TJSC concede Habeas Corpus de ofício em virtude de apreensão de drogas ter ocorrido em terreno baldio, no dia seguinte à prisão em flagrante do acusado

27/08/2015

Por Redação - 27/08/2015

A Segunda Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina proferiu decisão nos autos da Apelação Criminal n. 2013.065953-5, em que concedeu Habeas Corpus de ofício para absolver acusado do delito de tráfico de drogas.

Conforme se infere do corpo do Acórdão, após a prisão do acusado, foi ouvida uma testemunha sigilosa, a qual indicou o local aproximado em que este supostamente efetuava o comércio ilícito de entorpecentes. As drogas foram encontradas no terreno baldio indicado, contudo, durante a campana efetuada pelos policiais, não houve visualização de qualquer ato de comércio por parte do acusado, nem relação com as drogas apreendidas. Não havendo comprovação a respeito da propriedade do material ilícito, mister se fez a absolvição de ofício.

A decisão também faz referência à apreensão de um único projétil, considerada conduta atípica, dadas as circunstâncias do caso concreto.

Confira abaixo a íntegra do Acórdão de Relatoria do Des. Sérgio Rizelo.


Apelação Criminal n. 2013.065953-5, de Balneário Camboriú

Relator: Des. Sérgio Rizelo

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APELAÇÃO CRIMINAL. CRIMES DE TRÁFICO DE DROGAS E POSSE ILEGAL DE MUNIÇÃO DE USO PERMITIDO. SENTENÇA DE PARCIAL PROCEDÊNCIA DA ACUSAÇÃO. RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO.

PLEITO CONDENATÓRIO QUANTO AO CRIME DESCRITO NO ART. 12 DO ESTATUTO DO DESARMAMENTO. INVIABILIDADE. CIRCUNSTÂNCIAS DO CASO CONCRETO QUE REVELAM A AUSÊNCIA DE OFENSIVIDADE AO BEM JURÍDICO TUTELADO E PROPORCIONALIDADE DA CONDUTA COM A PENA ARBITRADA. APREENSÃO DE UM ÚNICO PROJÉTIL. EXCEPCIONALIDADE. ABSOLVIÇÃO MANTIDA.

DELITO DE TRÁFICO DE DROGAS. AUSÊNCIA DE PROVA PRODUZIDA SOB O CRIVO DO CONTRADITÓRIO CAPAZ DE ATESTAR A NARCOTRAFICÂNCIA. INTELIGÊNCIA DO ART. 155 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. ELEMENTOS JUDICIAIS QUE SE LIMITAM A DEMONSTRAR QUE AS INVESTIGAÇÕES SOBRE O AGENTE TRATAVAM DA APURAÇÃO DE OUTRO CRIME. AUSÊNCIA DE ABORDAGEM A USUÁRIOS DE DROGAS, MESMO APÓS CAMPANA, E APREENSÃO DO MATERIAL TÓXICO EM LOCAL PÚBLICO, DISTANTE DA RESIDÊNCIA DO RÉU, UM DIA APÓS A PRISÃO DESTE. ELEMENTOS INQUISITIVOS NÃO REAFIRMADOS EM SOLO JUDICIAL. CONCESSÃO DE HABEAS CORPUS DE OFFICIO PARA ABSOLVER O ACUSADO. EXPEDIÇÃO DE ALVARÁ DE SOLTURA SE POR OUTRO MOTIVO NÃO ESTIVER PRESO.

RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO E CONCEDIDO HABEAS CORPUS DE OFÍCIO PARA ABSOLVER O ACUSADO QUANTO AO DELITO DE TRÁFICO DE ENTORPECENTES.

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Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Criminal n. 2013.065953-5, da Comarca de Balneário Camboriú (2ª Vara Criminal), em que é Apelante Ministério Público do Estado de Santa Catarina e Apelado R.M.:

A Segunda Câmara Criminal decidiu, por unanimidade, conhecer do recurso, negar-lhe provimento e, de ofício, conceder habeas corpus para absolver R.M. da imputação descrita no art. 33, caput, da Lei 11.343/06, nos termos do art. 386, inc. VII, do Código de Processo Penal. Custas legais.

