Uso de drogas para consumo próprio é inconstitucional!

25/10/2015

Por Redação - 25/10/2015

O Juiz de Direito Substituto Matheus Martins Moitinho, da Comarca de Chorrochó (BA), proferiu sentença nos autos da ação n. 0000153-37.2009.8.05.0217, em que absolveu acusado pela prática de tráfico ilícito de drogas por ausência de comprovação de atos de mercancia.

Em brilhante decisão, o Magistrado destacou que

Para fins de configuração do crime de tráfico de drogas, há de se ter em mente a mínima prática de atos tendentes à caracterização da mercância/comércio/negócio da substância apreendida. Isso porque, o mero fato de o indivíduo ser flagrado na posse de material entorpecente não pode simplesmente gerar a presunção de que o mesmo atua no comércio ilícito da substância, sendo verdadeiro ônus da acusação provar a existência de fatos ou circunstâncias indicativas da existência de comercialização pelo Acusado.

Assim, desclassificou o delito para a conduta prevista no art. 28 da Lei n. 11.343/06, referente ao uso de drogas para consumo próprio. Contudo, entendeu que a criminalização de tal conduta constitui violação ao princípio da proporcionalidade e reduz o núcleo essencial dos direitos de intimidade e de autodeterminação. Diante disso, declarou incidentalmente a inconstitucionalidade do art. 28 da Lei de Drogas e julgou improcedente a supramencionada ação.

Confira abaixo a íntegra da decisão.


PROCESSO Nº 0000153-37.2009.8.05.0217

AUTOR: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DA BAHIA

RÉU: XXXXX

RÉU: YYYYY

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SENTENÇA

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Atribuo ao presente ato força de mandado, para fins de possibilitar o seu célere cumprimento, em consagração ao princípio constitucional da razoável duração do processo, servindo a segunda-via como instrumento hábil para tal.

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1) Relatório

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Cuida-se de ação penal oferecida pelo Ministério Público do Estado da Bahia em desfavor de XXXXX e YYYYY, ambos devidamente qualificados nas fls. 02 dos autos, tendo a exordial acusatória apresentado a seguinte narrativa (fls. 03):

“Segundo informações colhidas no Inquérito Policial, no período vespertino do dia 11 (onze) de fevereiro de 2007, o denunciado XXXXXX começara a destruir os objetos de sua residência, quando os policiais e localizaram 450 (quatrocentos e cinquenta) gramas de canabis sativa, conhecida por maconha, enterrada no chão do quarto.

Também fora encontra na residência do primeiro denunciado uma arma, tipo espingarda de cano de fabricação artesanal, restando apurado que aludida arma pertencia ao segundo denunciado, YYYYYY, tendo este lá guardado, sendo do conhecimento de E.N. de F..

A materialidade do delito resta devidamente comprovada, diante do laudo de constatação preliminar (fls. 15), demonstrando tratar-se a droga apreendida de maconha, substância entorpecente, que causa dependência química, vedada a sua comercialização.

A autoria também resta demonstrada, face o primeiro denunciado assumir ser proprietário da droga apreendida, praticando XXXXXX a conduta de ter em depósito substância entorpecente, incidindo na conduta descrita no art. 33, caput, Lei nº 11.343/06.

No tocante à arma apreendida, vê-se que o primeiro denunciado, XXXXXX, tinha pleno conhecimento da arma guardada em sua residência, e o segundo denunciado, YYYYYY, era o proprietário de mencionada arma, cedendo-a para o outro denunciado, referindo-se aos tipos penais descritos no art. 12, caput, e art. 14, respectivamente, da Lei 10.826/2003.

Ex positis, estão os denunciados XXXXXX, incurso nas penas do art. 33, caput, da Lei 11.343/20006, em concurso material com o art. 12, caput, da Lei 10.826/2003, e o denunciado YYYYYY incurso nas penas do art. 14, caput, da Lei 10.826/2003, razão pela qual requer o Órgão Ministerial;”.

Denúncia recebida no dia 05 de julho de 2007 (fls. 45), servindo como marco interruptivo da prescrição.

Às fls. 47 foi exarada decisão que entendeu pelo relaxamento da prisão do Acusado XXXXXX.

Nas fls. 54, XXXXXX apresentou sua defesa nos autos, através dos seus advogados, alegando inicialmente que o mesmo já foi usuário de drogas e que a quantidade apreendida sob sua posse seria de apenas 450 gramas de maconha, não se enquadrando como tráfico de drogas, sendo que o fato de ter sido encontrada enterrada na sua casa autorizaria concluir que se trataria de vestígio esquecido de seu passado como usuário.

Quanto à imputação relacionada à posse de arma de fogo na sua residência, afirmou que a mesma pertenceria ao Sr. YYYYYY, doravante corréu nos autos. Por fim, argumentou que não teria sobrevindo aos autos laudo de constatação definitivo quanto à substância apreendida, o que seria uma condição de procedibilidade para a ação penal.

Laudo pericial da arma apreendida nas fls. 39.

Interrogatório de XXXXXX nas fls. 70 dos autos.

O Corréu YYYYYY foi interrogado nas fls. 73.

Laudo de constatação definitivo da substância apreendida nas fls. 82, concluindo pelo caráter entorpecente da mesma para “maconha”.

Defesa de YYYYYY nas fls. 106, na qual o mesmo pugnou pela absolvição pela imputação, em razão da arma apreendida ter sido flagrada na posse da pessoa de XXXXXX.

Audiência de instrução que se desenrolou como descrito nas fls. 133, 145 e 146 dos autos.

Nas fls. 153 o MP apresentou alegações finais, pugnando pela procedência parcial do pedido formulado na denúncia, a importar no reconhecimento da atipicidade da imputação relacionada ao art. 12, da Lei nº 10.826/03 atribuída a XXXXXX, por força de se tratar de conduta ocorrida dentro do período de abolitio criminis temporária. Quanto ao delito previsto no art. 33, caput, Lei nº 11.343/06, argumenta o MP que há prova da autoria e materialidade delitiva, tanto pela confissão do Acusado e corroboração da versão pelas testemunhas ouvidas em juízo, quanto pelo fato de ter nos autos conclusão positiva para a substância popularmente conhecida como “maconha” no laudo de constatação definitivo.

