Por Redação - 18/04/2017
O Ministério Público do Estado de Mato Grosso do Sul (MPMS) ofereceu denúncia por crime de denunciação caluniosa contra vítima que, na tentativa de inocentar o companheiro, retificou em Juízo as acusações feitas na fase policial.
De acordo com os autos da Ação Penal n° 0800389-67.2013.8.12.0007, a acusada teria sido vítima de agressões e ameaça de morte, restando a lesão corporal comprovada por laudo. Ainda assim, mesmo advertida de que sua conduta teria implicações penais, a acusada disse ter feito falsas acusações contra o companheiro.
Contudo, em sentença absolutória confirmada pelo Tribunal de Justiça daquele Estado, a Juíza titular da 2ª Vara de Cassilândia-MS observou que as afirmações feitas no depoimento judicial não passaram de uma tentativa desesperada da mulher em livrar seu companheiro. "É evidente e qualquer operador jurídico que tenha um mínimo de prática na área sabe que a ré foi lesionada, apenas tenta inocentar seu amado", ressaltou a magistrada.
Leia o inteiro teor da sentença:
Autos n° 0800389-67.2013.8.12.0007
Ação: Ação Penal - Procedimento Ordinário
Autor: Ministério Público Estadual
Réu: E. D. de F.
Vistos, etc.
I. RELATÓRIO
E. D. de F., já qualificada nos autos supramencionados, foi denunciada pelo Ministério Público, como incursa, nas penas do art. 339 do Código Penal, sendo-lhe imputada a prática dos seguintes fatos:
No dia 16 de fevereiro de 2012, às 08h28min, na Delegacia de Polícia Civil, localizada na Rua João Vieira Gonçalves, n° 56, Centro, nesta cidade, E. D. de F. deu causa à instauração de investigação policial e de processo judicial contra A. L. P. de M., imputando-lhe os crimes de lesão corporal e ameaça, previstos nos artigos 129, 9°, c.c 147, ambos do Código Penal, sabendo ser este inocente.
Consta da denúncia que no dia e horário supracitados, a denunciada compareceu na Delegacia de Policia Civil e imputou ao seu convivente a prática dos crimes de lesão corporal e ameaça em violência doméstica.
Segundo a denunciada, no dia 11 de fevereiro de 2012, por volta das 11 horas, em sua residência, localizada na (...), nesta cidade, A. L. teria ofendido a integridade corporal da mesma, causando-lhe lesões corporais de natureza leve, bem como a teria ameaçado de morte.
A denunciada alegou que teria sofrido agressão física, consistente em chutes nas pernas e tapas no rosto, e ameaças de morte.
Diante das declarações, instaurou-se Inquérito Policial e o Ministério Público ofereceu denúncia contra A. L., autos da ação penal n° 0001645-15.2012.8.12.0007.
Entretanto, narra a denúncia, que durante a instrução penal daquela ação, em seu depoimento judicial, a denunciada retificou suas alegações e confessou que mentiu ao imputar a prática dos crimes mencionados contra seu convivente, sabendo-o inocente.
O Ministério Público menciona ainda na denúncia o depoimento da denunciada em Juízo nos autos supramencionados.
Foi juntado aos autos a ação penal aludida (autos n° 0001645-15.2012.8.12.0007).
A denúncia foi então recebida (fls. 65), a ré devidamente citada (fls. 68), tendo apresentado sua defesa prévia às fls. 69-71.
O feito foi saneado às fls. 72-73.
Realizada audiência de instrução, foi colhido o depoimento de uma testemunha, bem como o interrogatório da ré (fls. 80, áudio e vídeo).
O Ministério Público apresentou então seus memoriais às fls. 85-95, ocasião em que pediu a integral procedência da denúncia, com a condenação da ré nas sanções do art. 339 do Código Penal.
A defesa da ré, por sua vez, apresentou seus memoriais às fls. 97-105, sustentando a tese de insuficiência probatória para embasar um decreto condenatório, pugnando pela aplicação do princípio do in dúbio pro réu, e conseqüentemente pela absolvição da ré, com fulcro no art. 386, VII, do Código de Processo Penal.
Os autos vieram então conclusos para sentença.
É o relatório.
Passo a decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
Do crime do art. 339, do Código Penal.