Participaram do julgamento, realizado nesta data, os Excelentíssimos Desembargadores Getúlio Corrêa (Presidente) e Volnei Celso Tomazini. Atuou pelo Ministério Público a Excelentíssima Procuradora de Justiça Heloísa Crescenti Abdalla Freire.

Florianópolis, 13 de janeiro de 2015.

Sérgio Rizelo

Relator

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Relatório

Na Comarca de Balneário Camboriú, o Ministério Público do Estado de Santa Catarina ofereceu denúncia contra R. M. , imputando-lhe infração ao disposto nos arts. 33, caput, da Lei 11.343/06 e 12, caput, da Lei 10.826/03, porque:

No dia 12 de setembro do presente ano, por volta das 09h00min., alguns Policiais Civis dirigiram-se até a residência do denunciado R.M., localizada na Rua Axxx, nº xxx, nesta urbe, haja vista estarem realizando investigação de um suposto homicídio, tendo por meio de informantes chego até ao conduzido.

Ao chegarem na residência, depararam-se com o denunciado, o qual afirmou que não encontrariam nada de ilícito, franqueando a entrada aos policiais.

Após as vistorias de praxe, foi encontrada uma munição intacta calibre 38 e um estojo deflagrado de uma munição calibre 38.

Ademais, é de bom alvitre salientar que o denunciado além de estar sendo investigado pelo crime de homicídio, também estava sendo investigado pelo delito de tráfico de entorpecentes, ocasião em que os Policiais Civis, com a ajuda de informantes, obtiveram a informação de que o conduzido laborava para um traficante da região, escondendo suas drogas em um terreno baldio localizado na Rua Aurora, esquina com a Rua Agronômica, nesta urbe.

Deste modo, deslocaram-se até o local informado pelas testemunhas, encontrando em meio a uma vegetação baixa e sob uma telha de amianto, dois invólucros contendo em seu interior substância conhecida como crack (vide fls. 54/56 e Laudo de Constatação de fl. 58).

Percebe-se, desse modo, que o denunciado possuía sob sua guarda, no interior de sua residência, uma munição e um cartucho de arma de fogo de uso permitido, em desacordo com determinação legal ou regulamentar, bem como vendia e guardava drogas, as quais se destinavam à venda ao universo de usuários desta urbe (fls. I-III).

Concluída a instrução processual, sobreveio a sentença das fls. 197-213, a qual a) condenou R.M. à reprimenda de 5 anos de reclusão, a ser adimplida em regime inicialmente semiaberto, e ao pagamento de 500 dias-multa, unitariamente arbitrados no valor mínimo legal, por violação ao contido no art. 33, caput, da Lei Antidrogas, e b) o absolveu do delito previsto no art. 12, caput, da Lei 10.826/03, com fundamento no art. 386, inc. III, do Código de Processo Penal.

Irresignado com o teor do decisum, o Ministério Público deflagrou o presente recurso de apelação criminal.

Nas razões do inconformismo, almeja o Parquet a reforma da sentença a fim de que R.M. seja condenado pelo cometimento do crime previsto no art. 12, caput, do Estatuto do Desarmamento.

Pontifica que, embora tenha sido apreendida apenas uma munição intacta em poder do Acusado, subsiste "a periculosidade social da ação e a lesividade ao bem jurídico tutelado, sendo incabível a aplicação da insignificância" (fls. 218-222).

R.M. apresentou contrarrazões nas fls. 239-245, manifestando-se pelo conhecimento e não provimento do apelo.

A Procuradoria-Geral de Justiça, em parecer lavrado pelo Excelentíssimo Procurador de Justiça Rogério Antônio da Luz Bertoncini, opina pelo conhecimento e provimento do reclamo deflagrado pelo Parquet (fls. 254-257).

Este é o relatório.

Voto

Presentes os pressupostos de admissibilidade (fls. 216v e 217), o recurso merece ser conhecido.

1. O inconformismo do Parquet diz respeito a tese de atipicidade da conduta acolhida pelo Magistrado Primevo, o qual entendeu aplicável à espécie o princípio da insignificância, em razão da ínfima quantidade de projéteis apreendidos em poder do Acusado, sendo um deles intacto e outro deflagrado.