Em relação ao delito previsto no art. 14, da Lei nº 10.826/03 atribuído a YYYYYY, o MP pugnou pela procedência do pedido formulado na denúncia, sob a alegação de que a instrução criminal teria provado a autoria e materialidade delitiva, essa em razão de ter sobrevindo aos autos laudo pericial positivo para a aptidão de disparos da arma apreendida, aquela em razão de ter sido comprovada a propriedade da arma quanto à pessoa do Corréu referido através da sua confissão,

O Réu XXXXXX apresentou alegações finais nas fls. 161/162, pugnando pela absolvição pela insuficiência de provas, bem como pelo fato de que o Acusado ter confessado nos autos que é usuário de drogas, de modo que não haveria prova quanto à venda ou consumo da mesma, posto que enterrada na residência do Acusado há mais de 30 (trinta) dias.

O Corréu YYYYYY apresentou alegações finais nas fls. 163/167, na qual pugnou, em suma, o seguinte: a) o fato de a arma estar desmuniciada; b) que o Réu não negou a propriedade da arma; c) que somente haveria consumação do crime caso haja disponibilidade de uso de arma, a revelar atipicidade da conduta. Diante disso, pugnou pela absolvição da imputação irrogada em seu desfavor nos autos, ou, no caso de assim não entender o Magistrado, que seja aplicada a pena no mínimo legal, em razão das condições subjetivas favoráveis, a impor a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos.

É o que merece ser relatado. Passo a fundamentar e decidir.

2) Fundamentação

2.1 Da Preliminar de Ausência de Condição de Procedibilidade Argüida pelo Réu XXXXXX. Superveniência de Laudo de Constatação Definitivo nos Autos. Afastamento

Em sede de defesa prévia o Acusado de nome XXXXXX arguiu como matéria preliminar a ausência de laudo de constatação definitivo como condição específica de procedibilidade não satisfeita nos autos, no seu entender. Por se tratar de matéria que tem potencialidade para impedir a análise do mérito da controvérsia, passo a aprecia-la de forma antecedente às demais.

Ao fazê-lo, entendo por afastar a preliminar suscitada.

Em matéria de delitos previstos na Lei de Drogas (Lei n. 11.343/06), a jurisprudência do e. TJBA já possui entendimento solidificado no sentido de que a ausência de laudo de constatação de definitivo não conduz ao reconhecimento de nulidade processual, quando existente laudo de constatação preliminar concluindo pelo caráter entorpecente da substância e demais provas corroborando a conclusão obtida no laudo pericial preliminar:

APELAÇÃO CRIMINAL. ART. 33 DA LEI 11.343/06. COMPROVADAS AUTORIA E MATERIALIDADE DOS CRIMES. NULIDADE POR AUSÊNCIA DE LAUDO DEFINITIVO - IMPOSSIBILIDADE. DOSIMETRIA CORRETA. TRÁFICO PRIVILEGIADO – IMPOSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO . PENA MANTIDA. RECURSO DA PARTE CONHECIDO E DESPROVIDO. I Preenchimento dos Pressupostos Recursais. Recurso de Apelação interposto tempestivamente, respeitando as demais prescrições aplicáveis e descritas pelo artigo 593 e seguintes do Código de Processo Penal, autorizando, por conseguinte, o seu regular conhecimento. II – O Magistrado a quo julgou procedente a denúncia, condenando o Apelante (fls. 72/79) , a uma pena de 09 (nove) anos de reclusão, em regime inicialmente fechado, e 900 (novecentos) dias-multa, sendo cada dia-multa no valor 1/30 do salário mínimo vigente. III – Em suas razões de Recurso, a Defesa pleiteou a absolvição do acusado alegando que a materialidade delitiva não se encontra comprovada, já que o laudo pericial definitivo não foi colacionado aos autos e que existe dúvidas quanto à autoria do crime. Por fim, em observância ao princípio da eventualidade, pleiteou a redução da pena-base e a aplicação do § 4º, do art. 33, da Lei 11.343/06 (tráfico privilegiado). IV - NULIDADE DO PROCESSO POR AUSÊNCIA DE LAUDO DEFINITIVO. Alegou a Defesa a nulidade da sentença, porquanto o laudo pericial definitivo não foi colacionado aos autos. Antes de adentrar na discussão da referida alegação, entendo que, por se tratar de questão prejudicial, deve ser analisada antes do mérito, ou seja, em sede de preliminar. É o que, de logo, passo a fazer. Não subsiste a tese defensiva de anulação da sentença por ausência de laudo definitivo, tendo em vista que, conforme bem salientado pela MM. Juíza de primeiro grau, é dispensável o laudo pericial definitivo, se existem outras provas capazes de atestar a natureza da droga. No caso em comento, o laudo provisório (fl. 15) e o interrogatório do acusado (fls. 127/128) comprovam que a droga encontrada em sua posse era cocaína. Desta forma, existindo outras provas capazes de demonstrar a natureza da droga, torna-se desnecessária a presença do laudo definitivo no processo. Dessa forma, rejeito a preliminar arremessada. V- Em relação à materialidade delitiva, restou convincentemente comprovada pelo Auto de Exibição e Apreensão (fl. 15), em que consta a apreensão em poder do Apelante de 61 (sessenta e uma) porções de cocaína em tamanhos diversos, envoltas em plásticos de cores verde, branco e cinza, 01 (um) tablete de cocaína, pesando aproximadamente 550g (quinhentos e cinquenta gramas), 02 (dois) pedaços grande de crack envoltos em uma fita adesiva, pesando aproximadamente 730g (setecentos e trinta gramas) e 01 (uma) balança de precisão, modelo sf-410 com capacidade para 7Kg (sete quilogramas); pelo Laudo de Constatação (fls. 18) que afirmou serem as substâncias analisadas cocaína e crack; além de alguns papéis de anotações, contendo os nomes dos destinatários, que estavam grampeados nos pacotes de drogas (fl. 21). VI - No que concerne à autoria, por sua vez, de maneira mais objetiva, seu convencimento no crime de tráfico pode ser facilmente alcançado quando são levados em consideração os seguintes fatores: a circunstância em que se deu a prisão em flagrante; a quantidade de droga apreendida; a natureza da droga; a forma em que a droga foi encontrada. Embora o Apelante negue, em Juízo, a prática do crime, as provas contidas nos autos demonstram que ele, de fato, praticava o delito de tráfico de drogas. No comércio de entorpecentes, a negativa incondicional da autoria é regra entre os traficantes, não prejudicando o convencimento do Magistrado, se as demais circunstâncias indicarem a necessidade da condenação. É que a prova da mercancia não necessita ser direta, mas deve ser firmada quando os indícios e presunções, analisados sem preconceito, formam um todo harmônico e demonstrem a distribuição comercial do entorpecente. As testemunhas ouvidas em juízo tornam inequívoca a prática delitiva por parte do sentenciado. No presente caso, o Apelante foi preso em circunstâncias que permitem concluir que traficava substâncias entorpecentes. Ex positis, o pleito do Apelante deve ser rechaçado de forma veemente, tendo agido acertadamente a MM. Juíza ao condená-lo como incurso nas penas do artigo 33, caput, da Lei 11.343/06, razão pela qual deverá ser mantida a decisão recorrida quanto à autoria e materialidade delitivas. VII - DOSIMETRIA DA PENA. Encaminhando a análise para o final, quanto à dosimetria da pena, convém fazer algumas observações. No tocante à dosimetria da reprimenda, revelou-se acertada a pena atribuída pela Magistrada a quo no sentido da fixação da pena definitiva. No caso em tela, a MM. Juíza considerou como desfavoráveis as seguintes circunstâncias judiciais: culpabilidade, conduta social, consequências do crime, natureza e quantidade da droga, fixando a pena-base em 09 (nove) anos de reclusão. A esse respeito, não se mostra legítima, apenas, a fundamentação dada pela MM. Juíza para valorar as consequências do delito, pois estas devem ser observadas casuisticamente e não de forma abstrata como fez a sentenciante. Assim, tal circunstância deve ser retirada da análise da pena-base. A valoração de 04 (quatro) circunstâncias autorizaria a fixação da pena-base em 10 (dez) anos de reclusão. Entretanto, como só houve recurso da defesa e a pena fixada pela MM. Magistrada é aquém do quanto deveria, mantenho a pena-base em 09 (nove) anos de reclusão. Na segunda fase, não existem agravantes, nem atenuantes, razão pela qual mantenho a pena em 06 (seis) anos de reclusão. Na terceira etapa de aplicação da pena, deve-se levar em conta a presença de causas de aumento e de diminuição. Nesta fase, entendo que a r. sentença não pode ser reformada. Importa mencionar que o conteúdo do § 4º do artigo 33 garante a possibilidade de aplicação do privilégio apenas para o chamado "marinheiro de primeira viagem". No caso sub judice nota-se que o Apelante tem diversas passagens pela polícia e ações penais em curso em decorrência do suposto cometimento do delito de tráfico de drogas (art. 33, Lei 11.343/06), demonstrando, portanto, que o réu participa de atividades criminosas. No que tange à pena de multa, deve ser mantida em 900 (novecentos) dias-multa por guardar a devida proporção com a pena privativa de liberdade. Fica mantido o regime fechado para o início do cumprimento de pena. VIII - Ante o exposto, CONHEÇO do Recurso de Apelação interposto, NEGANDO-LHE provimento, mantendo-se a sentença em todos os seus termos.