O tipo penal previsto no art. 339, do Código Penal, pelo qual foi a ré denunciada, é o de denunciação caluniosa, e tem a seguinte redação:
Art. 339. Dar causa à instauração de investigação policial, de processo judicial, instauração de investigação administrativa, inquérito civil ou ação de improbidade administrativa contra alguém, imputando-lhe crime de que o sabe inocente: Pena reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos, e multa.
O fato imputado à ré amolda-se à esta descrição legal, mas tão somente de formalmente.
É certo que a ré mudou sua manifestação na Delegacia depois que foi ouvida em juízo, inocentando o réu. Isso ocorre todos os dias nos processos, especialmente os de violência doméstica.
Tanto que se observa do termo degravado que o Juiz que me substituía insistiu com a então vítima como seria mentira o fato se havia feito exame de corpo de delito e estava lesionada, ao que a ré diz que a lesão foi causada por ela mesma.
É evidente e qualquer operador jurídico que tenha um mínimo de prática na área sabe que a ré foi lesionada, apenas tenta inocentar seu amado.
Por ocasião do depoimento prestado às fls. 80, este se encontrava preso por tentativa de homicídio. Queria desesperadamente livrá-lo do cárcere e mente, tanto que se pode ver do vídeo gravado como se mexe, como está incomodada.
É certo que esta vítima, ora colocada na posição de ré, foi ainda além das demais e não disse que não queria que o réu fosse punido, que perdoava, como se houve todos os dias, mas disse que os fatos não aconteceram.
Deve provavelmente saber por tantos programas de TV que hoje não importa a vítima voltar atrás, o processo tem seguimento, já que o entendimento majoritário é de que a ação é pública incondicionada.
Esta magistrada normalmente absolve quando há o perdão, mas inclusive no caso dos autos tive de fazer diferente e pronunciar o lá réu na tentativa de homicídio, mantendo-o preso na ocasião. É que na ocasião, ao que consta, o amado da ré estava a sufocá-la em lugar longínquo, e não fora um casal passar pela estrada e ouvir o grito de socorro da ora ré, esta poderia já estar morta a uma hora dessas.
Há duas medidas de proteção envolvendo as partes, pelo que vejo do sistema SAJ.
Ora, a situação é grave.
O desespero da ora ré, com o amado então preso, era tamanho. Foi ao último das consequências – prefere ser condenada mas livrar o amado.
Não se trata, pois, de pessoa que dá causa à ação penal sabendo ser inocente quem ela acusa.
Trata-se do desespero de uma vítima de violência doméstica que quase morreu sendo agredida por seu amado e, nesse misto de emoção que envolve crimes tais, quer que este se livre da cadeia.
Seu processo autodestruitivo por esta paixão merece piedade, tratamento psiquiátrico ou psicológico que seja, mas não condenação criminal.
O fato é atípico. Não se trata de inocência do amado, e sim de desespero da vítima que, malgrado quase tenha morrido, ama seu agressor. Se pudesse, ao que consta, iria para cadeia em seu lugar.
III. DISPOSITIVO
ISTO POSTO, diante de toda a prova carreada aos autos,não se tratando de inocência e sim de vítima que quer que seu amado se livre da prisão,atípico o fato, portanto, julgo IMPROCEDENTE o pedido contido na denúncia oferecida pelo Ministério Público Estadual, e ABSOLVO a ré E. D. de F. das penas do art. 339, do Código Penal.
Publique-se.Registre-se e Intimem-se.
Transitada em julgado, proceda-se às comunicações necessárias, arquivando-se estes autos.
Cassilândia-MS, 17 de setembro de 2014.
Luciane Buriasco Isquerdo
Juíza de Direito
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Fonte: Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul
Confira obra lançada pela Editora Empório do Direito sobre violência doméstica e familiar contra mulher:
Dano Psíquico como Crime de Lesão Corporal na Violência Doméstica
“(...) Claro que o resultado só poderia ser esta primorosa obra que aborda um tema nunca antes enfrentado na doutrina brasileira com tamanha largueza, coragem e sensibilidade: o reconhecimento do delito de lesão corporal por ofensa à saúde, na hipótese de dano psíquico decorrente de violência psicológica. Afinal, a lesão da alma não cicatriza, é mal que não tem cura. E a justiça não pode ser cega. É necessário que alguém tenha coragem de arrancar-lhe a venda dos olhos para que seja punido quem comete o crime mais recorrente e com maior grau de reincidência.”
Maria Berenice Dias
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