TJ/SC efetua análise jurídica da esterilização cirúrgica irregular em julgamento proferido pela Quarta Câmara Criminal

11/08/2015

Por Redação - 11/08/2015

A Quarta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina proferiu decisão na Apelação Criminal n. 2011.085665-2 em que analisou a criminalização da esterilização cirúrgica irregular, especialmente a laqueadura tubária durante o parto.

Segundo o Des. Relator Jorge Schaefer Martins, tal criminalização acaba por restringir norma constitucional de eficácia plena relativa ao planejamento familiar, o qual é de livre decisão do casal e, por isso, sua constitucionalidade é questionável.

Destacou também a necessidade de observância do princípio da intervenção mínima e que é caso de responsabilidade penal subjetiva, não havendo que se falar em corresponsabilidade do diretor  da instituição médica que não agiu com dolo ou culpa.

Leia a íntegra da decisão abaixo.


Apelação Criminal n. 2011.085665-2, de Campo Erê

Relator: Des. Jorge Schaefer Martins

CRIME DE ESTERILIZAÇÃO CIRÚRGICA IRREGULAR. ARTIGOS 15, 16 E 19, TODOS DA LEI 9.263/96. DIPLOMA QUE REGULAMENTA O PLANEJAMENTO FAMILIAR. ARTIGO 226, § 7º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. SENTENÇA CONDENATÓRIA. RECURSO DA DEFESA.

CRIMES PREVISTOS NA LEI 9.263/96. CONSTITUCIONALIDADE POLÊMICA. DISSONÂNCIA COM O ARTIGO 226, § 7º, DA CARTA MAGNA. RESTRIÇÃO DE NORMA CONSTITUCIONAL DE EFICÁCIA PLENA. PLANEJAMENTO FAMILIAR. LIVRE DECISÃO DO CASAL. FUNDAMENTO NOS PRINCÍPIOS DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DA PATERNIDADE RESPONSÁVEL.

Discutível a constitucionalidade da proibição da laqueadura tubária durante o parto, pois a disposição da Lei n. 9.263/96 está em dissonância com o artigo 226, § 7º, da Constituição Federal. A Magna Carta estabelece que o planejamento familiar é de livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, o qual é fundado, inclusive, nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável.

PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA. QUESTIONAMENTO REFERENTE À NECESSIDADE DE MODERAÇÃO DO LEGISLADOR NO MOMENTO DE ELEGER AS CONDUTAS DIGNAS DE PROTEÇÃO PENAL. DISPOSIÇÃO DE GERAR FILHOS. BEM JURÍDICO PROTEGIDO CUJA DECISÃO NÃO SERIA RELEVANTE À SOCIEDADE.

Milita contra a criminalização da esterilização cirúrgica a aplicação do princípio da intervenção mínima. Cuida-se de princípio que tem como destinatário não só o legislador, como o intérprete do Direito, recomendando moderação no momento de eleger as condutas dignas de proteção penal. Isso é feito justamente para afastar a "proliferação legislativa" de crimes cujo bem jurídico protegido não é penalmente relevante ao indivíduo, tampouco, à sociedade.

DENÚNCIA. DIRETOR DE HOSPITAL. ATRIBUIÇÃO DE CORRESPONSABILIDADE EM VIRTUDE DE REALIZAÇÃO DE LAQUEADURA TUBÁRIA EM PACIENTE. IMPOSSIBILIDADE. RESPONSABILIDADE PENAL OBJETIVA. NECESSIDADE DE REALIZAÇÃO DE CONDUTA COM CULPA OU DOLO.

A denúncia deve atribuir ao agente a realização de uma conduta criminosa ou explicitar de que forma contribuiu para o delito. A atribuição genérica da conduta típica e ilícita praticada pelo agente, sem a definição da extensão do seu dolo ou da sua culpa, implica, inegavelmente, na caracterização da responsabilidade penal objetiva. É cediço que o sistema penal pátrio adotou, como regra, o princípio da responsabilidade penal subjetiva, logo, não basta que a conduta seja materialmente causada pelo agente, só podendo haver responsabilização se o fato foi desejado com dolo ou culpa.

AUTO DE EXAME DE CORPO DE DELITO. LAUDO PERICIAL. AUSÊNCIA. MATERIALIDADE. INEXISTÊNCIA. IMPRESCINDIBILIDADE DE PERÍCIA MÉDICA.

Para a comprovação de realização de procedimento médico ou intervenção cirúrgica, é indispensável a feitura de exame de corpo de delito direto, não bastando a simples consulta à prontuário médico ou depoimento testemunhal. Dessa forma, é necessária a realização do auto de exame de corpo de delito, consubstanciado no laudo pericial, o qual comprovaria, indubitavelmente, a materialidade, consistente na efetiva realização da esterilização cirúrgica – laqueadura tubária – na paciente mencionada na inicial acusatória.

É cediço que os crimes que deixam vestígios exigem para comprovação da materialidade, conforme artigos 158 e 159 do Código de Processo Penal, a elaboração do exame de corpo de delito por perito oficial, não podendo ser suprido, nestes autos, pela juntada de prontuário médico ou ficha de atendimento hospitalar.

REFORMA DA DECISÃO DE PRIMEIRO GRAU. RECURSO PROVIDO.