(TJ-BA - APL: 00008675820118050174 BA 0000867-58.2011.8.05.0174, Relator: Nágila Maria Sales Brito, Data de Julgamento: 06/12/2012, Segunda Camara Criminal - Segunda Turma, Data de Publicação: 06/08/2013)

É de somar o fato de que houve a juntada do laudo pericial definitivo nas fls. 82 dos autos, no qual se tem a corroboração com a conclusão lançada no laudo preliminar, obtendo-se como resultado aquele positivo quanto ao fato de se tratar a substância apreendida como aquela popularmente conhecida por “maconha”, a qual tem o seu uso e comercialização proscrito no país.

A jurisprudência do e. TJBA possui posição firmada no sentido de não existir nulidade processual quando o laudo de constatação definitivo é juntado antes do momento da prolação da sentença pelo Magistrado, o que se afina com a situação descrita nos autos:

APELAÇÃO CRIMINAL. TRÁFICO DE DROGAS. PRELIMINAR DE NULIDADE. JUNTADA EXTEMPORANEA DE LAUDO TOXICOLÓGICO DEFINITIVO. IMPOSSIBILIDADE. MATERIALIDADE COMPROVADA PELO LAUDO DE CONSTATAÇÃO PROVISÓRIA. PLEITO ABSOLUTÓRIO. ALEGAÇÃO DE INSUFICIÊNCIA DE PROVAS. IMPOSSIBILIDADE. CREDIBILIDADE DOS DEPOIMENTOS DOS POLICIAIS E PROVA PERICIAL. EQUIVOCO NA DOSIMETRIA DA PENA. CORREÇÃO.CAUSA ESPECIAL DE DIMINUIÇÃO PREVISTA NO § 4º DO ART. 33 DA LEI 11.343/2006. FRAÇÃO DO REDUTOR. DISCRICIONARIEDADE. NATUREZA E QUANTIDADE DE DROGA. APLICAÇÃO DA FRAÇÃO NO PATAMAR INTERMEDIÁRIO DA ? (METADE). RESTRITIVAS DE DIREITOS E REGIME PRISIONAL ABERTO. POSSIBILIDADE. PRECEDENTES. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. A alegação de nulidade do processo por ausência do laudo pericial definitivo, quando da prisão, não pode prosperar, eis que a prova da materialidade do delito pôde ser feita através de outros meios como o laudo de constatação provisória e o auto de exibição e apreensão. Ademais, o laudo pericial definitivo foi juntado nos autos após a audiência de instrução e julgamento, porém antes das alegações finais, o que possibilitou o exercício pleno do contraditório e da ampla defesa, não existindo prejuízos. Preliminar Rejeitada. A natureza das drogas apreendidas, o local da prisão, que é conhecido como ponto de venda, a apreensão de dinheiro em poder do réu, que não comprovou auferir renda, aliado a prova pericial e os depoimentos prestados pelas testemunhas, sob o crivo do contraditório, demonstram a materialidade e a autoria do crime de tráfico de entorpecentes pelo acusado. Mantida a pena base em 05 anos de reclusão, reavaliaram-se as circunstâncias judiciais, reconhecendo-se a primariedade e os bons antecedentes, bem como a ausência de dedicação a atividade criminosa, sendo imperioso reconhecer a minorante do § 4º do art. 33 da Lei de Drogas, fixando o patamar intermediário da ? (metade), sobretudo quando demonstrado, no particular, que as drogas apreendidas possuem elevado poder viciante. Tornada a pena definitiva em 02 anos e 06 meses de reclusão e 250 dias multa à base de 1/30 (um trinta avos) do salário mínimo vigente à época dos fatos, é recomendável a substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos, bem como a aplicação do regime inicial aberto, de acordo com a jurisprudência do STF, corroborada pela Resolução nº 05 do Senado Federal, publicada em 16 de fevereiro de 2012, na qual suspendeu a execução da expressão "vedada a conversão em penas restritivas de direitos", contida no parágrafo 4º do artigo 33 da Lei 11.343/06. Recurso conhecido e parcialmente provido para reduzir as reprimendas para em 02 (dois) anos e 06 (seis) meses de reclusão e 250 (duzentos e cinquenta) dias multa à base de 1/30 (um trinta avos) do salário mínimo vigente à época dos fatos. De ofício, aplicação do regime prisional aberto e substituição da pena corporal por duas penas restritivas de direitos na modalidade prestação de serviço a comunidade e limitação de fim de semana.

