ideológica do debate entre garantismo e ativismo. In: DIDIER JR., Fredie; NALINI, José Renato; RAMOS, Glauco Gumerato; LEVY, Wilson (Orgs.). Ativismo judicial e garantismo processual. Salvador: Juspodivm, 2013. p. 180.
[7] GRANDI, Dino. Relazione ala maestà del re imperatore. Gazzetta ufficiale del regno d’Italia, 28 out. 1940. Disponível em: <https://www.gazzettaufficiale.it/eli/gu/1940/10/28/253/sg/pdf>. p. 4003.
[8] GRANDI, Dino. Relazione ala maestà del re imperatore. Gazzetta ufficiale del regno d’Italia, 28 out. 1940. Disponível em: <https://www.gazzettaufficiale.it/eli/gu/1940/10/28/253/sg/pdf>. p. 4004.
[9] GRANDI, Dino. Relazione ala maestà del re imperatore. Gazzetta ufficiale del regno d’Italia, 28 out. 1940. Disponível em: <https://www.gazzettaufficiale.it/eli/gu/1940/10/28/253/sg/pdf>. p. 4003.
[10] GRANDI, Dino. Relazione ala maestà del re imperatore. Gazzetta ufficiale del regno d’Italia, 28 out. 1940. Disponível em: <https://www.gazzettaufficiale.it/eli/gu/1940/10/28/253/sg/pdf>. p. 4012.
[11] GRANDI, Dino. Relazione ala maestà del re imperatore. Gazzetta ufficiale del regno d’Italia, 28 out. 1940. Disponível em: <https://www.gazzettaufficiale.it/eli/gu/1940/10/28/253/sg/pdf>. p. 4013.
[12] GRANDI, Dino. Relazione ala maestà del re imperatore. Gazzetta ufficiale del regno d’Italia, 28 out. 1940. Disponível em: <https://www.gazzettaufficiale.it/eli/gu/1940/10/28/253/sg/pdf>. p. 4015.
[13] GRANDI, Dino. Relazione ala maestà del re imperatore. Gazzetta ufficiale del regno d’Italia, 28 out. 1940. Disponível em: <https://www.gazzettaufficiale.it/eli/gu/1940/10/28/253/sg/pdf>. p. 4024.
[14] Sobre o tema, RAATZ, Igor. ANCHIETA, Natascha. Uma teoria do processo sem processo? A formação da “teoria geral do processo” sob a ótica do garantismo processual. Belo Horizonte, MG: Casa do Direito, 2021, pp. 115-116.
[15] Sobre o ponto, ver DIETRICH, William Galle. Cultura constitucional em declínio e degradação do processo. Empório do direito, São Paulo, 19 nov. 2019.
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