Não obstante o normativo legal criminalize o porte e posse de munições mesmo desacompanhadas de arma de fogo e silencie sobre qualquer outro requisito para a configuração do ilícito - entendimentos dos quais partilho - situações excepcionais recomendam a flexibilização da incidência da lei penal.

Há casos menos invasivos e de menor gravidade concreta que, praticados sem reiteração, não guardam relação de equilíbrio com a resposta estatal positivada na lei penal. Situações tais - consideradas em concreto, e não de modo abstrato - não foram alcançadas pelo controle prévio do Poder Legislativo e reclamam a correção pelo Poder Judiciário em seu mister de concretização da Lei.

Nas palavras do eminente Ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, "o Poder Público, especialmente em sede penal, não pode agir imoderadamente, pois a atividade estatal, ainda mais em tema de liberdade individual, acha-se essencialmente condicionada pelo princípio da razoabilidade, que traduz limitação material à ação normativa do Poder Legislativo" (HC 113913 - j. 9.4.13).

É, por exemplo, a hipótese dos autos.

Nos exatos termos do Estatuto do Desarmamento, impõe a norma penal a responsabilização daqueles que "portam", "detém", "mantém sob guarda", "acessório ou munição", de uso permitido ou proibido/restrito, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar.

Prescrevem os arts. 12, 14 e 16 da Lei 10.826/03:

Art. 12. Possuir ou manter sob sua guarda arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, em desacordo com determinação legal ou regulamentar, no interior de sua residência ou dependência desta, ou, ainda no seu local de trabalho, desde que seja o titular ou o responsável legal do estabelecimento ou empresa:

Pena - detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.

Art. 14. Portar, deter, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

Pena - reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.

Art. 16. Possuir, deter, portar, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob sua guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição de uso proibido ou restrito, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

Pena - reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa.

Mesmo que as munições não possam ser acionadas isoladamente, simplesmente "portá-las" ou "possui-las" diminui o nível de segurança dos cidadãos, na medida em que sempre será necessário ao artefato bélico delas se valer para alcançar seu efetivo intento.

Exemplifica Guilherme Nucci que a conduta é perigosa para a segurança pública porque "pode o agente carregar a arma de fogo sem munição e, ao atingir determinada ponto, onde está a vítima em potencial, conseguir a munição das mãos de um comparsa. Por isso, carregar tanto a arma quanto a munição, mesmo que separadamente é delito" (Leis penais e processuais penais comentadas, v. 2. 7 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. p. 53).

Arremata Ricardo José Gasques de Almeida Silvares: "Ao menos quanto às munições, agiu com acerto o legislador, visto que nada havia na lei anterior a respeito e no caso de, por hipótese, alguém ser flagrado trazendo um carregamento de munição de uso permitido, pouco poderia ser feito no campo penal. E armas, sem munição que as alimente, de nada servem" (Legislação criminal especial. Coordenadores GOMES, Luiz Flávio, CUNHA, Rogério Sanches. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 325).

Com o advento da Lei 10.826/03 objetivou o Legislador coibir especificamente a posse de munição de uso permitido e/ou restrito, mesmo desacompanhada do artefato bélico, intento que não existia no ordenamento anterior (Lei 9.437/97) e revelador da especial importância conferida a tal proceder.

Fernando Capez comenta:

[...] (b) Lei n. 10.826/2003: o art. 14 da Lei n. 10.826/2003 operou as seguintes modificações: [c] Inseriu nessa figura típica dois novos objetos materiais: munições e acessórios de arma de fogo. [...]

A nova Lei equiparou a posse ou porte de acessórios ou munição à arma de fogo. Dessa forma, o sujeito detido transportando somente a munição de um armamento de uso restrito incidirá nas mesmas penas que aquele que transportar a própria arma municiada (Curso de direito penal: legislação penal especial. 7 ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 380 e 402).

Celso Delmanto consoa:

Importante lembrar que tanto a LCP quanto a antiga Lei nº 9.437/97, revogada expressamente pela Lei nº 10.826/03, não puniam criminalmente a conduta do agente que fosse flagrado transportando acessórios e munição. A conduta era atípica. Igualmente era atípico o transporte de arma desmuniciada (por vezes desmontada), devidamente acondicionada, demonstrando não se confundir com o porte. Agora, como se vê, as condutas são típicas. Em nossa opinião, pela gravidade da sanção imposta, somente podem ser considerados crimes condutas que violem ou coloquem em risco algum bem jurídico relevante à sociedade. No caso de acessórios e munições, pensamos que o legislador estava constitucionalmente autorizado a punir criminalmente condutas relativas a acessórios ou munições, embora talvez a contravenção fosse uma melhor solução (Leis penais especiais comentadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 637).