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Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Criminal n. 2011.085665-2, da comarca de Campo Erê (Vara Única), em que são apelantes L.M. e O.L. e apelado o Ministério Público do Estado de Santa Catarina:

A Quarta Câmara Criminal decidiu, por unanimidade, dar provimento ao recurso para absolver os réus, fulcro no artigo 386, inciso II, do Código de Processo Penal. Custas legais.

Participaram do julgamento, realizado em 13 de fevereiro de 2014, os Excelentíssimos Desembargadores Roberto Lucas Pacheco e Rodrigo Collaço. Emitiu parecer pela Procuradoria-Geral de Justiça o Dr. Heloísa Crescenti Abdalla Freire.

Florianópolis, 24 de março de 2014.

Jorge Schaefer Martins

Presidente e Relator

Relatório

O Ministério Público da Comarca de Campo Erê ofereceu denúncia contra L.M. e O.L. pela prática do crime definido no artigo 15, parágrafo único, inciso I c/c artigo 19, ambos da Lei n. 9.263/96, bem como contra R.H.J., pela prática do crime definido no artigo 15, parágrafo único, inciso I c/c artigo 16 da mesma lei, em razão da prática dos seguintes fatos:

Extrai-se do incluso inquérito policial que, em data de 20 de setembro de 2002, no Hospital X Ltda., situado no centro desta cidade de Campo Erê, o denunciado R.H.J., médico, realizou esterilização cirúrgica na pessoa de R.A. de R., simultaneamente ao parto de seu filho, ou seja, na mesma intervenção.

Consta, ainda, que o médico R.H.J. deixou de notificar à autoridade sanitária a esterilização cirúrgica realizada em R.A. de R..

Ressalte-se que a intervenção realizada pelo denunciado R., médico do Hospital X, era do conhecimento e permitida pelos denunciados L.M. e O.L., proprietários e administradores de referido nosocômio, que inclusive cobraram pelo procedimento médico.

Recebida a denúncia em 05 de novembro de 2004 (fl. 60); o réu R. foi citado por edital, sendo suspenso o processo e o curso do prazo prescricional em relação a ele.

Devidamente citados (fl. 67); e interrogados (fls. 77 a 81); os réus L. e O. apresentaram resposta à acusação. Ouvidas cinco testemunhas; as partes apresentaram alegações finais.

O Magistrado de Primeiro Grau, Dr. André Luiz Bianchi, proferiu sentença nos seguintes termos:

Ante os fatos e fundamentos expostos, JULGO PROCEDENTE a PRETENSÃO PUNITIVA ESTATAL, para os seguintes fins: a.1) CONDENAR o réu L.M., qualificado, à pena de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de reclusão, em regime aberto, e ao pagamento de 13 (treze) dias-multa, no valor de 3/5 (três quintos) do salário mínimo vigente à época dos fatos, como incurso nas sanções do art. 15, parágrafo único, inc. I, c/c art. 19, ambos da Lei n. 9.263/96; a.2) SUBSTITUIR a pena privativa de liberdade a ele aplicada, nos termos anteriormente mencionados; b.1) CONDENAR o réu O.L., qualificado, à pena de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de reclusão, em regime aberto, e ao pagamento de 13 (treze) dias-multa, no valor de 3/5 (três quintos) do salário mínimo vigente à época dos fatos, como incurso nas sanções do art. 15, parágrafo único, inc. I, c/c art. 19, ambos da Lei n. 9.263/96; e b.2) SUBSTITUIR a pena privativa de liberdade a ele aplicada, nos termos anteriormente mencionados (fls. 241/257).

Irresignados, os réus interpuseram recurso de apelação, sustentando a ausência de materialidade delitiva; a atipicidade da conduta; erro de proibição; e participação de menor importância.

Com as contrarrazões, ascenderam os autos a esta Corte.

A Procuradoria-Geral de Justiça, em parecer da lavra da Dra. Heloísa Crescenti Abdalla Freire, opinou pelo desprovimento do recurso.

Voto

Merece provimento o recurso.

Inicialmente, cumpre esclarecer que, na data de 31 de outubro de 2002, o Ministério Público requisitou a abertura de Inquérito Policial para averiguar a possível prática do crime de concussão praticado por funcionário púbico (artigos 316, caput, combinado com o 327, § 1º, ambos do Código Penal), em virtude de suposta cobrança indevida de intervenção cirúrgica (laqueadura tubária) em hospital conveniado pelo Sistema Único de Saúde.

Em não havendo prova do delito mencionado, a investigação tomou novo rumo, para que ocorresse o "aproveitamento" dos atos já praticados pela Autoridade Policial, culminando no oferecimento da denúncia pelo delito de "esterilização irregular", crime descrito nos artigos 15, 16 e 19, todos da Lei 9.263/96, estatuto que regulou o artigo 226, § 7º, da Constituição Federal, que dispõe:

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

[...]

§ 7º - Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.

Já os artigos da mencionada Lei prevêem, respectivamente, que:

Art. 15. Realizar esterilização cirúrgica em desacordo com o estabelecido no art. 10 desta Lei. (Artigo vetado e mantido pelo Congresso Nacional) Mensagem nº 928, de 19.8.1997

Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, se a prática não constitui crime mais grave.

Parágrafo único - A pena é aumentada de um terço se a esterilização for praticada:

I - durante os períodos de parto ou aborto, salvo o disposto no inciso II do art. 10 desta Lei.

II - com manifestação da vontade do esterilizado expressa durante a ocorrência de alterações na capacidade de discernimento por influência de álcool, drogas, estados emocionais alterados ou incapacidade mental temporária ou permanente;

III - através de histerectomia e ooforectomia;

IV - em pessoa absolutamente incapaz, sem autorização judicial;

V - através de cesária indicada para fim exclusivo de esterilização.

Art. 16. Deixar o médico de notificar à autoridade sanitária as esterilizações cirúrgicas que realizar.

Pena - detenção, de seis meses a dois anos, e multa.

[...]

Art. 19. Aplica-se aos gestores e responsáveis por instituições que permitam a prática de qualquer dos atos ilícitos previstos nesta Lei o disposto no caput e nos §§ 1º e 2º do art. 29 do Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal.

Por fim, dispõe o artigo 10 da Lei 9.263/96 os elementos normativos do tipo penal em exame:

Somente é permitida a esterilização voluntária nas seguintes situações:

I - em homens e mulheres com capacidade civil plena e maiores de vinte e cinco anos de idade ou, pelo menos, com dois filhos vivos, desde que observado o prazo mínimo de sessenta dias entre a manifestação da vontade e o ato cirúrgico, período no qual será propiciado à pessoa interessada acesso a serviço de regulação da fecundidade, incluindo aconselhamento por equipe multidisciplinar, visando desencorajar a esterilização precoce;

II - risco à vida ou à saúde da mulher ou do futuro concepto, testemunhado em relatório escrito e assinado por dois médicos.

§ 1º É condição para que se realize a esterilização o registro de expressa manifestação da vontade em documento escrito e firmado, após a informação a respeito dos riscos da cirurgia, possíveis efeitos colaterais, dificuldades de sua reversão e opções de contracepção reversíveis existentes.

§ 2º É vedada a esterilização cirúrgica em mulher durante os períodos de parto ou aborto, exceto nos casos de comprovada necessidade, por cesarianas sucessivas anteriores.

§ 3º Não será considerada a manifestação de vontade, na forma do § 1º, expressa durante ocorrência de alterações na capacidade de discernimento por influência de álcool, drogas, estados emocionais alterados ou incapacidade mental temporária ou permanente.

§ 4º A esterilização cirúrgica como método contraceptivo somente será executada através da laqueadura tubária, vasectomia ou de outro método cientificamente aceito, sendo vedada através da histerectomia e ooforectomia.

§ 5º Na vigência de sociedade conjugal, a esterilização depende do consentimento expresso de ambos os cônjuges.

§ 6º A esterilização cirúrgica em pessoas absolutamente incapazes somente poderá ocorrer mediante autorização judicial, regulamentada na forma da Lei.

Assim, vê-se que a lei em tela criou o delito de "esterilização cirúrgica irregular", nomenclatura conferida pelo Supremo Tribunal Federal, na AP 401, cujo Relator foi o Min. Dias Toffoli, em decisão do Tribunal Pleno, julgado em 08 de setembro de 2011.

Neste julgado do Pretório Excelso, consta que "A esterilização pode ser entendida como o ato ou efeito de esterilizar, ou seja, de tornar infértil, infecundo, improdutivo (o animal, a planta, a terra). Nos seres humanos, a esterilização consiste no ato de empregar técnicas especiais, cirúrgicas ou não, no homem ou na mulher, para impedir a fecundação. Antônio Chaves classifica a esterilização em eugênica, cosmetológica, terapêutica ou de limitação de natalidade (Direito à vida e ao próprio corpo. 2. ed. revista e ampliada. São Paulo: RT, 1994)".

Sendo assim, com referência à esterilização feminina, o crime pune, basicamente, a realização de "laqueadura tubária", condutas que envolvem conceitos complexos, não facilmente identificáveis por leigos.

Preliminarmente, de se dizer que em artigo publicado na jornal Carta Forense, em 14 de julho de 2009, o Promotor de Justiça de São Paulo, Dr. Eduardo Martins Boiati, defende a inconstitucionalidade da proibição da laqueadura tubária durante o parto, entendendo que a lei em exame está em dissonância com o artigo 226, § 7º, da Constituição Federal, pois restringe norma constitucional de eficácia plena, já que o planejamento familiar é de livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, o qual é fundado, inclusive, no princípio da dignidade da pessoa humana (http://www.cartaforense.com.br/conteudo/artigos/inconstitucionalidade-da-proibicao-de-laqueadura-tubaria-durante-o parto/4410).

Ademais, a respeito da liberdade de planejamento familiar, o Supremo Tribunal Federal, na ADI 3510, de relatoria do Min. Ayres Britto, julgada em 29 de maio de 2008, que versou sobre a constitucionalidade da Lei de Biossegurança, utilizou como argumento para a sua fundamentação, que:

"A decisão por uma descendência ou filiação exprime um tipo de autonomia de vontade individual que a própria Constituição rotula como ‘direito ao planejamento familiar’, fundamentado este nos princípios igualmente constitucionais da ‘dignidade da pessoa humana’ e da ‘paternidade responsável’. (...) A opção do casal por um processo in vitro de fecundação artificial de óvulos é implícito direito de idêntica matriz constitucional, sem acarretar para esse casal o dever jurídico do aproveitamento reprodutivo de todos os embriões eventualmente formados e que se revelem geneticamente viáveis. O princípio fundamental da dignidade da pessoa humana opera por modo binário, o que propicia a base constitucional para um casal de adultos recorrer a técnicas de reprodução assistida que incluam a fertilização artificial ou in vitro. De uma parte, para aquinhoar o casal com o direito público subjetivo à ‘liberdade’ (preâmbulo da Constituição e seu art. 5º), aqui entendida como autonomia de vontade. De outra banda, para contemplar os porvindouros componentes da unidade familiar, se por eles optar o casal, com planejadas condições de bem-estar e assistência físico-afetiva. Mais exatamente, planejamento familiar que, ‘fruto da livre decisão do casal’, é ‘fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável’ (§ 7º desse emblemático artigo constitucional de nº 226ctx20). O recurso a processos de fertilização artificial não implica o dever da tentativa de nidação no corpo da mulher de todos os óvulos afinal fecundados. Não existe tal dever (inciso II do art. 5º da CF), porque incompatível com o próprio instituto do ‘planejamento familiar’ na citada perspectiva da ‘paternidade responsável’. Imposição, além do mais, que implicaria tratar o gênero feminino por modo desumano ou degradante, em contrapasso ao direito fundamental que se lê no inciso II do art. 5º da Constituição. Para que ao embrião in vitro fosse reconhecido o pleno direito à vida, necessário seria reconhecer a ele o direito a um útero. Proposição não autorizada pela Constituição".

Nesse contexto, pode-se extrair da decisão do Pretório Excelso, que o casal possui autonomia para efetivar o seu planejamento familiar de acordo com sua realidade, podendo tomar as decisões que melhor lhe aprouver, sendo isto reflexo e materialização do princípio da paternidade responsável.

Ainda, milita contra a criminalização da esterilização cirúrgica a aplicação do princípio da intervenção mínima. Este, que, além do legislador, também tem como destinatário o intérprete do Direito, recomenda moderação no momento de eleger as condutas dignas de proteção penal, justamente para afastar a "proliferação legislativa" de crimes cujo bem jurídico protegido não é penalmente relevante nem ao indivíduo, tampouco, à sociedade.

De acordo com Cleber Masson, o direito penal deve ser compreendido, indiscutivelmente, como a “ultima ratio”, pois sua função, por excelência, é a de proteção aos bens jurídicos seletivos (Direito penal esquematizado, vol. 1: parte geral, arts. 1º a 120. São Paulo: Método, 2011. p. 38).

Sobre o mesmo tema, leciona Bitencourt:

Os legisladores contemporâneos, nas mais diversas partes do mundo, têm abusado da criminalização e da penalização, em franca contradição com o princípio em exame, levando ao descrédito não apenas o Direito Penal, mas a sanção criminal, que acaba perdendo sua força intimidativa diante da inflação legislativa reinante nos ordenamentos positivos.

O princípio da intervenção mínima, também conhecido como a ultima ratio, orienta e limita o poder incriminador do Estado, preconizando que a criminalização de uma conduta só se legitima se constituir meio necessário para a prevenção de ataques contra bens jurídicos importantes. Ademais, se outras formas de sanção ou outros meios de controle social revelarem-se suficientes para a tutela desse bem, a sua criminalização é inadequada e não recomendável

Nesse viés, permitir que o direito penal – medida extrema de aplicação – se preste a tutelar qualquer bem jurídico criado, sem qualquer juízo de valor positivo acerca da relevância do bem a ser efetivamente criminalizado, é perpetuar a inflação legislativa e a hipertrofia do direito penal.

A propósito, é firme sentir que a Lei nº 9.263/96, no tocante a sua parte penal, não encontra sintonia com os princípios da intervenção mínima, que, repisa-se, deve ser reservado às excepcionais hipóteses efetivamente necessárias.

Ademais, não há mandado constitucional de criminalização no artigo 226 da Constituição Federal, ao contrário do que ocorre, por exemplo, com o artigo 5º, inciso XLII, em que Lei Maior ordenou ao legislador ordinário a criminalização do racismo, que ocorreu com a Lei n. 7.716/89.

Nesse viés, o constituinte não emitiu ordem criminalizadora para a conduta de deliberação autônoma da entidade da família acerca da quantidade de filhos que o casal se dispõe a conceber, como deixou de definir quais seriam os métodos legítimos para evitar uma fecundação não planejada ou indesejada.

A questão é, inclusive, de política pública e de controle de taxa de natalidade, sendo que, a criminalização da esterilização pode até estimular a sujeição das gestantes a métodos “clandestinos” contraceptivos, que violam agressivamente a sua integridade física.

Certamente, a intenção do legislador, quando da edição da Lei nº 9.263/96, não era criminalizar todo e qualquer tipo de procedimento de esterilização e, menos ainda, aqueles em que os legítimos responsáveis pela organização familiar expressamente consentem. O caso dos autos pressupõe que o casal teria tomado a decisão conjuntamente, optando por realizar a laqueadura tubária, conforme se depreende de seus depoimentos nas fls. 172 e 184.

Reforça-se que o Direito Penal só deve ser aplicado em casos excepcionais. Nesse sentido já decidiu o Superior Tribunal de Justiça que "a missão do Direito Penal moderno consiste em tutelar os bens jurídicos mais relevantes. Em decorrência disso, a intervenção penal deve ter o caráter fragmentário, protegendo apenas os bens jurídicos mais importantes e em casos de lesões de maior gravidade" (HC 50863/PE, Rel. Ministro Hélio Quaglia Barbosa, Sexta Turma, j. em 04/04/2006).

Bem como o Supremo Tribunal Federal, decidindo acerca do princípio da insignificância:

O sistema jurídico há de considerar a relevantíssima circunstância de que a privação da liberdade e a restrição de direitos do indivíduo somente se justificam quando estritamente necessárias à própria proteção das pessoas, da sociedade e de outros bens jurídicos que lhes sejam essenciais, notadamente naqueles casos em que os valores penalmente tutelados se exponham a dano efetivo ou potencial, impregnado de significativa lesividade. O direito penal não se deve ocupar de condutas que produzam resultado, cujo desvalor – por não importar em lesão significativa a bens jurídicos relevantes – não represente, por isso mesmo, prejuízo importante, seja ao titular do bem jurídico tutelado, seja à integridade da própria ordem social (HC 92463, Relator: Min. Celso de Mello, Segunda Turma, j. em 16/10/2007).

Na sequência, deve-se consignar que a denúncia atribui aos apelantes a corresponsabilidade pela esterilização da paciente, por se tratarem de proprietários e administradores do nosocômio onde os fatos teriam ocorrido, sem informar, contudo, de que forma contribuíram para o crime.

Ora, a atribuição genérica da conduta típica e ilícita praticada pelo agente, sem a definição da extensão do seu dolo ou da sua culpa, implica, inegavelmente, na caracterização da responsabilidade penal objetiva.

É cediço que o sistema penal pátrio adotou, como regra, o princípio da responsabilidade penal subjetiva, logo, não basta que a conduta seja materialmente causada pelo agente, só podendo haver responsabilização se o fato foi desejado com dolo ou culpa.

Mesmo que excepcionalmente nossa legislação preveja exemplos concretos de responsabilidade penal objetiva, que são raros, tais como a rixa qualificada (artigo 137, parágrafo único, do Código Penal) e a teoria da actio libera in causa (artigo 28, inciso II, do mesmo diploma), o crime ora analisado deve ser examinado sob a ótica da responsabilidade penal subjetiva.

Portanto, é inadmissível condenar os apelantes pela prática do crime tipificado, por serem administradores do hospital em que foi realizada a laqueadura tubária, sem que lhe sejam obrigatoriamente atribuída uma conduta em que tenham agido com culpa ou dolo.

Sobre o tema, ensina Fernando Capez:

Nenhum resultado objetivamente típico pode ser atribuído a quem não o tenha produzido por dolo ou culpa, afastando-se a responsabilidade objetiva. No mesmo modo, ninguém pode ser responsabilizado sem que reúna todos os requisitos da culpabilidade (Curso de direito penal. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 44).

Acerca da impossibilidade da responsabilização penal objetiva, já decidiu esta Corte:

APELAÇÃO CRIMINAL. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. SONEGAÇÃO FISCAL (ART. 1º, II, DA LEI N. 8.137/90). NÃO RECOLHIMENTO DO ICMS. SENTENÇA ABSOLUTÓRIA. RECURSO DO ÓRGÃO MINISTERIAL OBJETIVANDO A CONDENAÇÃO DOS RÉUS. NÃO ACOLHIMENTO. APELADO VERÍSSIMO DA CUNHA BATISTA. CONTADOR DA EMPRESA. AUSÊNCIA DE PROVAS ESCORREITAS DE QUE O AGENTE POSSUÍA PODER DE DECISÃO ACERCA DA SONEGAÇÃO DE TRIBUTOS OU QUE AUXILIASSE OS ADMINISTRADORES DA EMPRESA NA FRAUDE EMPREGADA. RESPONSABILIDADE OBJETIVA QUE DEVE SER AFASTADA. APLICAÇÃO NECESSÁRIA DO PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO. ABSOLVIÇÃO MANTIDA. "No processo criminal, maxime para condenar, tudo deve ser claro como a luz, certo como a evidência, positivo como qualquer expressão algébrica. Condenação exige certeza absoluta, fundada em dados objetivos indiscutíveis, de caráter geral, que evidenciem o delito e a autoria, não bastando a alta probabilidade desta ou daquele. E não pode, portando, ser a certeza subjetiva, formada na consciência do julgador, sob pena de se transformar o princípio do livre convencimento em arbítrio" (RT 619/267). APELADA MARIA SALETE PICKLER BATISTA. SÓCIA-ADMINISTRADORA DA EMPRESA FRAUDADORA. AGENTE QUE, APESAR DO SEU CARGO, NÃO EXERCIA FUNÇÕES GERENCIAIS. AUSÊNCIA DE PROVA INEQUÍVOCA DE TER PARTICIPADO OU CONTRIBUÍDO PARA A PRÁTICA DELITIVA. CONDUTA QUE NÃO PODE SER PRESUMIDA, SOB PENA DE SE VER RECONHECIDA A RESPONSABILIDADE PENAL OBJETIVA. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO. ABSOLVIÇÃO MANTIDA. "A mera condição de sócio, administrador, gerente ou funcionário de uma empresa não é suficiente para a responsabilização criminal dessas pessoas pelo cometimento do crime de sonegação fiscal, sendo imprescindível que tenham participado dos atos delituosos ou, no mínimo, contribuído de qualquer forma para a sua consumação" (Apelação Criminal n. 2003.023497-7, de Itajaí, rel. Des. Carstens Köhler). (Apelação Criminal n. 2010.066786-3, de Joinville, rel. Des. Alexandre d'Ivanenko, j. 6-7-2011). RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. (Apelação Criminal n. 2013.013542-0, de Joinville, rel. Des. Marli Mosimann Vargas, Primeira Câmara Criminal, j. 17-12-2013).

APELAÇÃO CRIMINAL. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. SONEGAÇÃO FISCAL (ART. 2º, II, DA LEI N. 8.137/90). NÃO RECOLHIMENTO DE ICMS. SENTENÇA CONDENATÓRIA. RECURSO DO CORRÉU. PEDIDO DE ABSOLVIÇÃO DIANTE DA AUSÊNCIA DE DOLO. ALEGADO O NÃO PAGAMENTO DO TRIBUTO EM RAZÃO DAS DIFICULDADES FINANCEIRAS DA EMPRESA. INACOLHIMENTO. IMPOSTO SOBRE A CIRCULAÇÃO DE BENS E SERVIÇOS (ICMS) QUE, POR SER TRIBUTO INDIRETO, ONERA O CONSUMIDOR FINAL (CONTRIBUINTE DE FATO). FALTA DE RECOLHIMENTO QUE PREJUDICA TODA A COLETIVIDADE. RECURSO DESPROVIDO. RECURSO MINISTERIAL. PEDIDO DE RECONHECIMENTO DO CONCURSO MATERIAL DOS CRIMES. IMPOSSIBILIDADE. REITERAÇÃO DE CONDUTAS QUE CARACTERIZA A CONTINUIDADE DELITIVA, PREVISTA NO ART. 71, DO CP. MANUTENÇÃO DA EXASPERAÇÃO EM RAZÃO DO CRIME CONTINUADO QUE SE IMPÕE. AINDA, PEDIDO DE CONDENAÇÃO DA CORRÉ POR FIGURAR NO CONTRATO SOCIAL COMO SÓCIA-ADMINISTRADORA DA EMPRESA. AUSÊNCIA DE PROVA NOS AUTOS DE QUE A ACUSADA EXERCIA FUNÇÕES GERENCIAIS NA EMPRESA. ADEMAIS, CORRÉU QUE CONFESSA QUE ADMINISTRAVA A EMPRESA SEM A INTERFERÊNCIA DA ESPOSA. VEDAÇÃO DA RESPONSABILIDADE PENAL OBJETIVA. MANUTENÇÃO DA SENTENÇA ABSOLUTÓRIA. RECURSOS CONHECIDOS E DESPROVIDOS. (Apelação Criminal n. 2013.020506-4, de Joinville, rel. Des. Volnei Celso Tomazini, Segunda Câmara Criminal, j. 12-11-2013).

E, não bastasse o argumento da impossibilidade de conferir ao crime a responsabilização objetiva, verifica-se, também, que a materialidade do fato imputado, não está suficientemente demonstrada.

Da doutrina de Delton Croce e Delton Croce Júnior, tem-se que a perícia ou diligência médico-legal é "toda sindicância praticada por médico, objetivando esclarecer à Justiça os fatos de natureza específica e caráter permanente, em cumprimento à determinação de autoridades competentes", sendo que a Autoridade Judicial deve recorrer ao profissional de medicina toda vez que em uma ação penal ou civil, deva ser esclarecido um fato médico (Manual de Medicina Legal. 8 ed. São Paulo: Saraiva. 2012. p. 39).

Segundo ditos autores, a perícia sobre pessoa, visa determinar a identidade, idade, raça, sexo, altura, bem como diagnosticar prenhez, o parto e o puerpério, dentre outras coisas.

Ainda, esclarecem que, enquanto o exame de corpo de delito registra no laudo a existência e a realidade do delito, o corpo de delito é o próprio crime na sua tipicidade, sendo que o resultado obtido na perícia tem como objetivo evidenciar a realidade da infração penal (op. cit. p. 43).

Nesse contexto, nas infrações penais que deixam vestígios, o artigo 158 do Código de Processo Penal estatui a obrigatoriedade de realização de laudo pericial, e, a falta desse exame, ou sua elaboração fora do referido permissivo legal, faz nula a prova da materialidade do fato criminoso, não sendo possível o suprimento do vício nem mesmo pela confissão do acusado.

Nesse sentido:

"Nulo é o processo em que, tendo a infração penal deixado vestígios e não existindo qualquer obstáculo à realização do exame de corpo de delito, este não é realizado. O art. 158 do CPP encerra uma regra de observância compulsória, cuja preterição é fulminada com a pena de nulidade, não suprindo a confissão do réu, nem a prova testemunhal" (RT, 208:71).

Dessa feita, como bem mencionado pelos doutrinadores retromencionados, a prova da realização de procedimento médico ou intervenção cirúrgica, indispensável para a comprovação da materialidade, se faz através de exame de corpo de delito direto, não bastando a simples consulta à prontuário médico ou depoimento testemunhal.

