STJ reforma acórdão condenatório fundamentado em reconhecimento fotográfico

13/04/2016

Por Redação - 13/04/2016

O Ministro do STJ Rogerio Schietti Cruz reformou decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro que proferiu acórdão condenatório com base em reconhecimento fotográfico sem a observância da ratificação da prova na fase judicial. Por compreender que não havia provas válidas para condenação, o Ministro determinou a ocorrência de constrangimento ilegal, cassando o acórdão estadual e restabelecendo a absolvição do paciente, com sua imediata soltura.

Confira a decisão na íntegra.

HABEAS CORPUS Nº 232.960 - RJ (2012/0025966-1)

RELATOR : MINISTRO ROGERIO SCHIETTI CRUZ
IMPETRANTE : ANDREIA TEIXEIRA MORET PACHECO - DEFENSORA PÚBLICA
ADVOGADO : ANDREIA TEIXEIRA MORET PACHECO - DEFENSORA PÚBLICA
IMPETRADO : TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
PACIENTE : L.M.S.

EMENTA

PENAL E PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. ART. 157, § 2°, I, DO CP. CONDENAÇÃO EM SEGUNDO GRAU FUNDAMENTADA EM RECONHECIMENTO FOTOGRÁFICO DO RÉU. NÃO OBSERVÂNCIA DO ART. 226 DO CPP. PALAVRA DA VÍTIMA QUE CONFIRMOU, EM JUÍZO, TER FEITO O RECONHECIMENTO, SEM RATIFICAÇÃO DO ATO. AUSÊNCIA DE PROVA VÁLIDA PARA A CONDENAÇÃO. ORDEM CONCEDIDA.

1. O reconhecimento fotográfico, como meio de prova, é apto para identificar o réu e fixar a autoria delitiva somente quando corroborado por outras provas, colhidas sob o crivo do contraditório.

2. O reconhecimento do paciente por fotografia – realizado na fase do inquérito –, sem observância das regras procedimentais do art. 226 do CPP, não foi repetido em Juízo ou referendado por outras provas judiciais, inidôneo, portanto, para lastrear a condenação em segundo grau. Na fase judicial, a vítima apenas confirmou o boletim de ocorrência e o reconhecimento em si, mas não identificou novamente o acusado, nem sequer por meio de imagem.

3. Não pode ser validada à condenação, operada em grau de recurso por órgão colegiado distante da prova produzida pelo Juiz natural da causa, baseada única e exclusivamente em reconhecimento fotográfico realizado na polícia, sem respeito às fórmulas do art. 226 do CPP. Não se trata de negar validade ao depoimento da vítima e, sim, de negar validade a condenação baseada em elemento informativo colhido em total desacordo com as regras probatórias e sem o contraditório judicial.

4. Sob a égide de um processo penal de cariz garantista, que nada mais significa do que concebê-lo como atividade estatal sujeita a permanente avaliação de conformidade com a Constituição ("O direito processual penal não é outra coisa senão Direito constitucional aplicado", dizia-o W. Hassemer), busca-se uma verdade processual onde a reconstrução histórica dos fatos objeto do juízo vincula-se a regras precisas, que assegurem às partes um maior controle sobre a atividade jurisdicional.

5. Não é despiciendo lembrar que, em um modelo assim construído e manejado, no qual sobrelevam princípios e garantias voltadas à proteção do indivíduo contra eventuais abusos estatais que interfiram em sua liberdade, dúvidas relevantes no espírito do julgador hão de merecer solução favorável ao réu (favor rei). Afinal, "A certeza perseguida pelo direito penal máximo está em que nenhum culpado fique impune, à custa da incerteza de que também algum inocente possa ser punido. A certeza perseguida pelo direito penal mínimo está, ao contrário, em que nenhum inocente seja punido à custa da incerteza de que também algum culpado possa ficar impune (LUIGI FERRAJOLI)

6. Habeas corpus não conhecido. Ordem concedida, de ofício, para anular a condenação do paciente, restabelecer a sentença absolutória e ordenar sua soltura, salvo se por outro título judicial estiver preso.

RELATÓRIO

 O SENHOR MINISTRO ROGERIO SCHIETTI CRUZ:

L.M.S. estaria sofrendo constrangimento ilegal em decorrência de acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, na Apelação Criminal n. 0125330-53.2010.8.19.0001.