Ocorre que, apesar do pleno enquadramento jurídico da prática, a jurisprudência vem admitindo, dada as peculiaridades do caso concreto, a ausência de sua tipicidade.

Quando de pequena monta o número de munições encontradas em poder do agente é oportuno avaliar com maior cautela as circunstâncias da conduta. Caso seja comprovado na instrução criminal que os projéteis, naquela situação, não produziam qualquer transgressão ao escopo da norma, deve-se considerá-la atípica. A condenação ou absolvição dependerá da análise minuciosa e crítica, pelo denominado case by case approach.

O caso concreto deverá mostrar a real necessidade de intervenção estatal e do seu aparato repressor. Não haverá motivo para se mover esse maquinário ante uma conduta que, embora descrita formalmente na lei, não apresenta qualquer ofensa à incolumidade pública, ainda que seja presumidamente.

Nesses casos haverá o afastamento do intuito normativo. Para que seja adequada/justificada a mediação do Estado em matéria penal deve haver verdadeira necessidade de punição e pacificação social diante de uma lesão a direito de interesse transindividual. Desse pressuposto nasce, portanto, como bem aponta Guilherme de Souza Nucci, o princípio da ofensividade (Princípios constitucionais penais e processuais penais. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. fl. 189).

Este postulado, implícito na Carta Magna, é assim pormenorizado pelo emérito Professor paulista:

Se o Estado funcionar em preservação da liberdade individual, agindo somente nos casos irremediáveis por outros ramos do direito, torna-se certa a sua atuação focada nos bens jurídico de inconteste saliência. Ora, se a tutela penal se concentra nos mais pertinentes bens, nada mais justo que, havendo conduta transgressora, em tese, da lei penal, possa ela descortinar algum abalo mínimo razoável contra tais bens. Noutros termos, somente pode dar-se a aplicação da lei penal, caso a conduta infratora se volte, com eficiência, contra bem jurídico tutelado (idem, p. 192-193).

Nos crimes de porte ou posse isolada de munição, tanto de uso permitido quanto restrito, necessário é estabelecer algumas diretrizes para avaliar o exercício do ius puniendi. Alguns fatores são determinantes, como, por exemplo, os antecedentes do agente, a quantidade de projéteis encontrados e as circunstâncias em que a prática foi desenvolvida.

A vida pretérita do agente pode demonstrar um estilo desregrado, onde a ingerência estatal pode se mostrar mais adequada. Não se pune, insta frisar, o autor somente pelo fato de possuir manchas em sua ficha criminal. Busca-se perquirir se as sanções ou advertências a ele impostas o conduziram a afastar-se de atividades duvidosas, justamente em razão das punições pretéritas. Avalia-se se deverá o Estado agir com maior rigor ante o descaso do indivíduo com as reprimendas e ingerência estatal, tanto quanto se, em suas ulteriores transgressões, armas de fogo e seus acessórios e munições se faziam presentes.

A quantidade de munições também é atributo de necessária análise. Quando um agente é encontrado com pequena quantidade de artefatos, beirando a irrelevância, poderá não se mostrar razoável uma reprimenda de até 3 anos de reclusão como sancionamento. Isso porque a reprimenda não terá "aptidão para atingir os objetivos a que se propõe, sem, contudo, representar excesso algum" (BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 19 ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 68).

Já as circunstâncias da prática revelam-se de grande importância e demandam redobrada cautela.

Nesse ponto, acredito ser oportuno perquirir, por exemplo, o local onde as munições foram encontradas; a forma como foi descoberta a sua existência e outras particularidades do suposto cenário delitivo, como informações se o agente integrava associação criminosa ou atuava dividindo tarefas com comparsa, as quais, pelas provas produzidas e livre convencimento do julgador, não permitam a aplicação de uma pena.

Gustavo Octaviano Diniz Junqueira e Paulo Henrique Aranda Fuller refletem a respeito:

Acreditamos que, principalmente em relação às munições, a lei deve ser interpretada sob o manto da razoabilidade, com atenção à insignificância de determinadas condutas como a guarda de um ou dois projéteis de arma de pequeno calibre, desacompanhadas de qualquer arma de fogo, uma vez que logicamente não foi esse o âmbito de proteção da norma traçado pelo legislador penal, preocupado justificadamente com a posse de quantidade relevante de munição sem autorização. Assim, em nosso entendimento, a posse de pequena quantidade de munição, desacompanhada de arma de fogo, não configura crime em tela, devendo ser aplicado o princípio da insignificância (Legislação penal especial. 4 ed. São Paulo: Premier Máxima, 2007. p. 376).

Nessa perspectiva, no caso em exame, extrai-se do acervo probatório que foi apreendida na residência de R.M. tão somente uma munição de uso permitido intacta. O outro cartucho encontrava-se deflagrado e, portanto, sem qualquer utilidade, impossibilitando isso defini-lo como munição, por não se tratar de "artefato completo, pronto para carregamento e disparo de uma arma, cujo efeito desejo pode ser: destruição, iluminação ou ocultamento do alvo; efeito moral sobre pessoal; exercício; manejo; outros efeitos especiais", nos termos do art. 3º, inc. LXIV, do Anexo do Decreto 3.665/00. Além disso, o Acusado é primário e embora estivesse sendo investigado pelo crime de homicídio nos autos 005.13.002791-4, o qual supostamente teria desencadeado a diligência policial, nem sequer foi pronunciado pelo Magistrado de Primeiro Grau, decisum já transitado em julgado, conforme pesquisa no sítio eletrônico deste Tribunal de Justiça.

Em caso paradigmático, ao verificar a ausência de ofensividade da conduta mediante as características concretas do caso, a Suprema Corte já flexibilizou a criminalização da posse de pequeno número de munições:

HABEAS CORPUS. PENAL. ART. 16 DO ESTATUTO DO DESARMAMENTO (LEI 10.826/03). PORTE ILEGAL DE MUNIÇÃO DE USO RESTRITO. AUSÊNCIA DE OFENSIVIDADE DA CONDUTA AO BEM JURÍDICO TUTELADO. ATIPICIDADE DOS FATOS. ORDEM CONCEDIDA. I - Paciente que guardava no interior de sua residência 7 (sete) cartuchos de munição de uso restrito, como recordação do período em que foi sargento do Exército. II - Conduta formalmente típica, nos termos do art. 16 da Lei 10.826/03. III - Inexistência de potencialidade lesiva da munição apreendida, desacompanhada de arma de fogo. Atipicidade material dos fatos. IV - Ordem concedida (HC 96532, Rel. Min. Ricardo Lewandowski - j. 6.10.09).

Do inteiro teor desse julgado retira-se singular ponderação:

Está-se diante, portanto, de conduta formalmente típica, a qual, todavia, a meu ver, não se mostra típica em sua dimensão material. Isso porque não é possível vislumbrar, nas circunstâncias, situação que exponha o corpo social a perigo, uma vez que a munição apreendida, na espécie em exame - é preciso novamente frisar -, guardada em um armário e desacompanhada de arma de fogo, por si só, é incapaz de provocar qualquer lesão ao bem juridicamente tutelado (a incolumidade pública).

Em caso de encontro de apenas um projétil com o agente, também já julgou o Superior Tribunal de Justiça:

HABEAS CORPUS. PENAL. CRIME DE PORTE DE MUNIÇÃO DE USO PERMITIDO. ART. 14 DA LEI N. 10.826/2003. CRIME DE PERIGO CONCRETO. RESSALVA DO ENTENDIMENTO DO RELATOR. Nos termos da linha jurisprudencial majoritária da Sexta Turma, adotada no presente julgamento pela Ministra Maria Thereza de Assis Moura e pelo Ministro Og Fernandes, para a ocorrência do crime de porte de munição, é necessária a demonstração de que a conduta tenha oferecido perigo concreto ao bem jurídico tutelado pela norma penal. 2. Ressalva do entendimento do Relator, que concede a ordem por fundamento diverso. 3. Ordem concedida para, cassando o acórdão e a sentença condenatórios, absolver o paciente com fundamento no art. 386, III, do Código de Processo Penal (HC 194468, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior - j. 17.4.12).

O Tribunal Gaúcho não diverge:

PORTE DE MUNIÇÃO. QUANTIDADE IRRISÓRIA. ATO ATÍPICO. ABSOLVIÇÃO IMPOSTA. Quando a quantidade de munição é irrisória, no caso foram apreendidos dois cartuchos, a Câmara vem decidindo que o fato atípico. DECISÃO: Apelo defensivo provido. Unânime. (Ap. Crim. n. 70045569134, Rel. Sylvio Baptista Neto- j. 17.10.12)

Esta Segunda Câmara Criminal já se pronunciou no mesmo sentido:

[...] RECONHECIMENTO, DE OFÍCIO, DA DESPROPORCIONALIDADE ENTRE A CONDUTA E A PENA - PORTE DE UMA MUNIÇÃO DE CALIBRE .22, SEM QUALQUER ARMA À DISPOSIÇÃO - ABSOLVIÇÃO. [...]. (Ap. Crim. 2014.074501-1, Rel. Des. Getúlio Corrêa - j. 2.12.14).

Assim, em caráter excepcional, por se tratar da apreensão de um único projétil, desacompanhado de arma de fogo, na residência de Réu primário, ao qual não foram imputadas ameaças a terceiros, disparo de arma de fogo ou qualquer outra prática criminosa com efetivo uso de artefato bélico, com o registro de que outras investigações culminaram na sua impronúncia, reconheço a desproporcionalidade da conduta e da pena aplicada e mantenho a absolvição de R.M., nos termos proferidos pela Autoridade Judiciária de Primeira Instância.

2. Também é imperioso absolver, de ofício, o Acusado R.M. da imputação constante no art. 33, caput, da Lei 11.343/06, ante a ausência de prova judicializada capaz de assegurar, estreme de dúvida, a autoria do crime.

Como se sabe, a falta de elementos produzidos sob o crivo do contraditório, a corroborar os relatos colhidos exclusivamente no inquérito policial, encontra óbice no disposto no art. 155 do Código de Processo Penal, o qual dispõe:

Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas

Esse entendimento encontra respaldo na jurisprudência desta Corte de Justiça:

[...] À míngua de provas robustas do ilícito narrado na inicial, impossível a condenação do réu, não bastando, para tanto, somente a presença de indícios isolados ou a eventual certeza moral do cometimento do delito. Afinal, no processo penal, para que se possa concluir pela condenação do acusado, necessário que as provas juntadas ao longo da instrução revelem, de forma absolutamente indubitável, sua responsabilidade por fato definido em lei como crime (Ap. Crim. 2012.011624-5, Rel. Des. Newton Varella Júnior - j. 5.6.14).

In casu, as únicas provas produzidas sob o pálido do contraditório a respeito da imputada narcotraficância ao Denunciado são os relatos de dois Policiais Civis, os quais não permitem assegurar, de maneira inequívoca, que os entorpecentes encontrados no dia seguinte ao da prisão de R., em um terreno baldio, a ele pertenciam e seriam destinados à venda.

Segundo deduziu o Agente Estatal F. da S.S. na etapa judicializada, os Policiais estavam investigando o homicídio de um jovem, ocorrido nas margens da BR-101, sob a ponte, na divisa entre os Municípios de Balneário Camboriú e Camboriú, quando, em busca de informações sobre a identidade da Vítima e do autor do delito, fizeram contato com moradores de rua localizados nas proximidades. No curso da investigação identificaram a Vítima como sendo R.A., filho de um advogado do Rio Grande do Sul, e ouviram rumores os quais apontavam R. como possível autor do crime. De posse desses informes os Policiais tentaram localizar seu endereço e, como já tinham notícias sobre seu envolvimento com a venda e o uso de drogas, chegaram ao local onde ele residia. Disse terem permanecido a tarde inteira de campana nas imediações do imóvel e R. não apareceu. À noite observaram uma intensa movimentação de pessoas entrando e saindo da residência, de modo a ser "bem provável" que o local se tratasse de ponto de tráfico de drogas, embora não tenham abordado nenhum usuário. Relatou que, no dia seguinte ao monitoramento, pela manhã, fizeram a abordagem na casa e nas pessoas que lá se encontravam. Na diligência depararam-se com três usuários sentados no chão de um dos cômodos, enquanto o Acusado dormia em outro e, após procederem as devidas revistas, localizaram uma munição .380 intacta e um cartucho .38 deflagrado, no local onde R. encontrava-se. Por conta da apreensão dos projéteis conduziram-no até a Delegacia de Polícia para os procedimentos necessários. Lá chegando, indagaram-no sobre a droga e R. confirmou comercializá-la para manter o próprio vício, mas não quis identificar seu fornecedor. Após sua prisão foram contactados por uma Testemunha, a qual delatou que R. não costumava guardar drogas em casa, mas na Rua Aurora, na Vila Real, apontando "mais ou menos" o local onde ela poderia estar. Diante disso, no dia seguinte, dirigiram-se até o lugar indicado, um terreno baldio, e encontraram os narcóticos (9,37 gramas de cocaína) sob uma telha de amianto (CD colacionado à fl. 151).

O Agente Público R.V. ratificou as narrativas ofertadas por seu colega de Corporação, acrescentando ter prestado auxílio na diligência que culminou na apreensão dos projéteis. Contou que, no momento da abordagem, havia quatro pessoas no interior da residência, três das quais no primeiro ambiente, visivelmente drogadas, encontrando-se o Acusado no cômodo ao lado. Esclareceu ter R. autorizado a revista no imóvel, oportunidade em que localizaram, no quarto onde ele dormia, uma munição e uma cápsula deflagrada. Na sequência, conduziram-no até a Delegacia de Polícia e, no dia seguinte, outros Policiais voltaram ao local próximo à casa dele e localizaram a droga (mídia encartada à fl. 151).

Das narrativas deduzidas pelos Agentes Estatais infere-se, pois, que as investigações não se desencadearam com o propósito de apurar o delito de tráfico de drogas. Todas as diligências, na verdade, objetivavam deslindar um homicídio ocorrido às margens da BR-101, cujas informações apontavam para R. ser seu autor.

As campanas efetuadas nas imediações da residência do Denunciado também foram inconclusivas sobre o crime em apreço, de modo a não se prestarem, com segurança necessária, a comprovação de que o local tratava-se de ponto de venda de entorpecentes e não apenas de ambiente destinado ao consumo coletivo de drogas. Aliás, os Policiais Civis afirmaram que nem sequer visualizaram o Acusado no momento da campana, gerando dúvida sobre sua presença no imóvel naquela oportunidade.

Nenhum usuário foi abordado ou capaz de apontar R. como fornecedor de entorpecentes. Nem mesmo foram inquiridos os três rapazes que se encontravam no interior da residência na ocasião da busca domiciliar, os quais, por estarem em completo estado de drogadição, prestam-se a amparar as justificativas ofertadas pelo Acusado perante a Autoridade Judiciária de Primeira Instância.

Na fase judicializada R. asseverou ser viciado em crack e cocaína há aproximadamente cinco anos, e que os narcóticos encontrados pela Polícia Civil não lhe pertenciam e foram localizados a uma quadra da sua residência. Negou ter dito à Autoridade Policial que vendia drogas para sustentar o vício, acrescentando que seus amigos, os quais moravam consigo, traziam drogas para consumirem conjuntamente (mídia colacionada à fl. 151).

Mesmo que suas escusas devam ser vistas com reserva, não há como refutar que apenas este é o acervo probatório submetido ao crivo do contraditório. Agentes Públicos, os quais investigavam outro crime, montaram campana nas proximidades da residência e não avistaram condutas típicas de tráfico e nem sequer visualizaram o Réu; denúncias formalizadas e individualizadas o apontando como traficante inexistem nos autos; usuários não foram inquiridos nem abordados; e a droga descrita no termo de apreensão da fl. 53 foi encontrada após a prisão de R., em um terreno baldio, em local de fácil acesso (fl. 55) e em pequena quantidade (9,37 gramas - fl. 119).

