Por Redação - 31/10/2015
Em interessante decisão proferida pelo Juiz de Direito Matheus Martins Moitinho, da Comarca de Chorrochó (BA), foi extinto o feito sem resolução de mérito em virtude da duração do processo ter excedido o tempo considerado razoável para seu processamento e julgamento.
Segundo o entendimento adotado, não é razoável adotar o limite máximo de 03 anos como tempo de duração do processo, como efetuado no Paraguai, por exemplo. Em observância ao princípio da presunção da inocência e devendo ser a pena aplicada a partir do mínimo legal, o critério a ser adotado como razoável para fixação do “tempo de vida” processual deve ser a pena mínima abstratamente imposta.
Como no presente caso não foi realizado juízo valorativo positivo no que tange às provas produzidas pelo órgão acusador dentro desse período, o feito foi extinto de modo terminativo, ou seja, sem resolução do mérito, adotando-se solução semelhante à prevista na legislação processual paraguaia, porém adaptada à ordem jurídica brasileira.
A decisão aborda ainda a relatividade do tempo processual e a natureza secundária do processo como pena infligida ao acusado. Leia a íntegra abaixo.
PROCESSO Nº 0000041-59.2006.805.0157
AUTOR: MINISTÉRIO PÚBLICO
RÉU: XXXX
RÉU: YYYY
NATUREZA: AÇÃO PENAL
.
SENTENÇA
.
Atribuo ao presente ato força de mandado, para fins de possibilitar o seu célere cumprimento, em consagração ao princípio constitucional da razoável duração do processo, servindo a segunda-via como instrumento hábil para tal.
1. RELATÓRIO
O Ministério Público ofertou denúncia no dia 21 de agosto de 2006, atribuindo a XXXX e YYYY, devidamente qualificados, a prática de delito previsto no art. 157, § 2º, I e IV c/c 14, II, ambos do Código Penal Brasileiro.
No dia 12 de setembro de 2006, o Magistrado que oficiava na Comarca à época dos fatos recebeu a inicial acusatória, entendendo pelo ajustamento formal da mesma.
Até o presente momento não houve a prolação de sentença nos autos, seja para absolver, extinguir a punibilidade ou para condenar os Acusados.
É o que merece ser relatado. Passo a fundamentar e decidir.
2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. DO PROCESSO COMO PENA. APLICAÇÃO DO TEMPO RELATIVO EM LUGAR DA BALISA ABSOLUTA PREGADA NO SISTEMA ATUALMENTE VIGENTE
O legislador constituinte conferiu ao Ministério Público a titularidade da ação penal pública, conforme prevê a redação do art. 129, I, da Constituição Federal.
Deflagrada a ação penal pelo Ministério Público, é mister que o órgão acusatório se movimente no sentido de que o Poder Judiciário pratique os atos processuais pertinentes à verificação da (ir) responsabilidade penal do Acusado, tendo em vista que o atual cenário do direito processual penal brasileiro não admite jamais a figura do juiz instrutor ou inquisidor que ainda insiste em aparecer em dispositivos no atual e ancião Código de Processo Penal Brasileiro.
Sim, o Código de Processo Penal Brasileiro atual é de 1941, editado a partir do Código Rocco Italiano, fruto de ideias cunhadas a partir de um modelo fascista, de feições marcadamente autoritárias, punitivistas e utilitárias. Estamos na era da Constituição Federal de 1988, que se diz cidadã, e simplesmente o modelo punitivo atual não parece encabeçar o perfil democrático que inspirou a nova égide constitucional, inspirando-se cada dia mais no movimento Lei e Ordem e esquecendo-se de princípios constitucionais fundamentais ao cidadão, como a presunção da inocência, a proibição de pena degradante ou humilhante, a garantia de tratamento digno à figura do preso ou do Acusado no processo penal.
A partir da inclusão do princípio da razoável duração do processo no art. 5º, LVXIII, da CF, muito se pensou em efetividade processual na seara cível, mas nada ou muito pouco se disse em matéria criminal. Para o processo civil, meio em que se prima, por exemplo, pela condenação em obrigação de dar quantia certa e a plena satisfação da pretensão mediante penhora online, sistema RENAJUD, entre outros, preocupou-se em inovar com instrumentos cada vez mais sofisticados de efetivação de decisões judiciais. E no processo penal, o que se fez?
No processo penal, seletivo por natureza, nada se pensou em conferir efetividade aos direitos fundamentais daquele que infortunadamente (até porque a presunção da inocência é princípio constitucional fundamental) viu contra si a incidência do sistema penal. Presídios e penitenciárias abarrotadas e fétidas mais parecem celeiros de especialização criminosa, onde se vê verdadeiros “congressos” de presos sem mínima perspectiva de ressocialização e inclusão social. Aliás, como ressocializar quem sempre esteve à margem, ou seja, sequer foi socializado?