O paciente, em primeiro grau de jurisdição, foi absolvido da prática do crime de roubo. Irresignado, o Ministério Público recorreu. O Tribunal de Justiça, em 6/12/2011, deu provimento ao apelo e condenou o réu a 6 anos de reclusão e 16 dias-multa, como incurso no art. 157, § 2°, I, do CP.

Nesta Corte Superior, a Defensoria Pública busca: a) a absolvição do paciente, pois a condenação está lastreada na palavra da vítima e no reconhecimento fotográfico do acusado, realizado apenas na fase policial; b) o redimensionamento da reprimenda, pois patente a violação da Súmula n. 444 do STJ e c) a alteração do regime prisional.

O Ministério Público Federal opinou pela concessão parcial da ordem, a fim de que a pena-base seja fixada no mínimo legal, modificando-se o regime inicial para o semiaberto (fls. 272-289).

VOTO

O SENHOR MINISTRO ROGERIO SCHIETTI CRUZ (Relator):

Preliminarmente, releva salientar que o Superior Tribunal de Justiça, na esteira do que vem decidindo o Supremo Tribunal Federal, não admite que o remédio constitucional seja utilizado em substituição ao recurso próprio (apelação, agravo em execução, recurso especial), tampouco à revisão criminal, ressalvadas as situações em que, à vista da flagrante ilegalidade do ato apontado como coator, em prejuízo da liberdade do paciente, seja cogente a concessão, de ofício, da ordem de habeas corpus.

Sob tais premissas, identifico suficientes razões, na espécie, para engendrar a concessão da ordem, de ofício.

I. Do reconhecimento fotográfico

Inicialmente, convém salientar que o exame da controvérsia não demanda reexame de prova – inviável no rito de cognição estreita do habeas corpus –, mas valoração da validade de prova, o que é permitido no julgamento do writ.

O paciente, em primeiro grau de jurisdição, foi absolvido do crime de roubo majorado. Na sentença penal, o Juiz consignou que, "em termos de provas colhidas no decorrer da instrução criminal, só temos o depoimento da lesada" (fl. 169) e que "o reconhecimento fotográfico promovido por uma só vítima, não é suficiente para embasar a condenação, salvo se ratificado, direta e pessoalmente, em Juízo, o que não é a hipótese destes autos" (fl. 170).

O Tribunal de origem, contudo, deu provimento à apelação do Ministério Público e o condenou como incurso no art. 157, § 2°, I, do CP, pois, "examinando os autos, verifica-se a prova consubstanciada no depoimento da vítima, que reconheceu o apelado em juízo e, em sede policial, através de fotografia" (fl. 219).

Ao examinar a controvérsia sobre o reconhecimento policial do acusado, na fase policial, o acórdão recorrido anotou:

O reconhecimento do apelado pela vítima não precisa seguir os ditames do art. 226 do CPP, quando a certeza da autoria é corroborada por outros elementos de prova.

E apesar de não ter sido possível, inicialmente, o reconhecimento pessoal do ora apelado, o reconhecimento fotográfico é válido, se coerente com os demais elementos carreados nos autos.

Com efeito, já está pacificado o entendimento em nossa Corte Superior de que o reconhecimento por fotografia, quando corroborado por outras provas, pode servir de elemento, sendo certo que a inobservância do artigo 226 do CPP somente poderá gerar nulidade relativa, cujo reconhecimento dependerá do efetivo prejuízo às partes.

[...]

E registre-se, por oportuno, que, nos crimes contra o patrimônio, a palavra da vítima tem valor relevante para embasar o decreto condenatório, conforme pacificado pela doutrina e jurisprudência dos tribunais.

E a vítima foi coerente em suas declarações, narrando com precisão que, ao voltar do almoço, foi abordada pelo réu, que fazia uso de uma bicicleta, ocasião em que levantou a blusa, exibiu uma arma de fogo na cintura e subtraiu seu telefone celular.

Ademais, o reconhecimento ocorreu duas vezes em sede policial e, em Juízo, a vítima também reconheceu, por fotografia, o ora apelado como sendo o Autor do delito.

O entendimento doutrinário e jurisprudencial que vem prevalecendo é no sentido de ser válido o reconhecimento fotográfico e de não se dar exagerado valor á forma, aos requisitos processuais, em detrimento do conteúdo, que visa a busca da verdade real (fls. 220-221).

 O art. 155 do CPP estabelece: "O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas".

Em relação ao reconhecimento de pessoas, o art. 226 do mesmo diploma legal dispõe que o ato deverá ocorrer da seguinte forma: a pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a descrever a pessoa que deva ser reconhecida; a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la; se houver fundado receio de que a pessoa chamada para realizar o ato, por intimidação ou outra influência, não diga a verdade em face da pessoa a ser reconhecida, a autoridade providenciará para que esta não veja aquela; do ato, lavrar-se-á termo pormenorizado, subscrito pela autoridade, pela pessoa chamada para proceder ao reconhecimento e por duas testemunhas presenciais.

Esta Corte Superior, ao interpretar os dispositivos federais, entende que o reconhecimento formal, como meio de prova, é apto para identificar o réu e fixar a autoria delitiva somente quando observadas as formalidades legais e corroborado por outras provas colhidas na fase judicial. Ilustrativamente:

[...]

1. Este Superior Tribunal sufragou o entendimento de que o reconhecimento fotográfico, como meio de prova, é plenamente apto para a identificação do réu e fixação da autoria delituosa, desde que corroborado por outros elementos idôneos de convicção (HC n. 22.907/SP, Ministro Felix Fischer, Quinta Turma, DJ 4/8/2003), assim como ocorreu in casu, em que o reconhecimento pessoal feito na fase inquisitiva foi confirmado em juízo e referendado por outros meios de prova, estes produzidos em sede judicial, sob o crivo do contraditório e da ampla defesa.

2. O reconhecimento pessoal isolado não anula o ato, sendo que a presença de outras pessoas junto ao réu é uma recomendação legal e, não, uma exigência (HC n. 41.813/GO, Ministro Gilson Dipp, Quinta Turma, DJ 30/5/2005).

3. Agravo regimental improvido.

(AgRg no REsp n. 1399900/SP, Rel. Ministro Sebastião Reis Júnior, 6ª T., DJe 26/3/2015, destaquei)

[...]

1. Esta Corte sufragou entendimento "no sentido de que o reconhecimento fotográfico, como meio de prova, é plenamente apto para a identificação do réu e fixação da autoria delituosa, desde que corroborado por outros elementos idôneos de convicção" (HC 22.907/SP, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, DJ 04/08/2003), assim como na hipótese, em que o reconhecimento ocorreu por meio de fotografia e pessoalmente, tanto na fase inquisitiva como em juízo, sendo referendado por outros meios de prova produzidos em sede judicial, sob o crivo do contraditório e da ampla defesa.

[...]

(HC n. 262.715, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, 6ª T., DJe 9/4/2014).

Na hipótese, o reconhecimento inquisitorial do paciente foi realizado por fotografia, em desacordo com as regras procedimentais do art. 226 do CPP e não foi referendado por outras provas judicialmente colhidas, insuficiente, portanto, para dar lastro a uma condenação. Houve apenas a declaração da vítima, que apenas confirmou o reconhecimento fotográfico. A lesada, sem analisar novamente a foto da pessoa a ser reconhecida, declarou apenas que realizou a identificação na fase policial.

Ao contrário do que registrou o acórdão – o que já sinaliza para o evidente erro de julgamento –, não houve reconhecimento pessoal na fase do inquérito, em momento algum. O réu foi reconhecido na delegacia por fotografia – sem observância das formalidades legais – e a vítima declarou ter realizado o ato em juízo sem, contudo, ratificar a identificação do acusado, nem sequer mediante retrato colocado ao lado de outros que com ele tivessem semelhança.

Anoto, ainda, que a vítima corroborou reconhecimento eivado de irregularidades (fls. 24/31), pois o ato foi realizado sem a indicação de retratos de outras pessoas com características similares ao paciente. E mais, o auto deixou de ser assinado pelas testemunhas, tanto que, consoante relatado à fl. 66, a autoridade policial reconheceu a ilegalidade e refez o termo, um ano depois.

Como destacado pelo Juiz de primeiro grau, o reconhecimento fotográfico, como único elemento indicativo de autoria, nem mesmo foi suficiente para ensejar a prisão preventiva do acusado e, com muito mais razão, não pode ser apto a embasar o decreto condenatório, pois ausentes outros elementos de prova, colhidos sob o crivo do contraditório, não sendo suficiente para tanto o mero depoimento da vítima, confirmando haver feito a ocorrência do roubo e o reconhecimento na polícia, eivado de irregularidades.

