Revista vexatória gera votos divergentes no TJSC

09/12/2015

Por Redação - 09/12/2015

A (i)licitude das provas obtidas mediante revista íntima vexatória ainda é tema bastante controvertido nos tribunais brasileiros. Exemplo disso ocorreu no julgamento da Apelação Criminal (Réu Preso) n. 2015.047638-4 pela Segunda Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina.

Uma mulher foi presa em flagrante durante a realização de revista íntima enquanto tentava ingressar no presídio transportando drogas no interior da cavidade vaginal para o seu companheiro. A decisão, por maioria de votos, manteve a condenação da acusada pelo delito de tráfico de drogas.

Confira a ementa:

APELAÇÃO CRIMINAL. CRIME CONTRA A SAÚDE PÚBLICA. TRÁFICO DE DROGAS NO INTERIOR DE ESTABELECIMENTO PRISIONAL (ART. 33, CAPUT, C/C ART, 40, III, AMBOS DA LEI 11.343/06). SENTENÇA CONDENATÓRIA. RECURSO DA DEFESA. PLEITO DE ABSOLVIÇÃO. INVIABILIDADE. MATERIALIDADE DO CRIME E AUTORIA DEVIDAMENTE COMPROVADAS. PALAVRA DAS TESTEMUNHAS EM HARMONIA COM AS DEMAIS PROVAS EXISTENTES NOS AUTOS. APELANTE QUE, APÓS REVISTA ÍNTIMA, FOI FLAGRADA TENTANDO INGRESSAR EM ESTABELECIMENTO PRISIONAL COM 73,83G DE MACONHA, ESCONDIDA EM SUA GENITÁLIA.

PLEITEADA NULIDADE DA PROVA, EM RAZÃO DA ILEGALIDADE E/OU INCONSTITUCIONALIDADE DA REVISTA ÍNTIMA. INVIABILIDADE. REVISTA ÍNTIMA DEVIDAMENTE REALIZADA NOS MOLDES DA INSTRUÇÃO NORMATIVA N. 001/2010 DO DEAP/SC, QUE VISA ASSEGUAR A SEGURANÇA PÚBLICA (CF, ART. 6º, CAPUT, E ART. 144, CAPUT), E A INTEGRIDADE FÍSICA E MORAL DOS PRESOS (CF, ART. 5, XLIX). CONFLITO APARENTE DE NORMAS. INTERESSE PÚBLICO RELEVANTE QUE SE SOBREPÕE AO DIREITO INDIVIDUAL. PROVA VÁLIDA. TESE RECHAÇADA.

PLEITEADO O RECONHECIMENTO DE CRIME IMPOSSÍVEL (ART. 14 DO CP). INOCORRÊNCIA. CONSUMAÇÃO DO ILÍCITO QUE OCORRE COM A REALIZAÇÃO DE UM DOS NÚCLEOS DO TIPO PENAL DISPOSTOS NO ART. 33, CAPUT, DA LEI DE 11.343/06. CRIME CONSUMADO ANTERIORMENTE À ENTREGA DA MERCADORIA AO DETENTO. DELITO CONFIGURADO. CONDENAÇÃO MANTIDA.

Em que pese a condenação ter sido mantida por decisão da maioria, o voto vencido do relator Desembargador Getúlio Corrêa analisa a questão da revista íntima de um ponto de vista que merece ser considerado. Em seu voto, manifestou-se pela absolvição da acusada ante a ilicitude das provas obtidas em decorrência do procedimento de revista, o qual entende ser violador de princípios constitucionais.

Leia abaixo a íntegra do Voto Vencido.


Declaração de voto vencido do Excelentíssimo Senhor Desembargador Getúlio Corrêa.

1. A ré foi denunciada pela prática, em tese, do crime de tráfico de drogas circunstanciado, assim tipificado na Lei n. 11.343/06:

"Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa".

"Art. 40. As penas previstas nos arts. 33 a 37 desta Lei são aumentadas de um sexto a dois terços, se:

[...]

III - a infração tiver sido cometida nas dependências ou imediações de estabelecimentos prisionais [...]".

Do contido nos autos, verifico que a acusada foi surpreendida, enquanto passava pela revista íntima no Presídio Santa Augusta de Criciúma, com 73,83 gramas de maconha na cavidade vaginal, conforme se extrai do termo de exibição e apreensão (fl. 13), do laudo de constatação (fl. 15), do laudo pericial de fls. 31-34 e das palavras da vigilante do estabelecimento prisional, S.F.D.. A ré, apesar de aventar ter sido coagida pelo seu ex-companheiro, também admitiu os fatos.

Isso seria suficiente, em princípio, para manter a condenação da denunciada. Todavia, verifico que todos os elementos produzidos contra ela são ilícitos, porque tanto a prova da materialidade quanto a da autoria – inclusive a confissão, já que, diante da situação em que a ré encontrava-se, não teria como argumentar em sentido contrário – foram decorrentes da revista íntima realizada. A meu ver, este procedimento viola diversos princípios constitucionais, portanto contamina as provas dele originadas, que não podem ser sopesadas contra a acusada, nos termos do art. 5º, LVI, da CF, e do art. 157 do CPP.

2. Antes disso, porém, constato haver aparente antinomia entre os atos administrativos que regulamentam a questão. Em Santa Catarina, a revista íntima realizada nos estabelecimentos prisionais está prevista na Instrução Normativa n. 001/2010 do DEAP/SC:

"Após averiguação dos procedimentos exigidos, o visitante será conduzido até a sala de busca pessoal;

A revista pessoal é feita individualmente por um Agente Penitenciário do mesmo sexo do visitante, independentemente da idade;

Com o uso de luvas descartáveis o Agente Penitenciário revistará o visitante, solicitando que o mesmo retire todo seu vestuário, revistando-o em seguida;

O Agente Penitenciário que realizar a busca pessoal, não deverá tocar no revistado como também, sempre que efetuar a revista em menor de idade deverá exigir a presença do acompanhante no interior da sala durante o procedimento, salvo nos menores que possuam dispensa judicial para acompanhante;

Com a utilização de um espelho no chão e outro na parede, para melhor observação das partes íntimas, é feita a revista pessoal objetivando impedir entrada de objetos proibidos;

Durante o procedimento de revista com o auxílio do espelho, o Agente Penitenciário posicionado de frente para o visitante deverá olhar a parte de trás através do espelho fixado na parede, observando com muita atenção costas, pernas e/ou locais que possibilitem ao visitante burlar a segurança;

O Agente Penitenciário deverá solicitar ao visitante que mostre a sola dos pés, unhas e erga seus braços ou qualquer parte do corpo que possa ser utilizada para colagem de objetos não permitidos;

É feita também a revista na boca do visitante, pedindo para que abra a mesma e levante a língua pra cima e depois para fora da boca;

Se o visitante usar cabelo comprido, estando amarrado, deverá soltá-lo; baixar a cabeça, passando os dedos entre os cabelos em movimento de pentear no sentido da raiz para ponta;

O visitante deverá entregar o par de sandálias ao Agente Penitenciário, para que seja revistada;

O Agente Penitenciário, não necessariamente, deverá seguir a seqüência relatada nos itens anteriores, podendo inverter a ordem do procedimento padrão caso achar necessário;

O familiar ou pessoa interessada no ingresso, que opor-se ao cumprimento da determinação acima, terá sua entrada proibida" (destaquei).

Em sentido oposto é o conteúdo da Resolução n. 5/2014 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária:

"Art. 1º. A revista pessoal é a inspeção que se efetua, com fins de segurança, em todas as pessoas que pretendem ingressar em locais de privação de liberdade e que venham a ter contato direto ou indireto com pessoas privadas de liberdade ou com o interior do estabelecimento, devendo preservar a integridade física, psicológica e moral da pessoa revistada.

Parágrafo único. A revista pessoal deverá ocorrer mediante uso de equipamentos eletrônicos detectores de metais, aparelhos de raio-x, scanner corporal, dentre outras tecnologias e equipamentos de segurança capazes de identificar armas, explosivos, drogas ou outros objetos ilícitos, ou, excepcionalmente, de forma manual.

Art. 2º. São vedadas quaisquer formas de revista vexatória, desumana ou degradante.

Parágrafo único. Consideram-se, dentre outras, formas de revista vexatória, desumana ou degradante:

I - desnudamento parcial ou total;

II - qualquer conduta que implique a introdução de objetos nas cavidades corporais da pessoa revistada;

III - uso de cães ou animais farejadores, ainda que treinados para esse fim;

IV - agachamento ou saltos;

[...]" (grifei).

Qual é a regra, então, aplicável: a Instrução Normativa do DEAP – inferior, especial e anterior – ou a Resolução do CNPCP – superior, geral e posterior? Para tanto, valho-me da lição de Norberto Bobbio e, constatada antinomia entre dois critérios fortes (hierárquico e especialidade),

"pode-se talvez recorrer ao critério fraco, o cronológico, como critério subsidiário para estabelecer a prevalência de um ou outro dos dois critério fortes: prevalece o critério hierárquico, isto é, é válida a norma superior geral, se esta for posterior à outra [...].Em outros termos [...] uma norma superior geral sucessiva vence no confronto com uma norma inferior especial precedente" (O positivismo jurídico. Ícone. São Paulo, 1995. p. 206 – destaquei).

Incidiria no caso, então, a Resolução do CNPCP, que reputa vexatório o procedimento realizado em relação à ré. No entanto, o próprio autor ressalva não ser uma solução pacífica, motivo pelo qual examino o conteúdo dos referidos atos normativos.

3. A questão da revista íntima nos estabelecimentos prisionais envolve, de um lado, a segurança pública (CF, art. 6º, caput, e art. 144, caput) e, de outro, a dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III), a inadmissibilidade de tratamento degradante (CF, art. 5º, III) e a intimidade (CF, art. 5º, X). Em se tratando de colisão entre princípios, deve-se procurar, à luz dos ensinamentos de Robert Alexy, uma relação de procedência concreta a fim de averiguar qual deles possui maior peso em determinada situação e, portanto, deve subsistir, sem implicar sua invalidade ou sua expurgação do sistema jurídico. A propósito:

"Se isoladamente considerados, ambos os princípios conduzem a uma contradição. Isso significa, por sua vez, que um princípio restringe as possibilidades jurídicas de realização do outro. Essa situação não é resolvida com a declaração de invalidade de um dos princípios e com sua consequente eliminação do ordenamento jurídico. Ela tampouco é resolvida por meio da introdução de uma exceção a um dos princípios, que seria considerado, em todos os casos futuros, como regra que ou é realizada, ou não é. A solução para essa colisão consiste no estabelecimento de uma relação de precedência condicionada entre os princípios, com base nas circunstâncias do caso concreto. Levando-se em consideração o caso concreto, o estabelecimento de relações de precedências condicionadas consiste na fixação de condições sob as quais um princípio tem precedência em face do outro. Sob outras condições, é possível que a questão da precedência seja resolvida de forma contrária" (Teoria dos direitos fundamentais. Malheiros, 2. ed. São Paulo, 2011. p. 96 - destaquei).

Nessa hipótese de tensão entre o dever estatal de garantir a segurança pública e o direito da ré em ver resguardada sua intimidade, torna-se inafastável a máxima da proporcionalidade, porquanto esta guarda íntima conexão com a natureza dos princípios. O referido postulado divide-se em três sub-regras parciais: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.

3.1. Ao referir-se à adequação, Virgílio Afonso da Silva ensina que "quando uma medida estatal implica intervenção no âmbito de proteção de um direito fundamental, necessariamente essa medida deve ter como objetivo um fim constitucionalmente legítimo" e, para aferir esse propósito, deve-se questionar: "a medida adotada é adequada para fomentar a realização do objetivo perseguido?" (Direitos fundamentais. Malheiros. São Paulo, 2009. p. 169-170).

A medida estatal em questão refere-se à revista íntima dos visitantes de estabelecimentos prisionais catarinenses. Neste primeiro momento, ela é adequada ao propósito de garantir a segurança pública e de proibir a entrada de materiais ilícitos e não permitidos (como drogas, armas e celulares) no sistema penitenciário, objetivos estes que encontram respaldo no ordenamento jurídico nacional.

3.2. Para ser proporcional, o ato estatal, além de adequado, deve ser também necessário. Ou seja, o emprego de outro meio, que limite em menor medida o direito fundamental atingido, não permitiria o alcance do objetivo pretendido pelo Estado com a mesma intensidade. Logo, são dois os parâmetros que devem ser examinados: "(1) a eficiência das medidas na realização do objetivo proposto; e (2) o grau de restrição ao direito fundamental atingido" (SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais. Malheiros. São Paulo, 2009. p. 171).

A pretensão de evitar a entrada de objetos ilícitos nos presídios pode ser atingida por meio de outros atos estatais igualmente – se não mais – eficientes, como por exemplo a submissão dos visitantes a detectores de metais e a aparelhos de raio-x (como aqueles constantes nos aeroportos).

Não se diga, aqui, que a falta de verba pública justificaria o emprego de meio mais gravoso aos direitos fundamentais. Isso porque, embora o Executivo, por intermédio das polícias constituídas, tenha o dever de promover a segurança pública, também está vinculado à promoção e à efetivação dos direitos fundamentais. Nesse sentido:

"O que importa é a constatação de que os direitos fundamentais vinculam os órgãos administrativos em todas as suas formas de manifestação e atividades, na medida em que atuam no interesse público, no sentido de um guardião e gestor da coletividade" (SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais - uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. Livraria do Advogado. 11. ed. Porto Alegre, 2012. p. 378).

Logo, o argumento da reserva do possível não pode ser aplicado ao caso, porquanto a omissão estatal no tocante à infraestrutura dos estabelecimentos prisionais atinge diretamente o núcleo central e intangível dos direitos fundamentais dos visitantes. Como bem consignou o Ministro Marco Aurélio, ao votar pelo reconhecimento da repercussão geral no tema envolvendo a cláusula da reserva do possível e a pretensão de indenização por superlotação carcerária, "descabe tomar a teoria da reserva do possível como polivalente a ponto de colocar em segundo plano a Carta da República" (STF, RG no RE n. 580252, Min. Ayres Britto, j. 17.02.2011). A omissão, a meu ver, não está embasada unicamente na escassez de verbas, mas principalmente na ausência de vontade política em atender as demandas dessa parcela da população.

Tanto o meio adotado pela administração do presídio não é necessário – no sentido aqui empregado – que a Resolução n. 5/2014 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária prioriza os demais meios e estabelece ser excepcional a revista manual, conforme o art. 1º, parágrafo único, antes mencionado.

Ademais, a revogada Resolução n. 09/2006 do CNPCP dispunha que a revista pessoal deveria ser feita "sempre que possível, no preso visitado, logo após a visita, e não no visitante" (art. 5º). Aqui, embora os direitos fundamentais do visitante ficassem resguardados, é questionável a eficiência da medida, já que os objetos que indevidamente entrassem no estabelecimento prisional poderiam ser facilmente dissipados.

Isso já seria suficiente pra considerar desproporcional o ato estatal, uma vez que as sub-regras da proporcionalidade em sentido amplo relacionam-se de forma subsidiária entre si. De toda forma, analiso o último parâmetro.

3.3. Por fim, avalio a proporcionalidade em sentido estrito, que consiste "em um sopesamento entre a intensidade da restrição ao direito fundamental atingido e a importância da realização do direito fundamental que com ele colide e que fundamenta a adoção da medida restritiva" (SILVA, Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais. São Paulo, v.798, abr. 2002, p. 40).

Conforme narrado pela vigilante S., o procedimento padrão de revista na unidade prisional inclui o agachamento das visitantes no espelho, a fim de expor suas partes íntimas no intuito de localizar objetos não permitidos. Relatou, ademais, que isso é feito com todas as mulheres maiores de quatorze anos. Aplicado a este caso concreto, a último parâmetro pode ser resumido a um questionamento: a segurança dos estabelecimentos prisionais justifica a restrição à dignidade da pessoa humana e à intimidade dos visitantes? Não.

A segurança pública, exercida pelo Estado por intermédio das polícias constituídas, visa à "manutenção ou restauração da ordem pública, da incolumidade das pessoas e do patrimônio", representando "um dever do Estado (art. 144, caput), ao qual corresponde, pois, o direito do cidadão à segurança, reconhecido como direito fundamental pelo art. 5º, caput" (MEDINA, José Miguel Garcia. Constituição Federal comentada. Revista dos Tribunais. 3. ed. São Paulo, 2014. p. 581). Pretende-se, então, proteger os bens jurídicos reputados importantes para a comunidade a fim de, com isso, manter a paz social.

De outra parte, há a dignidade da pessoa humana, erigida à condição de fundamento da República (CF, art. 1º, III) e tida pela doutrina e pela jurisprudência como um sobreprincípio:

"Na resolução do caso concreto, os princípios se aproximam mais dos ideais de justiça (Dworkin) e de direito (Larenz), sendo imprescindível que se os busquem em sua fonte primordial: a Constituição. O primeiro deles - a dignidade da pessoa humana (art. 1º da CF/88) -, é considerado, mesmo, um sobreprincípio, já que constitui não só um norte para a produção e aplicação de novas regras, mas fonte comum a todos os demais princípios. A partir da dignidade da pessoa humana, a Carta Magna elencou inúmeros outros direitos, nos arts. 5º e 6º, este último que engloba a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados" (STJ, REsp n. 1251566, Min. Mauro Campbell Marques, j. 07.06.2011 - grifei).

Não se trata de um valor absoluto, pois se assim o fosse a discussão toda seria mais facilmente resolvida, cuja delimitação de conteúdo é fluida; pode-se dizer, em brevíssima síntese, ser o poder-dever conferido ao próprio ser humano e ao Estado de tratar as pessoas como fins em si mesmas, e não como instrumentos. A respeito, colho da doutrina:

"A qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra o todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida" (SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. Livraria do Advogado. 9. ed. Porto Alegre. p. 73).

No preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, reconhece-se que a "dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo". Corroborando esse propósito, o art. 5º preconiza ser vedado qualquer tratamento cruel, desumano ou degradante. O mesmo caminho é seguido pela Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH, art. 5º, item 2), recepcionada no sistema jurídico nacional como norma supralegal, e pelo art. 5º, III, da CF. Garante-se, dessa forma, que o direito à integridade física e moral de todos seja respeitado, proibindo-se tratamento vexatório e humilhante.

Pois bem. No caso, por mais relevante que seja o propósito de evitar a entrada de objetos não permitidos nos estabelecimentos prisionais, é notório que a revista íntima impõe tratamento vexatório aos visitantes. Ora, conforme o relato da testemunha, todas as mulheres maiores de quatorze anos – de adolescentes a idosas –, independentemente de qualquer suspeita relevante ou de ordem judicial, são obrigadas a despirem-se e a agacharem-se em frente a um espelho para, expostas suas partes íntimas, serem observadas por uma "estranha" a procura de algo indevido a, em tese, justificar a conduta.

Tomando como conceito de intimidade "aquilo que é mais pessoal e reservado" (MEDINA, José Miguel Garcia. Constituição Federal comentada. Revista dos Tribunais. 3. ed. São Paulo, 2014. p. 84), não concebo nada mais reservado à pessoa do que seu próprio corpo. Eventual exposição deve ser manifestação da autonomia da vontade, e não da imposição estatal. Não é o que acontece aqui: se o visitante não se sujeitar ao procedimento, "terá sua entrada proibida", nos termos da Instrução Normativa do DEAP. Viola-se, também, o direito de visita assegurado ao preso no art. 41, X, da LEP.

Esse foi, inclusive, o fundamento usado pela Desembargadora Cláudia Lambert de Faria, no Agravo de Instrumento n. 2015.013400-8, originado de ação civil pública ajuizada pela Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina. Em sede liminar, os efeitos da tutela foram antecipados para suspender o procedimento de revista pessoal quanto ao desnudamento, à observação de órgãos genitais nus e aos agachamentos. Colho trecho do voto:

"As revistas íntimas colocam os familiares dos detentos, sejam eles homens, mulheres, crianças ou idosos, em situação bastante vexatória e humilhante, o que, por si só, caracteriza uma afronta ao princípio constitucional da dignidade humana, previsto no inciso III, do art. 1º, da Constituição Federal".

Anoto, por oportuno, que os efeitos da decisão foram suspensos, liminarmente, no Mandado de Segurança de n. 2015.016606-7, relatado pelo Desembargador Sérgio Roberto Baasch Luz. Todavia, ainda não houve julgamento de mérito da questão.

Nada obstante, como antes transcrito, a Resolução n. 5/2014 do CNPCP é categórica ao considerar vexatório, dentre outros métodos de revista, o desnudamento e o agachamento, conforme disposto no art. 2º, parágrafo único, I e IV.

Pensar de forma contrária seria impor uma sanção indireta àqueles que ostentam a condição de parentes ou amigos de detentos. A pena, de certa forma, ultrapassaria a pessoa do condenado (CF, art. 5º, XLV), estigmatizando sobremaneira aqueles que pretendem ingressar no local.

Assim, como "é o Estado que existe em função da pessoa humana, e não ao contrário, já que o ser humano constitui finalidade precípua, e não meio de atividade estatal" (SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. Livraria do Advogado. 9. ed. Porto Alegre. p. 80), penso que neste caso o sobreprincípio da dignidade da pessoa humana e o direito fundamental à intimidade não podem ser restringidos com vista à segurança dos estabelecimentos prisionais.

Sobre o tema, o seguinte julgado da Turma de Recursos do TJRS:

"Não há como deslembrar que o vexame, a humilhação da revista íntima, além de ferir a dignidade da pessoa humana, perpassa os limites de possibilidade de intervenção estatal em nome da segurança pública, atrelada à estrita legalidade, sentida no conceito amplo de conformação com os princípios consagrados pela Magna Carta" (Recurso Crime n. 71005297593, Dr. Edson Jorge Cechet, j. 24.08.2015).

Anoto, por fim, que o tema é objeto de Projeto de Lei que teve iniciativa no Senado (PL 480/2013) e agora aguarda aprovação na Câmara dos Deputados (PL 7764/2014). O objetivo é acrescentar à Lei n. 7.210/84 os seguintes dispositivos:

"Art. 83-A. A revista pessoal, à qual devem se submeter todos que queiram ter acesso ao estabelecimento penal para manter contato direto ou indireto com pessoa presa ou para prestar serviços, ainda que exerçam qualquer cargo ou função pública necessária à segurança de estabelecimentos penais, será realizada com respeito à dignidade humana, sendo vedada qualquer forma de desnudamento ou tratamento desumano ou degradante.

Parágrafo único. A revista pessoal deverá ocorrer mediante uso de equipamentos eletrônicos detectores de metais, aparelhos de raio-x ou aparelhos similares, ou ainda manualmente, preservando-se a integridade física, psicológica e moral da pessoa revistada e desde que não haja desnudamento, total ou parcial.

Art. 83-B. Considera-se revista manual toda inspeção realizada mediante contato físico da mão do agente público competente sobre a roupa da pessoa revistada, sendo vedados o desnudamento total ou parcial, o uso de espelhos e os esforços físicos repetitivos, bem como a introdução de quaisquer objetos nas cavidades corporais da pessoa revistada [...] (sem destaques no original).

Assim, por todo o exposto, tenho que as provas contra a denunciada foram obtidas em decorrência do procedimento de revista violador de princípios constitucionais (CF, art. 1º, III e art. 5º, III e X), motivo pelo qual não podem ser valoradas com o propósito condenatório (CF, art. 5º, LVI, c/c CPP, art. 157). Logo, acolho a tese defensiva, ficando prejudicadas as demais alegações suscitadas.

4. Por essas razões, e pedindo vênia a douta maioria, restei vencido para dar provimento ao recurso e absolver A.P.P. dos S., na forma do art. 386, VII, do CPP.

Florianópolis, 03 de novembro de 2015.

Getúlio Corrêa

DESEMBARGADOR


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