Não se descura que os elementos inquisitivos apontavam, com maior precisão, a possível prática da narcotraficância, especialmente diante da confissão extrajudicial do Denunciado (fls. 20-22) e das informações trazidas por uma Testemunha Protegida, a qual indicou a exata localização dos narcóticos (fls. 18-19).

Ocorre que a confissão extrajudicial do Acusado, sem arrimo em elementos judiciários, não se presta a embasar o édito condenatório, como dispõe o art. 197 do Código de Processo Penal:

Art. 197. O valor da confissão se aferirá pelos critérios adotados para os outros elementos de prova, e para a sua apreciação o juiz deverá confrontá-la com as demais provas do processo, verificando se entre ela e estas existe compatibilidade ou concordância.

A respeito, aclara Guilherme de Souza Nucci:

[...] a confissão extrajudicial, não contando com as garantias constitucionais inerentes ao processo, especialmente o contraditório e a ampla defesa, é apenas um meio de prova indireto, isto é, um indício. [...] Deve ser reputada totalmente inconsistente para condenar uma pessoa, caso venha isolada no bojo dos autos. Necessita ser firmemente confrontada com outras provas e nitidamente confirmada pelas provas produzidas em juízo, não bastando mera fumaça de veracidade. Os riscos da aceitação da confissão extrajudicial, como meio de prova direto, são inúmeros e capazes de gerar o malfadado erro judiciário, inaceitável no Estado Democrático de Direito (Código Penal Comentado. 13 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 469).

De igual forma, a narrativa da Testemunha sigilosa não foi submetida ao crivo do contraditório, uma vez que não foi arrolada pelo Parquet para testemunhar em Juízo. E, pelo relevo de seus dizeres, imprescindível era sua oitiva, sobretudo porque foi a pessoa responsável por apontar o esconderijo dos entorpecentes, os quais foram localizados em um terreno baldio apenas no dia seguinte da prisão do Acusado.

Pela tardia apreensão dos narcóticos e por terem sido encontrados em local de fácil acesso, conforme demonstram as fotografias encartadas às fls. 52-53, também remanesce a dúvida sobre a propriedade do conteúdo ilícito, não se podendo afirmar, com absoluta certeza, que pertenciam ao Réu, devendo-se considerar que a comprovação inequívoca do nexo etiológico do material tóxico encontrado com o Acusado era ônus que incumbia à Acusação.

Logo, com a devida vênia ao entedimento esposado pelo Magistrado de Primeiro Grau, frágeis são os elementos probatórios submetidos à ampla defesa e ao contraditório que conduzam ao necessário juízo de certeza do crime contido no art. 33, caput, da Lei 11.343/06, de modo que a aplicação do princípio in dubio pro reo é o caminho a ser seguido, devendo R.M. ser absolvido, de ofício, da imputação, com fundamento no art. 386, inc. VII, do Código de Processo Penal.

Como se sabe, "a condenação exige a certeza e não basta, sequer, a alta probabilidade, que é apenas um juízo de incerteza de nossa mente em torno à existência de certa realidade" (Jurisprudência Criminal. vol. 2, Ed. Bushatsky, 3. ed., p. 806).

Por fim, considerando que não foi fixada, em Primeira Instância, a verba honorária devida ao Defensor nomeado para apresentar alegações finais e contrarrazões, é devido o seu arbitramento.

A referida nomeação ocorreu após a instalação da Defensoria Pública Catarinense (em agosto de 2012, com a Lei Complementar Estadual 575/12); logo, é devido o arbitramento, por equidade (CPC, art. 20, § 4º), de remuneração pelo exercício do munus (cf. Ap. Crim. 2014.053500-1, Relator este Magistrado - j. 21.10.14).

Arbitra-se, pois, a remuneração do Dr. Valdir de Andrade, inscrito na OAB/SC 7214, em R$ 1.000,00, com fulcro no art. 20, § 4º, do Código de Processo Civil.

Ante o exposto, vota-se pelo conhecimento e desprovimento do apelo deflagrado pelo Parquet e, de ofício, pela concessão de habeas corpus a R.M., a fim de absolvê-lo da imputação constante no art. 33, caput, da Lei 11.343/06, nos termos do art. 386, inc. VII, do Código de Processo Penal, com a consequente expedição de alvará de soltura se por outro motivo não estiver preso.

Gabinete Des. Sérgio Rizelo


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