II. Observância das regras probatórias como pressuposto de legitimidade da jurisdição criminal

É de se obtemperar que não há razão que justifique correr-se o risco de consolidar-se, na espécie, possível erro judiciário, mercê da notória fragilidade do conjunto probatório, consoante expressamente reconhecido pelo juiz natural da causa, mais próximo dos fatos e, portanto, da verdade processual.

Não é despiciendo lembrar que, em um modelo processual onde sobrelevam princípios e garantias voltadas à proteção do indivíduo contra eventuais abusos estatais que interfiram em sua liberdade, dúvidas relevantes hão de merecer solução favorável ao réu (favor rei). Afinal,

A certeza perseguida pelo direito penal mínimo está, ao contrário, em que nenhum inocente seja punido à custa da incerteza de que também algum culpado possa ficar impune (LUIGI FERRAJOLI. Direito e razão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 85)

Um dos grandes perigos dos modelos substancialistas de direito penal – alerta o jusfilósofo peninsular – é o de que, em nome de uma fundamentação metajurídica (predominantemente de cunho moral ou social), se permita um incontrolado subjetivismo judicial na determinação em concreto do desvio punível. Daí por que a verdade a que aspira esse modelo é a chamada “verdade substancial ou material”, ou seja, uma verdade absoluta, carente de limites, não sujeita a regras procedimentais e infensa a ponderações axiológicas, o que, portanto, degenera em julgamentos privados de legitimidade, face à ausência de apoio ético no modo-de-ser do processo.

De lado oposto, sob a égide de um processo penal de cariz garantista – o que nada mais significa do que concebê-lo como atividade estatal sujeita a permanente avaliação de conformidade com a Constituição ("O direito processual penal não é outra coisa senão Direito constitucional aplicado", dizia-o W. Hassemer) – busca-se uma verdade processual onde a reconstrução histórica dos fatos objeto do juízo vincula-se a regras precisas, que assegurem às partes um maior controle sobre a atividade jurisdicional.

Assim, impende sublinhar que não se trata de negar validade ao depoimento da vítima e, sim, de negar validade a uma condenação fulcrada em elemento informativo colhido em total desacordo com as regras probatórias e nem sequer confirmado em Juízo mediante exibição de novas fotos ao sujeito passivo do crime, distante, portanto, da possibilidade de refutação pelo exercício do contraditório das partes.

Anoto, por derradeiro, que a missão do Superior Tribunal de Justiça é, precipuamente, a de uniformizar a melhor interpretação da lei federal, formando precedentes que orientem o julgamento de casos futuros. Deveras, estabelecer os parâmetros de aplicação das regras probatórias do processo penal requer do STJ a clara compreensão sobre sua razão de ser: conferir unidade ao sistema jurídico, projetando a aplicação do Direito para o futuro, mediante sua adequada interpretação, a partir do julgamento dos casos de sua competência. Como acuradamente assere Daniel MITIDIERO (Cortes Superiores e Cortes Supremas: Do Controle à Interpretação, da Jurisprudência ao Precedente. São Paulo: Editora RT, 2013, passim), a decisão recorrida deve ser entendida como meio de que se vale a Corte Superior para, a partir da interpretação adequada do Direito, alcançar o máximo possível da unidade do direito aplicado em todo o território nacional, sem renunciar, por óbvio, ao controle de juridicidade das decisões recorridas

Assim, não é possível ratificar a condenação do paciente sem a observância das regras probatórias, pressuposto de validade da relação processual e de legitimidade da jurisdição criminal.  E, assim o dizendo, esta Corte de Precedentes sinaliza, para toda a magistratura nacional, que soluções similares à que serviu de motivo para esta impeteração não devem, futuramente, ser reproduzidas em julgados penais.

II. Dispositivo

À vista do exposto, não conheço do habeas corpus, mas, ao examinar seu conteúdo, identifico o apontado constrangimento ilegal, o que me leva a conceder a ordem, de ofício, para cassar o acórdão estadual e restabelecer a absolvição do paciente, determinando sua imediata soltura, salvo se por outro título judicial estiver preso.


Imagem Ilustrativa do Post: foto di foto // Foto de: Maurizio Napolitano // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/napo/3644811606

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