(TJ-BA - APL: 00012641220118050112 BA 0001264-12.2011.8.05.0112, Relator: Carlos Roberto Santos Araújo, Data de Julgamento: 17/05/2012, Segunda Camara Criminal - Primeira Turma, Data de Publicação: 16/11/2012)

Assim, rechaço a preliminar suscitada, posto que presente nos autos o laudo de constatação definitivo.

2.2 Do Mérito

2.2.1 Do Crime Previsto no art. 12, da Lei nº 10.826/03

Quanto à imputação relacionada ao art. 12, da Lei nº 10.826/03 atribuída ao Réu XXXXXX, é de se reconhecer na espécie a atipicidade da conduta, na linha do quanto argumentado pelo MP na peça de alegações finais.

Isso porque, o artefato bélico flagrado na posse do Acusado é aquele de natureza permitida, porém em desacordo com autorização legal, assim como se trata de conduta que ocorreu antes do dia 31 de dezembro de 2009, prazo-limite oferta pelo Estatuto do Desarmamento para que aqueles que tivessem em seu poder armas de fogo de uso permitido as regularizassem perante a Polícia Federal.

Ocorrido o fato no ano de 2007, momento em que se tinha como possível a via de regularização do artefato bélico perante a Polícia Federal, tem-se que o fato atribuído ao Acusado é atípico, por força da abolitio criminis temporária incidente na espécie.

Assim, é de se absolver o Acusado XXXXXX quanto a imputação referida, em razão de se tratar de conduta atípica.

2.2.2 Do Crime Previsto no art. 14, da Lei nº 10.826/03. Prescrição da Pretensão Punitiva que se Impõe. Extinção da Punibilidade do Agente (art. 107, IV, CP)

Na exordial acusatória o MP atribui ao Réu YYYYYY conduta prevista no art. 14, da Lei nº 10.826/03, a qual possui a seguinte redação:

“Art. 14. Portar, deter, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.”.

A denúncia restou recebida no dia 05 de julho de 2007, sendo que já se passaram mais de 08 (oito) anos (art. 109, IV, CP) entre o marco interruptivo da prescrição até o presente momento, sem que tenha havido a prolação de sentença nos autos.

Sendo assim, é impositivo o reconhecimento ex officio da prescrição pelo Magistrado na espécie, na forma do art. 61, parágrafo único, CPP, a repercutir na extinção da punibilidade do agente.

2.2.3 Do Crime Previsto no art. 33, caput, Lei nº 11.343/06

A) Da Materialidade

Consoante já enfrentado no tópico preliminar da presente, a materialidade do delito encontra-se comprovada nos autos, a partir da juntada aos autos de laudo de constatação definitivo que concluiu positivamente pelo natureza entorpecente da substância apreendida, atribuindo que a mesma possui com princípio ativo o tetra-hidro-canabinol, característica daquela popularmente conhecida por “maconha”.

Por se tratar de delito que deixa vestígios, o laudo pericial definitivo juntado aos autos satisfaz para efeito de comprovação da materialidade delitiva, na forma como disciplina o art. 158 do Código de Processo Penal Brasileiro.

B) Da Autoria

A respeito da autoria delitiva, a mesma encontra-se provada nos autos, a partir do quanto produzido em sede de instrução criminal.

Quando ouvida em juízo, a testemunha de prenome ZZZZZZ, policial civil que participou da diligência que resultou na prisão em flagrante do Acusado, devidamente compromissada, afirmou que o Acusado XXXXXX confessou a propriedade da droga encontrada na sua residência, tendo dito que era usuário de drogas.

Ainda foi dito pela referida testemunha que a droga estava acondicionada em uma sacola plástica, tendo sido encontrada enterrada no chão da casa de taipa em que reside o Acusado, estando pronta para consumo.

Em sede de interrogatório, o Acusado confessou que a droga apreendida era de sua propriedade, tendo afirmado em juízo que é usuário de drogas. Além disso, afirmou que a droga não teria por fim a comercialização, mas apenas o seu uso.

Tem-se que a confissão é admitida plenamente como prova no processo penal, desde que a mesma se encontre corroborada com demais provas produzidas no cenário da instrução. No caso em evidência, a versão apresentada a título de confissão pelo Acusado vai ao encontro do testemunho prestado pelo Sr. ZZZZZZ, o qual foi arrolado pelo Ministério Público do Estado da Bahia, de modo que a confissão é plenamente válida, atendendo ao disposto no art. 197 do Código de Processo Penal Brasileiro.

C) Da Tipicidade. Desclassificação Impositiva. Não Comprovação de Elementar da Mercância no Cenário Probatório. “Emendatio Libelli” que se Impõe para Desclassificar a Imputação para Aquela Prevista no art. 28, da Lei de Drogas. Inconstitucionalidade do art. 28, da Lei de Drogas. Violação ao Direito à Intimidade e ao Princípio da Materialização do Fato

O Ministério Público pugna pela condenação do Acusado nas penas previstas no art. 33, caput, da Lei nº 11.343/06, o qual possui a seguinte redação:

“Art. 33.  Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.”.

O referido dispositivo diz respeito ao popularmente conhecido crime de tráfico de drogas, no qual visa o legislador ordinário prevenir que a população incursione pela prática dos verbos descritos no tipo que se relacionem com a mercancia do material entorpecente, ainda que gratuitamente.

Em matéria metalinguística, a palavra tráfico possui os seguintes significados:

“Significado de Tráfico

s.m. Comércio, negócio; tráfego.