A nódoa que se cria em qualquer pessoa que se submeta ao processo penal brasileiro vem desde o sistema policial, truculento por natureza, por vezes sombrio, espaço este em que pouco ou nunca se vê a oportunidade do Acusado apresentar defesa quanto a imputação que lhe é dirigida. Prende-se para depois saber o porquê de se prender.
Além disso, o olhar da sociedade para aquele que tenha sido atraído pela atuação estatal em seara criminal muda radicalmente, mesmo que ainda não haja sentença condenatória e com trânsito em julgado. Criminoso, delinquente, entre outros adjetivos nada carinhosos são cunhados pelos mais variados programas sensacionalistas da televisão brasileira, emitindo-se verdadeiras sentenças condenatórias sociais em matéria criminal. Custe o que custar, faça o que fizer, não mais se conseguirá retornar ao estado anterior de presumidamente inocente.
É por essa razão que o tempo no processo penal não pode ser encarado de forma meramente absoluta, como se a prescrição fosse a rainha última da perda do direito do Estado em exercer o poder punitivo. O princípio da razoável duração do processo, o qual adveio a partir da Emenda Constitucional nº 45/2004, quis transformar o Poder Judiciário num serviço público eficiente, o que na seara criminal apresenta um viés binário, a saber: a) efetividade do direito fundamental social à segurança pública e proteção dos bens jurídicos mais essenciais à sociedade e indivíduo; b) pleno respeito das garantias fundamentais do cidadão.
O respeitado Aury Lopes Junior já emitiu opinião sobre o tema, o fazendo no seguinte sentido:
“No que se refere ao Direito Penal, o tempo é fundante de sua estrutura, na medida em que tanto cria como mata o direito (prescrição), podendo sintetizar-se essa relação na constatação de que a pena é tempo e o tempo é pena. Pune-se através de quantidade de pena e permite-se que o tempo substitua a pena. No primeiro caso, é o tempo do castigo, no segundo, o tempo do perdão e da prescrição. Como identificou MESSUTI, os muros da prisão não marcam apenas a ruptura no espaço, senão também uma ruptura do tempo. O tempo, mais que o espaço, é o verdadeiro significante da pena.
O processo não escapa do tempo, pois ele está arraigada na sua própria concepção, enquanto concatenação de atos que se desenvolvem, duram e são realizados numa determinada temporalidade. O tempo é elemento constitutivo inafastável do nascimento, desenvolvimento e conclusão do processo, mas também na gravidade com que serão aplicadas as penas processuais, potencializadas pela (de) mora jurisdicional injustificada.
Sem embargo, gravíssimo paradoxo surge quando nos deparamos com a inexistência de um tempo absoluto, tanto sob o ponto de vista física, como também social ou objetivo, frente a concepção jurídica de tempo. O direito não reconhece relatividade ou mesmo o tempo subjetivo, e, como define PASTOR, o jurista parte do reconhecimento do tempo enquanto ‘realidade que pode ser fracionado e medido com exatidão, sendo absoluto e uniforme. O direito só reconhece o tempo do calendário e do relógio, juridicamente objetivado e definitivo. E mais, para o Direito, é possível acelerar e retroceder a flecha do tempo, a partir de suas alquimias de estilo ‘antecipação de tutela’ e ‘reversão dos efeitos’, em manifesta oposição as mais elementares leis da física.
[...]
Então, as pessoas têm o direito de saber, de antemão e com precisão, qual é o tempo máximo que poderá durar um processo concreto. Essa afirmação com certeza causará espanto e até um profundo rechaço por algum setor atrelado ainda ao paleopositivismo e, principalmente, cegos pelo autismo jurídico. Basta um mínimo de capacidade de abstração, para ver que isso está presente – o tempo todo – no direito e fora dele. É inerente às regras do jogo. Por que não se pode saber, previamente, quanto tempo poderá durar, no máximo, um processo? Porque a arrogância jurídica não quer esse limite, não quer reconhecer esse direito do cidadão e não quer enfrentar esse problema.
Além disso, dar ao réu o direito de saber previamente o prazo máximo de duração do processo ou de uma prisão cautelar, é uma questão de reconhecimento de uma dimensão democrática da qual não podemos abrir mão.
[...]
Um bom exemplo de limite normativo interno, encontramos no Código de Processo Penal do Paraguai (Ley 1286/1998), que em sintonia com a CADH, estabelece importantes instrumentos de controle para evitar a dilação indevida.