Cumpre esclarecer que a "ficha clínica é documento particular que, ao contrário do documento público, não tem presunção relativa de validade e, por nem sempre ser permanentemente arquivada, dificulta sobremodo a consulta para a produção de prova para eventual revisão criminal" (ob cit. p. 44).

Dessa forma, é necessária a realização do auto de exame de corpo de delito, consubstanciado no laudo pericial, o qual comprovaria, indubitavelmente, a materialidade, consistente na efetiva realização da esterilização cirúrgica – laqueadura tubária – na paciente mencionada na inicial acusatória.

Além disso, poder-se-ia discutir acerca da necessidade de comprovação do sucesso da intervenção cirúrgica, isto é, que a mulher submetida ao procedimento tenha ficado efetivamente estéril, já que o crime previsto na Lei 9.263/96 tutela o planejamento familiar.

Assim, somente o prontuário médico e a ficha de atendimento, por si só, não são suficientes para a comprovação do delito, pois, inegavelmente, não se pode descartar a possibilidade de falha no procedimento.

Nesse contexto, de acordo com um estudo realizado conjuntamente pela Associação Médica Brasileira e pelo Conselho Federal de Medicina, com o objetivo de conciliar informações da área médica a fim de padronizar as condutas dos profissionais, datado de maio de 2009, o índice de falha em procedimentos de laqueadura gira em torno de 18,5 (dezoito vírgula cinco) casos em 1000 (um mil) paciente[1].

Aliás, não são raras as ações cíveis de indenização em virtude da falibilidade da laqueadura tubária, com consequente nascimento de filhos não desejados:

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE RESSARCIMENTO DE DANOS. FALIBILIDADE DO PROCEDIMENTO DE LAQUEADURA. INEXISTÊNCIA DE ATO ILÍCITO (ERRO MÉDICO) POR PARTE DO PROFISSIONAL. INSURGÊNCIA, TÃO SOMENTE, QUANTO À AUSÊNCIA DE INFORMAÇÃO POR PARTE DO MÉDICO, SOBRE A POSSIBILIDADE DE UMA NOVA GRAVIDEZ. AUTORA QUE JÁ POSSUÍA OUTROS CINCO FILHOS E ENGRAVIDOU DO SEXTO INDESEJADAMENTE. INSUBSISTENCIA DAS ALEGAÇÕES. CONHECIMENTO PÚBLICO E NOTÓRIO DA POSSIBILIDADE DE INSUCESSO DA OPERAÇÃO. ÔNUS DA PROVA QUE INCUMBIA À AUTORA. INTELIGÊNCIA DO ART. 333, I DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. DANO MORAL NÃO EVIDENCIADO. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO. (Apelação Cível n. 2009.000396-2, de Balneário Camboriú, rel. Des. Sérgio Izidoro Heil, Segunda Câmara de Direito Civil, j. 17-03-2011).

CIVIL. INDENIZAÇÃO POR ATO ILÍCITO. CIRURGIA DE LAQUEADURA TUBÁRIA. GRAVIDEZ INDESEJADA. RESPONSABILIDADE MÉDICA. OBRIGAÇÃO DE MEIO. NEGLIGÊNCIA, IMPRUDÊNCIA OU IMPERÍCIA NÃO CONFIGURADAS. NEXO CAUSAL INDEMONSTRADO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO AFASTADA. RECURSO DESPROVIDO.

A superveniência de gravidez indesejada, após cirurgia de laqueadura tubária, não enseja indenização se o médico age dentro das normas técnicas da medicina, utilizando os métodos adequados, com prudência e perícia, pois se trata de obrigação de meio, uma vez que nem mesmo a literatura médica afasta a possibilidade de uma nova gravidez. (A. C. 2006.047782-1, de Joinville, Rel.: Des. Luiz Carlos Freyesleben, j. 16.10.2009).

Em tempo, ao contrário do que poderia parecer, não se mostra viável aplicar o artigo 167 do Código de Processo Penal, cuja redação é a seguinte: "não sendo possível o exame de corpo de delito, por haverem desaparecido os vestígios, a prova testemunhal poderá suprir-lhe a falta".

Sobre tal dispositivo, destacam-se as seguintes considerações:

39. Alternativa do exame de corpo de delito: especificou o art. 158 antecedente que, nas infrações que deixarem vestígios materiais, será indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto. Assim, é preciso que os peritos façam a análise da causa mortis ou dos rastros deixados pelo delito, podendo ser lesões corporais, sinais de arrombamento, causas de um incêndio, entre outros fatores, conforme a natureza do crime. Entretanto, pode ser que os vestígios tenham desaparecido, o que, geralmente, ocorre quando o delinqüente faz o possível para ocultar sua ação. Nessas situações, quando o cadáver é perdido por qualquer causa, ou é destruído pelo agente, quando as lesões leves, uma vez curadas, desaparecem, quando a vítima troca a porta arrombada, desfazendo-se de vez da anterior, enfim, inexistindo possibilidade dos peritos terem acesso, ainda que indireto ao objeto a ser analisado, pode-se suprir o exame de corpo de delito por testemunhas [...] Acrescente-se, ainda, não ser válida a formação de corpo de delito indireto (por testemunhas), quando a responsabilidade pelo sumiço dos rastros deve-se, exclusivamente, a desídia (ou outra causa similar) dos agentes do Estado. Portanto, se o objeto da análise pericial deixou de existir porque não houve efetivação da perícia a tempo, em virtude de descaso estatal, a prova testemunhal é imprestável (NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 8. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 377-378).

Realmente, se fosse o caso, o sobredito artigo 167 do Código de Processo Penal determinaria a viabilidade de suprimento da ausência do exame de corpo de delito direito quando, por desídia estatal, ele não fosse realizado. Não se pode, nesse ponto, elastecer a interpretação desse dispositivo em prejuízo dos acusados, sob pena de violação do princípio do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa (artigo 5º, LIV e LV, da Constituição Federal).

Sobre esse assunto:

Caberia, no entanto, uma indagação: e se o exame direto for possível, e, mesmo assim, não for realizado, por inércia ou desídia da autoridade (ou, pelos mesmos motivos, for realizado de forma nula, vindo essa nulidade a ser proclamada), caberia o exame pela forma indireta? Entendemos que ocorrerá a nulidade do art. 564, inc. III, letra b, estando expressa ali a ressalva do art. 167, que – por sua vez – permite o exame indireto nas hipóteses de "... haverem desaparecido os vestígios", e não por incúria da autoridade na sua realização. Também a realização de forma direta ou indireta não é uma opção ou escolha da autoridade, mas o indireto somente é possível quando desaparecidos os vestígios (MESSIAS, Irajá Pereira. Da prova pericial. Campinas: Bookseller, 2001. p. 321).

Da mesma forma, escreve Vicente Grego Filho:

Para que a substituição do exame pela prova testemunhal possa ocorrer validamente, porém, é preciso que o desaparecimento dos vestígios seja decorrente de causas não-imputáveis aos órgãos de persecução penal.

O exemplo clássico do corpo de delito indireto é o do homicídio com o corpo jogado ao mar, não sendo possível o exame necroscópico.

Se, porém, os vestígios desaparecerem em virtude de inércia, inclusive burocrática, dos órgãos policiais ou judiciais, a menor segurança da prova testemunhal não pode ser carreada ao acusado. Assim, se a vítima de um furto com arrombamento, cansada de esperar a visita dos peritos, manda consertar a janela arrombada e, por ocasião do exame, não se constatam mais vestígios, a prova testemunhal não pode suprir a falta da perícia. O art. 167 do Código de Processo Penal, como uma exceção à garantia do acusado quanto à constatação dos vestígios por exame pericial, deve ser interpretado estritamente, impondo que se aplique, exclusivamente, à hipótese de desaparecimento natural, ou por ação do próprio acusado, e não por inércia dos órgãos de persecução penal que atuam contra o eventual réu (Manual de processo penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 222).

Reafirma-se, pois, que o exame de corpo de delito indireto, normalmente efetuado por meio da inquirição de testemunhas, é supletivo ao exame de corpo de delito direto, razão pela qual a realização desse exame não é uma mera faculdade, notadamente diante da redação do artigo 158 do Código de Processo Penal, que determina ser indispensável a sua feitura.

Bem assim, diante da prova documental referendada, não houve maiores embaraços à realização do auto de exame de corpo de delito, que não foi realizado, ao que tudo indica, por desídia dos órgãos estatais.

Não impressiona, nessa ordem de idéias, a assertiva de que no processo penal brasileiro prevalece o princípio da verdade real, o qual justificaria uma flexibilidade da legislação processual. Isso porque a verdade buscada na instrução criminal deve ser aquela viável de ser alcançada por meio das provas lícitas ou legítimas, nunca a que poderia supostamente ser verificada com violação à legislação material ou processual vigente.

Dessa perspectiva, a chamada verdade real, para ser admitida no processo penal, deve ser, antes de tudo, uma verdade demonstrada de acordo com a lei, e não aquela que o Julgador, por razões puramente subjetivas, entende deva ser trazida à tona nos autos, custe o que custar, doa a quem doer.

Assim sendo, não é viável admitir a prova de um fato que não tenha sido demonstrado em termos legais, ainda que a Autoridade Judiciária, subjetivamente, esteja convencida da sua existência. Do corpo do voto proferido no REsp. n. 901.856/RS, Rel. Min. Felix Fischer, Quinta Turma, j. 26 de junho de 2007, extrai-se o seguinte trecho, que reforça a argumentação ora utilizada:

A injustificável falta do exame de corpo de delito, a par de constituir uma nulidade por força da lei, pode eventualmente ensejar, como conseqüência, a falta de prova essencial de materialidade do delito ou de circunstância qualificadora ou majorante. Tudo depende processualmente do caso em si. O que não pode acontecer é reconhecer-se, como homenagem à suposta verdade real, algo como provado, quando em verdade, em termos legais, tal demonstração inocorreu.

No presente caso, como referendado, não houve a realização da perícia para constatação de que o procedimento cirúrgico foi efetivamente realizado, ou que a paciente não seja capaz de gerar filhos, isto é, não há exame de corpo de delito para a aferição da materialidade.

Nessa conformidade, é necessária a absolvição dos réus, com base no artigo 386, inciso II, do Código de Processo Penal, devendo ser dado provimento ao recurso.


Notas e Referências:

[1] http://www.projetodiretrizes.org.br/8_volume/29-Esterilizacao.pdf


Imagem Ilustrativa do Post: CPMC Surgery // Foto de: Artur Bergman // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/crucially/412116547/ Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode
 

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