Comércio ilegal e clandestino.” (disponível em http://www.dicio.com.br/trafico/, acesso no dia 14 de setembro de 2015)

Para fins de configuração do crime de tráfico de drogas, há de se ter em mente a mínima prática de atos tendentes à caracterização da mercância/comércio/negócio da substância apreendida. Isso porque, o mero fato de o indivíduo ser flagrado na posse de material entorpecente não pode simplesmente gerar a presunção de que o mesmo atua no comércio ilícito da substância, sendo verdadeiro ônus da acusação provar a existência de fatos ou circunstâncias indicativas da existência de comercialização pelo Acusado.

Tal entendimento, é de se registrar, replica aquele que magistralmente restou adotado pelo Juiz de Direito Mauro Caum Gonçalves, titular da 2ª Vara Criminal do Foro Central de Porto Alegre/RS, donde obteve-se como conclusão a rejeição de vestibular acusatória na qual se imputou o delito de tráfico de drogas a um Acusado, em razão de não se ter na exordial mínima narrativa quanto a indícios de mercância da droga (disponível em http://emporiododireito.com.br/sem-indicios-minimos-da-mercancia-juiz-rejeita-denuncia-de-trafico/, acesso no dia 14 de setembro de 2015).

É que o sistema adotado pelo Brasil no âmbito criminal é o acusatório, no qual se transporta toda a carga probatória quanto aos elementos caracterizadores do crime ao órgão de acusação, no caso, o Ministério Público, não podendo o Poder Judiciário exercer juízo suplementar ou corretivo de natureza quase-metafísica, no intuito de criar alguma espécie de presunção de mercância nos autos.

Assim, é de se impor a desclassificação da conduta imputada na exordial para aquela prevista no art. 28, da Lei nº 11.343/06, posto que ausente comprovação da elementar do caráter negocial, mercante da conduta atribuída ao Acusado.

Mas, não se deve parar por aí.

O art. 28, da Lei nº 11.343/06 tem sido objeto de intensos debates no seio acadêmico e forense, havendo quem advogue a constitucionalidade do mencionado dispositivo, bem como aqueles que defendam a sua inconstitucionalidade, por força da violação ao direito à intimidade e liberdade do indivíduo.

Este Magistrado segue a segunda corrente.

A Lei de Drogas restou prevista para fins de combater o fenômeno da narcotraficância, oferecendo um tratamento mais rigoroso àquele que incidisse nas condutas típicas previstas nos seus dispositivos. Notadamente se trata de uma opção do Estado Brasileiro em tentar conformar o direito social fundamental da segurança pública, como sempre tenta fazer quando opta pela sempre conhecida fórmula de recrudescimento de penas, em prejuízo à população menos favorecida socioeconomicamente no país.

Não se nega que o problema da criminalidade é algo preocupante dentro do cenário do Brasil. Afinal, se está diante de um país que insiste em manter a demagógica/simbólica fórmula de inflação legislativa, totalizarização do sistema punitivo e aumento da seletividade penal como um mecanismo de higienização social ou embranquecimento da paisagem das cidades.

Os meios de comunicação, os quais deveriam velar pela busca da verdade informativa (art. 221, I, CF) no seu mister, mantém a seletividade do sistema punitivo, principalmente em matéria de drogas, através da apresentação de notícias diferenciadas quando ocorridas apreensões de material entorpecente, a depender do nível social e econômico daquele que é flagrado na posse de substância proscrita pela legislação em vigor. A título de exemplo, pede-se vênia para trazer à colação reportagem que muito retrata a desigualdade de tratamento ofertada pelos formadores de opinião:

“Uma imagem divulgada no Facebook pela página JornalismoB retrata como a mídia tradicional reforça, cotidianamente, preconceitos e estereótipos através de suas abordagens pouco honestas.

Para o portal G1, site de notícias da Rede Globo, um grupo preso com 300 quilos de maconha no bairro da tijuca, Rio de Janeiro, no último dia 27, merece ser chamado de ‘jovens de classe média’. Uma semana antes, o mesmo portal identificou como ‘traficante’ um homem preso em um bairro periférico da cidade Fortaleza-CE com 10 quilos de maconha.

Na lógica do referido veículo de comunicação, portar 300 quilos de maconha não configura tráfico de drogas – ao menos no título da notícia – desde que você seja branco, rico ou de classe média. Foi assim que o caso do helicóptero dos Perrella, de Minas Gerais, flagrado com 450 quilos de pasta base de cocaína sumiu do noticiário e nunca foi encarado com a seriedade necessária.

Durante o incidente do Rio de Janeiro foram também apreendidos com os traficantes duas pistolas e quatro carregadores, mas a informação foi omitida da chamada da matéria e só é possível lê-la dentro do conteúdo. No caso de Fortaleza, por sua vez, o portal destacou que o traficante preso portava uma pistola 380.

Ao se deparar com as distintas abordagens do G1, a historiadora Conceição Oliveira questionou, em seu blog, o senso de justiça e de moralidade seletivos dos ‘defensores dos bons costumes’. “[a expressão] bandido bom é bandido morto vale pra ‘jovens de classe média carioca com 300 kg de maconha ou a pena de morte é apenas para o bandido pobre e possivelmente negro que carrega 30 vezes menos a quantidade de maconha que os ‘jovens de classe média’?”

Como disse a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, em texto publicado no The New York Times, o Brasil ainda vive um processo de negação que é reforçado pelos grandes veículos de imprensa. E assim continuaremos enquanto minimizarmos os preconceitos e isentarmos de responsabilidade uma mídia que, até em pequenos detalhes, dissemina segregação.”. (disponível em http://www.pragmatismopolitico.com.br/2015/03/g1-ve-diferencas-entre-apanhados-com-drogas.html, acesso no dia 14 de setembro de 2015)

Não bastasse a desigualdade de tratamento ora retratada, o que já teria o componente de colocar como inconstitucional o art. 28 da Lei nº 11.343/06 por força da notória quebra do direito à igualdade, quando certo é que o objetivo fundamental da República Federativa do Brasil é o de erradicação da pobreza e marginalização social (art. 3º, III, CF), o qual é “irrepreensivelmente” descumprido pelo país desde quando as naus portuguesas aqui aportaram, tem-se que o art. 28 da Lei de Drogas não resiste a um exame da sua constitucionalidade/legitimidade, quando cotejado com o princípio da proporcionalidade.