O prazo máximo de duração do processo penal será de 3 anos (art. 136 e ss), após o qual, o juiz o declarará extinto (adoção de uma solução extintiva). Também fixa, no art. 139, um limite para a fase pré-processual (a investigação preliminar), que uma vez superado, dará lugar a extinção da ação penal.”. (in “O Tempo Como Pena Processual: em Busca do Direito de Ser Julgado em um Prazo Razoável”, disponível em www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=458, site Âmbito Jurídico)
No direito brasileiro, conforme dito linhas acima, não há balizamento objetivo para o atendimento do princípio da razoável duração do processo. Em dias de transconstitucionalismo e superação da ideia clássica de soberania, é o caso de se utilizar da solução encontrada pelo legislador paraguaio, o qual atuou em franco atendimento ao quanto disposto na Convenção Americana de Direitos Humanos quanto ao direito a um processo penal sem dilações indevidas.
Isso faz parte do tema do cosmopolistismo constitucional – ou cosmopolitismo ético constitucional - isto é, a utilização de técnica de racionalidade empregada em outros cenários constitucionais, mas que servem ao modelo brasileiro de Constitucionalismo Democrático que a CF/88 se propôs ser. Já se encontra como ideia totalmente superada aquela no sentido de que um dado Estado é absolutamente soberano, reinando sozinho nas suas convicções e modos de agir perante a sociedade. Acima de tudo isso há uma ideia compartilhada em quase todos os países do globo terrestre, inclusive por alguns taxados de não-civilizados: é preciso haver o pleno respeito aos Direitos Humanos, ocupando o ser humano uma centralidade social, jurídico e política.
Porém, é preciso se aplicar o modelo alienígena a luz de uma racionalidade própria do cenário brasileiro. Não se pode simplesmente fazer uso de uma técnica de decisão estrangeira sem levar em consideração peculiaridades do sistema jurídico interno.
No Brasil, por força do princípio da presunção da inocência, no caso de eventual condenação do Acusado, a luz das provas obtidas no processo – o qual deverá respeitar irrepreensivelmente o contraditório e ampla defesa – o Magistrado deverá guiar-se pelo mínimo da pena cominada pelo legislador, somente exasperando no caso de existirem nos autos circunstâncias judiciais desfavoráveis, circunstâncias agravantes ou causas de aumento de pena.
Tendo isso em conta, ao invés de se adotar como balizamento temporal os 03 (três) anos do Código de Processo Penal Paraguaio, fixo como limite para subsistência/sobrevivência do processo o tempo da pena mínima abstratamente cominada, levando em consideração o patamar máximo de aumento e mínimo de diminuição, no caso de existirem nos autos causas de aumento e de diminuição de pena, no caso, 05 (cinco) anos e 04 (quatro) meses – art. 157, § 2º, I e IV, c/c art. 14, II, ambos do CP.
2.2. DA AUSÊNCIA DE INTERESSE PROCESSUAL. PRAZO PROCEDIMENTAL IRRAZOAVELMENTE EXTRAPOLADO. IMPOSSIBILIDADE DE ATENDER AO ESQUEMA RESSOCIALIZADOR DIANTE DA DUPLA
Considerando-se que o Acusado tem o direito a um processo penal que duração razoável, já que a ameaça de aplicação da pena, a possibilidade de aplicação de medidas cautelares diversas da prisão ou até mesmo da prisão, além dos efeitos deletérios e estigmatizadores que o processo criminal faz incidir sobre QUALQUER pessoa que se sujeite a tal cenário judicial, é de se avaliar se ainda subsiste no caso em espécie interesse processual a justificar a sua continuação.
Exercida a pretensão acusatória pelo Ministério Público ou pelo querelante, nasce para o Estado o poder de exercer a pretensão punitiva, caso haja o órgão ministerial consiga fielmente se desincumbir da carga processual que o sistema acusatório lhe impõe. É certo que o processo criminal tem procedimentos a se cumprir, através da previsão de uma série de atos concatenados tendentes a levar àquela que é, talvez, o momento mais esperado do processo: a sentença.
O Código de Processo Penal Brasileiro fixou uma série de atos processuais a serem praticados no curso do processo criminal, os quais, quando somados e tomados em consideração a partir das prorrogações que o legislador infraconstitucional previu, acaba por gerar o quantitativo de 270 (duzentos e setenta) dias para que a instrução processual penal seja concluída, isso em se tratando de procedimento da Lei de Drogas (Lei nº 11.343/06).