O intento do legislador da Lei nº 11.343/06 foi o de oferecer uma maior proteção a dois direitos sociais de índole fundamental, a saber, a saúde pública e o a segurança pública. O primeiro, através da apresentação de uma rede de prevenção, atenção e reinserção social do usuário de drogas (art. 3º, I, da Lei nº 11.343/06), o segundo a partir de um sistema de repressão da produção não autorizada e do tráfico de drogas (art. 3º, II, Lei nº 11.343/06).

É certo que a conformação do primeiro objetivo do legislador se dá mediante o confronto com outros direitos fundamentais do indivíduo, a saber: a) direito à liberdade (capacidade de auto-determinação/escolha); b) direito à intimidade. Assim, por força da hierarquia constitucional das normas em conflito aparente, a solução a ser encontrada é o uso da técnica de ponderação de interesses no caso em evidência, a partir do uso do princípio da proporcionalidade para fins de análise da legitimidade da restrição adotada.

Não se nega o fato de que a população brasileira seja expectadora do aumento cada vez maior de índices de criminalidade, fazendo que tal fenômeno chegue às cidades do interior e acabe por enclausurar a população nas suas casas. Olvidar esse dado seria apresentar o cenário da segurança pública brasileira como aquele em que se tem em países nórdicos, nos quais os índices beiram a quase-zero, cujo êxito na política pública se tem no fato de se ter um bom regime de políticas públicas básicas de educação, promoção social e empregabilidade, o que não acontece nas terras brasileiras.

Entretanto, o meio mais imediato que o legislador brasileiro procura sempre lançar mão é o recrudescimento das penas e a previsão de novos tipos penais, desbaratando a função de escolha de bens jurídicos tuteláveis pela norma penal, o que acaba por acarretar numa inflação do sistema. Não seria diferente com aquele que opta pelo uso de substância entorpecente, sujeito sempre marginalizado socialmente, especialmente quando se tem em evidência o fato de que decisões políticas fundamentais ainda sofrem com o influxo de concepções religiosas, sendo que a República Federativa do Brasil é fundada num sistema laico, no qual deveria haver neutralidade na tomada de decisões fundamentais.

De outro lado, o legislador constituinte erigiu o princípio da dignidade da pessoa humana como vetor máximo interpretativo (art. 1º, III), bem como fez questão de atribuir nota de fundamentalidade ao direito à liberdade, na via da autodeterminação, e ao direito à intimidade e a liberdade de expressão, no que se refere ao recato do cidadão quanto às suas próprias convicções e direção da sua vida privada, de modo que a intervenção estatal deve se guiar da forma menos incidente o possível, já que a Constituição Federal de 1988 tem o seu nascimento após a superação de um panorama histórico fundado na insuflação do medo à população e do desejo do Estado em intervir nas convicções pessoais de cada cidadão que ousasse divergir da concepção de mundo institucionalizada pelo governo militar entre 1964/1985.

Em matéria de restrições a direitos fundamentais, a técnica de ponderação de interesses se entremostra como o método mais seguro para a superação de aparentes conflitos entre as normas constitucionais, de modo a oferecer o devido suporte de legitimidade para uma dada restrição cunhada pelo legislador ordinário, a qual se divide do seguinte modo: a) subprincípio da adequação; b) subprincípio da necessidade; c) subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito.

A restrição apresentada no art. 28, caput, Lei nº 11.343/06, quando levado à análise pelo subprincípio da adequação, se mostra como impertinente, de modo a reconhecer a sua inconstitucionalidade. Isso porque, o espírito do legislador ordinário com a edição do art. 28, caput, da Lei nº 11.343/06 deveria se encontrar ligado àquele previsto no art. 3º, I, da mesma lei, a saber, “a prevenção do uso indevido, a atenção e a reinserção social de usuários e dependentes de drogas”.

Ocorre que a previsão de sanção de pena restritiva de direitos ao usuário de drogas, nos moldes como dispõe o mencionado dispositivo, não atende ao quanto disposto no art. 3º, I, da Lei de Drogas, mas sim veicula propósito repressivo constante do art. 3º, II, da Lei nº 11.343/06, o qual em nada possui relação de legitimidade frente aos objetivos encartados pelo legislador em matéria de uso de drogas.

O art. 3º, II, da Lei nº 11.343/06 possui redação clara, no que refere à finalidade do SISNAD: “a repressão da produção não autorizada e do tráfico ilícito de drogas.”. A pena restritiva de direitos apresentada no art. 28, caput, Lei nº 11.343/06, sanção penal por natureza, não possui correlação apenas com o espírito ressocializador que a pena deveria ter no cenário brasileiro (mas que nunca chega a tal propósito), como também possui nítido caráter retribucionista e de prevenção geral negativa (repressão a delitos mediante previsão genérica/abstrata de sanção penal, caso haja incidência no preceito primário da norma).

Deste modo, a técnica apresentada pelo legislador quanto ao usuário de drogas não atende ao aspecto da prevenção, atenção e reinserção social de usuários e dependentes, fim único que deveria guiar a atividade do Estado nessa matéria. Em linhas mais resumidas, o uso de drogas há muito tempo deveria ser considerado como uma questão de saúde pública, de modo que se fez totalmente desnecessário, impertinente e desumano tratar o problema da drogadição apenas pela via repressiva.

É de se somar, ainda, que muitas vezes restrições a direitos fundamentais acabem por gerar uma certa zona cinzenta quanto aos aspectos técnicos/científicos que lastrearam a intervenção do Estado na vida do indivíduo. É que o Poder Legislativo é formado por componentes dos mais diversos setores da sociedade, médicos, advogados, empresários, trabalhadores, sindicalistas, apresentadores de televisão, palhaços, esportistas, entre outros.

Quanto ao tema, a doutrina constitucionalista afirma a existência do instituto da “margem epistêmica/epistemológica” como mecanismo para a aferição da legitimidade de restrições a direitos fundamentais, a fim de se avaliar se, do ponto de vista científico, a medida adotada pelo poder público atende realmente ao fim proposto ou se a mesma não se estabelece como um mecanismo desproporcional de negação de direitos.

No que se refere ao problema do uso de drogas, é obrigatório a qualquer Magistrado tomar por base o quanto dito por aquele que é considerado atualmente como o maior especialista do tema. O prof. Carl Hart, titular da Universidade de Columbia/EUA, concedeu a seguinte entrevista no ano de 2014 a respeito do tema das drogas:

“Amy Goodman: Então, fale-nos dos resultados destes estudos que você vem publicando há alguns anos nos maiores jornais científicos.

Dr. Carl Hart: Bom, uma das coisas que me chocaram quando eu comecei a entender o que estava acontecendo foi o fato de ter descoberto que de 80% a 90% das pessoas que usam drogas como o crack, a heroína, metanfetaminas, maconha, não são viciadas. Eu pensei, “espera aí. Eu pensava que uma vez que se usava estas drogas, todos se tornavam viciados, e essa era a causa dos problemas sociais.” Outra coisa que eu descobri foi que se dermos alternativas às pessoas - como empregos - elas não abusarão das drogas como fazem. Descobri isso no laboratório com humanos assim como com animais.

Amy Goodman: o que você quer dizer? Você está dizendo que o crack não é tão viciante quanto todos dizem?

Dr. Carl Hart: Bom, temos um belo exemplo agora: o prefeito de Toronto, Rob Ford. Ele usou crack e fez seu trabalho normalmente. Deixando de lado o que pensamos sobre ele ou suas políticas, ele foi ao trabalho todos os dias. Ele fez seu trabalho. A mesma coisa aconteceu com Marion Barry. Ele foi ao trabalho todos os dias. Na verdade, ele o fez tão bem na opinião das pessoas de Washington que ele foi votado mesmo depois de ter sido condenado pelo uso de crack. E assim é a maioria dos usuários de crack. Assim como qualquer outra droga, a maior parte das pessoas o faz sem outros problemas.

Amy Goodman: Compare com o álcool.

Dr. Carl Hart: Bom, quando pensamos no álcool, cerca de 10% a 15% dos usuários são viciados ou se encaixam em critérios do alcoolismo; para o crack, cerca de 15% a 20% - quase a mesma coisa se tratando de números. E nós sabemos disso cientificamente já faz 40 anos. Mas não dizemos esse tipo de coisa ao público

Amy Goodman: Então, você está dizendo que alguém que toma vinho todas as noites no jantar não seria considerado viciado da mesma forma que a pessoa que usa crack é?

Dr. Carl Hart: Exatamente. Então, o crítério, para mim, para julgar se alguém é ou não viciado é o de se esta pessoa tem problemas nas suas funções psicossociais. Ela vai ao trabalho? Ela lida com suas responsabilidades? O ela deixa de lado suas atividade? E quando pensamos em drogas como o alcool, as pessoas podem beber todos os dias e ainda assim lidar com todas suas responsabilidades. O mesmo se dá com usuários de crack. O mesmo se dá com usuários de cocaína. O mesmo com maconha. Pense da seguinte forma: os três últimos presidentes recentes usaram drogas ilícitas, e todos eles cumpriram com suas responsabilidades. Eles alcançaram os níveis mais altos de poder. E teríamos orgulho deles se fossem nossos filhos, apesar do fato de terem usado drogas ilegais.”. (disponível em http://www.cartamaior.com.br/?%2FEditoria%2FDireitos-Humanos%2F-As-drogas-nao-sao-o-problema-entrevista-com-o-neurocientista-Carl-Hart-%2F5%2F30021, acesso no dia 14 de setembro de 2015).

O referido professor, noutra oportunidade, concedeu entrevista ao renomado jornalista Jorge Pontual, novamente sobre o tema das drogas, a qual restou veiculada no conhecido portal jurídico do Conjur – Consultor Jurídico:

“Jorge Pontual — É claro que o que está por trás dessa questão das drogas é o fato de que elas foram criminalizadas, que há uma guerra às drogas acontecendo há décadas e que, aqui nos EUA, a maioria dos detentos está presa por crimes relacionados a drogas. Acho que no Brasil acontece o mesmo. Uma coisa importante que aprendi com o seu livro é que as drogas não transformam as pessoas em criminosos. Fale sobre isso.

Carl Hart — Há essa noção de que há algo nas propriedades químicas das drogas que leva as pessoas ao caminho do crime. Acreditar nessa ideia repugnante de que as drogas transformam as pessoas em monstros... As drogas não fazem isso. Não há indícios disso. Até quando você analisa os dados criminais, a grande maioria das pessoas presas ou apreendidas não usava drogas, e a grande maioria dos usuários de drogas não vai para a cadeia. Acho que essa ideia de ligar as drogas ao crime foi algo que surgiu neste país no final do século XIX e início do século XX, quando havia objetivos políticos maiores a serem atingidos. Queríamos mostrar à China que aquela lei controlava o ópio e a cocaína, queríamos mostrar à China que estávamos preocupados com os interesses dela. A China tinha problemas com o ópio. Achava-se que a superioridade internacional da China, superioridade tecnológica e econômica, estava sendo prejudicada por causa do problema do ópio. Pelo menos era isso que a China achava. E nos EUA, ao mesmo tempo, havia muito racismo contra os chineses que estavam aqui. Os comerciantes chineses sabiam disso e organizaram um embargo informal às mercadorias americanas. Para voltar às boas relações com a China, queríamos mostrar que estávamos sensíveis aos problemas dela e que íamos banir ou estimular um tratado internacional que regulasse o controle de narcóticos. Mas, antes de assinar o tratado, tínhamos que mostrar que conseguiríamos aprovar uma lei de narcóticos. E isso foi muito difícil na época, porque as pessoas levavam os direitos estaduais a sério. Ninguém queria o governo federal se metendo na vida do estado. Então as primeiras versões da lei, antes de 1914, não foram aprovadas, até que o projeto conseguiu convencer a população de que precisávamos aprová-lo ligando os crimes hediondos ao consumo de drogas por minorias, principalmente pelos negros. Então, essa associação entre crimes hediondos e drogas surgiu naquela época, se solidificou e existe até hoje nos EUA da mesma forma. Ela sempre foi usada para servir a objetivos políticos maiores. Hoje, o objetivo político a que essa associação serve é permitir que continuemos regulamentando as drogas para que órgãos de segurança tenham orçamentos maiores por um lado e por outro lado permite que os políticos evitem lidar com os verdadeiros problemas que essas comunidades enfrentam, como desemprego, falta de educação e de oportunidades. Podemos pôr a culpa de todas essas coisas nas drogas. Ao mesmo tempo, mantemos os empregos dos órgãos de segurança pública e seu orçamento alto, porque esses órgãos continuarão pondo em prática os desejos dos poderosos, então eles precisam estar felizes. A conexão entre drogas e violência e crime sempre serve a um objetivo político maior.

[...]

Jorge Pontual — Mas a maconha está se tornando mais aceita. Há maconha medicinal em 21 estados e agora dois estados a legalizaram. Mas ninguém fala de cocaína, crack e outras drogas. Por que sugere que elas sejam descriminalizadas? A sua ideia é essa. E não legalizadas. Qual é a diferença?

Carl Hart — Você falou várias coisas e várias coisas boas, porque disse que está mudando por causa da atitude. É verdade. Há algo acontecendo no país, mas se você for a um tribunal no Brooklyn, a tribunais de família em qualquer lugar dos EUA, verá que há mulheres, principalmente negras e latinas, que perdem a guarda dos filhos porque o exame acusa positivo para maconha. Em algum nível está mudando, mas temos essa coisa bipolar acontecendo. No nível nacional, discute-se suavizar as leis da maconha, mas no nível prático, diário, os pobres ainda se dão mal por causa da maconha. Se as hipóteses nas quais as políticas de drogas se baseiam estão erradas, devemos repensá-las, e sugiro descriminalizar tudo já que temos tantas prisões por drogas e 80% delas são só por posse. Com a descriminalização, as drogas continuariam sendo ilegais, você continuaria sem poder vender drogas, mas a posse, que constitui a maior quantidade de prisões, não seria mais um crime. Seria tratada como um delito administrativo, como uma infração de trânsito. Você teria que pagar multa, se apresentar a uma junta. Mas não de policiais, e sim de médicos, que podem avaliar se você se encaixa nos critérios do vício e sugerir ajuda se você quiser, mas não forçar. Dessa forma, as fichas dessas pessoas não ficariam sujas. Sem manchas na ficha, aumentam as chances de contribuírem para a sociedade, aumentam as chances de conseguirem um emprego, aumentam as chances de serem participantes ativas.”. (disponível em http://www.conjur.com.br/2014-mar-07/ideias-milenio-carl-hart-professor-psiquiatra-norte-americano, acesso no dia 14 de setembro de 2015)

De uma mera análise do quanto opinado pelo referido professor, profundo estudioso sobre o tema das drogas e seus efeitos, não se tem qualquer aptidão científica para que o Estado imponha como conduta delituosa aquela prevista no art. 28, caput, Lei de Drogas. No caso da “maconha”, tem-se que a mesma sequer possui maior potencialidade lesiva, colocando-se apenas na 11ª colocação dentre as substâncias entorpecentes em pesquisa realizada pela revista médica especializada The Lancet (conferir em http://www.alcoolismo.com.br/drogas/alcool-e-mais-nocivo-que-lsd-e-maconha-diz-estudo/).

Em contrapartida, o álcool figura na 5ª colocação dentre as substâncias mais danosas à saúde do ser humano, enquanto encontra não somente a permissão da sua comercialização, como também o próprio poder público incentiva o consumo mediante a permissão de propagandas de cervejas, whiskies e aguardentes durante o horário nobre da televisão.  Neste horário a maioria dos lares encontra-se assistindo a programação das emissoras de televisão e no qual crianças e adolescentes possuem acesso livre à mensagem incentivadora das práticas publicitárias de tal segmento, em que pese ser direito fundamental a prioridade absoluta da criança e adolescente (art. 227, caput, CF) e haver previsão expressa do princípio da proteção integral no art. 4º, caput, ECA.

Não soa enfadonho registrar que figura como o mais rico dentro os brasileiros o Sr. Jorge Paulo Lemann, acionista majoritário do grupo AB Inbev, conglomerado financeiro titular das cervejarias mais conhecidas do mundo, conforme matéria publicada no site Valor Econômico:

“SÃO PAULO  -  Jorge Paulo Lemann é o homem mais rico do Brasil em 2015, segundo levantamento da revista "Forbes Brasil", divulgado nesta sexta-feira. Ele já havia ficado no topo da lista em 2014. Além de Lemann, outros dois bilionários no ranking, Marcel Telles e Beto Sicupira, são controladores da AB Inbev. O trio quase duplicou seu patrimônio desde o ano passado”.

Deste modo, tem-se o quadro real de paradoxo brasileiro em matéria de substâncias lícitas e ilícitas. Ao mesmo tempo em que o álcool é uma substância mais nociva do que a “maconha”, a qual é objeto de discussão nos autos, tem-se que aquela é incentivada quanto ao uso pela população brasileira, gerando enormes receitas ao Poder Público (diante do princípio da seletividade aplicável ao Imposto sobre Produtos Industrializados e ao ICMS), de outro lado se tem a profusão da guerra contra as drogas, na qual muitos pretos, pobres e marginalizados são mortos, presos e esquecidos pelo poder público, na promessa vã e vazia de que o modelo de repressão ao uso de “maconha” se entremostraria como a solução dos problemas da população brasileira, o que não possui a menor raiz metodológica e epistemológica.

Assim, diante do quanto exposto, por entender inexistente base científica legitimadora para a restrição operada pelo art. 28, caput, da Lei nº 11.343/06, entendo pela declaração incidental da sua inconstitucionalidade no caso em questão, em razão da violação ao princípio da proporcionalidade e redução do núcleo essencial dos direitos da intimidade e autodeterminação, a repercutir no reconhecimento da atipicidade da conduta imputada ao Acusado XXXXXX e sua absolvição, nos termos do art. 386, I, do Código de Processo Penal Brasileiro.

3) Dispositivo

Ante o exposto, JULGO IMPROCEDENTE o pedido formulado na denúncia, no que faço para ABSOLVER o Réu XXXXXX das imputações contra si veiculadas na exordial, na forma do art. 386, I, CPP, bem como EXTINGUIR A PUNIBILIDADE do Acusado YYYYYY, por força da prescrição da pretensão punitiva, na forma do art. 107, IV, CP c/c 61, parágrafo único, CPP.

Sem custas e honorários.

Não havendo manifestação recursal, certifique-se nos autos. Em seguida, arquive-se com as cautelas de praxe.

Publique-se. Registre-se. Intime-se.

Chorrochó/BA, 14 de setembro de 2015.

MATHEUS MARTINS MOITINHO

JUIZ SUBSTITUTO DESIGNADO PARA A COMARCA DE CHORROCHÓ


Imagem Ilustrativa do Post: Un peu de fumée... // Foto de: N.ico // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/thoht/3178190690/ Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode
 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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