Pois bem. Se o legislador fez questão de prever um tempo processual que culmine na fase de sentença, na qual se averiguará devidamente a responsabilidade do Acusado nos autos, por maior razão é que se tem em evidência que o prazo da pena mínima abstratamente cominada, quando superado pelo Estado, gera a conclusão de que não mais existe qualquer interesse processual, ao ponto de gerar a extinção do feito de maneira terminativa, porém pseudo-meritória, formando coisa julgada material apta a obstar a renovação da demanda.
É que, não bastasse o lapso temporal extrapolado pelo Estado na sua missão de aferir a responsabilidade criminal do Acusado quanto ao fato que lhe é imputado na peça acusatória, o sistema prisional brasileiro tem sido objeto de verdadeira política publicamente deliberada de esquecimento por parte do Poder Executivo, fazendo de estabelecimentos penais verdadeiros antros de promoção da crueldade, do sadismo social e da afirmação de um sistema seletivo e nada ressocializador.
Tal chegou até mesmo a justificar recentemente a negativa de entrega pelo governo italiano do brasileiro Henrique Pizzolato, condenado na ação penal de nº 470 pelo e. Supremo Tribunal Federal. O governo italiano, local em que o condenado se abrigou – com claro intuito de furtar-se do cumprimento da pena que lhe foi imposta no Brasil, é bom que se diga – negou o pedido de entrega formulado pelo Estado Brasileiro, sob a justificativa de que a Itália não extradita seus nacionais para países que não cumpram com o mínimo de dignidade no âmbito prisional/penitenciário.
Já passou da hora do Estado Brasileiro, através de todos os poderes constituídos, encararem de frente o déficit democrático existente no processo penal tupiniquim. O tempo da prisão sem sentido já passou, fruto do sistema inquisitorial já abandonado pelo legislador constituinte há mais de 26 (vinte e seis) anos.
O mesmo há que se fizer quanto ao sistema prisional e a política criminal empregada no Estado Brasileiro. A perpetuidade de um modelo microssistêmico, fazendo que haja uma verdadeira dispersão na escolha do bem jurídico tutelável pela norma penal tem acarretado num quadro de inflação legislativa absurdo o suficiente para fazer que até mesmo juristas de renome, especialistas em Direito Penal, por vezes não saibam se determinada conduta realmente está prevista ou não como crime, tal o cipoal legislativo a que se chegou em matéria penal.
Recentemente o professor Juazez Cirino dos Santos, verdadeiro patrimônio intelectual da classe de juristas penalistas deu a seguinte declaração: “Hoje, sinto que sou anti-penalista.”. O que se quis dizer é que, diante do pan-penalismo que se chegou e do abandono de políticas públicas visando o combate à criminalidade, através da melhoria de indicadores sociais e de uma aplicação crítica e séria do processo penal à luz da Constituição, quem antes se dizia penalista reflete sobre seus dizeres para afirmar que é anti-criminalista.
Assim, sendo notório o fato de que, somado ao fluxo temporal irrazoável, o Estado Brasileiro não ofertará um esquema ressocializador minimamente decente ao Acusado, é de se concluir pela desnecessidade ou caráter infrutífero do processo penal, uma vez que não cumprirá com uma das funções da pena, acaso esta venha a ser aplicada após ser reconhecida a responsabilidade criminal do Acusado na espécie, qual seja: a plena ressocialização e inclusão social numa região encravada no Sertão Baiano e sistematicamente abandonada pelo poder público.
Por essas razões, é de se extinguir o feito sem exame do mérito da controvérsia, invocando aplicação analógica do art. 267, IV, do Código de Processo Civil no caso em comento.
3. DISPOSITIVO
Ante o exposto, EXTINGO O FEITO, SEM EXAME DO MÉRITO, na forma do art. 267, IV, do Código de Processo Civil, em virtude da ausência de interesse processual na espécie.
Revogo a prisão preventiva decretada em desfavor de XXXX e YYY. Expeça-se o competente contra-mandado de prisão, a fim de que não se leve a efeito qualquer ordem de prisão expedida por este MM. Juízo em face dos referidos indivíduos.
Custas não devidas, em razão de o MP ter isenção legal.
Havendo transcurso do prazo recursal in albis, certifique-se nos autos e arquive-se com as cautelas de praxe, obedecendo-se as recomendações expedidas no Ofício Circular nº 671/2009, providenciando-se a baixa no sistema SAIPRO.
Publique-se. Registre-se. Intime-se.
Chorrochó/BA, 06 de abril de 2015.
MATHEUS MARTINS MOITINHO
JUIZ SUBSTITUTO DESIGNADO PARA A COMARCA DE CHORROCHÓ
Imagem Ilustrativa do Post: Time Changes Everything.... // Foto de: Stuart Richards // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/left-hand/2085277776/ Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode