Por Redação - 28/08/2015
A Segunda Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina manteve a decisão proferida pelo Juiz de Direito Alexandre Morais da Rosa, da 4ª Vara Criminal da Comarca da Capital, na Apelação Criminal n. 2015.012074-8.
O caso envolve os delitos de tráfico de drogas e de posse de arma de fogo de uso restrito com numeração suprimida e munições. Diante das inúmeras divergências em relação aos depoimentos dos policiais militares que efetuaram a apreensão e do acusado no que tange à descrição do desenvolvimento dos fatos, foi efetuada minuciosa análise pelo Juízo a quo do Relatório do GPS existente na viatura que atendeu a ocorrência, chegando-se à conclusão que a versão policial apresentava graves inconsistências com o Relatório referido. Por outro lado, a versão do acusado guardou bastante similitude com o trajeto apurado.
Além disso, havia dúvidas/ausência de provas acerca da concessão de autorização para entrada dos policiais nas residências do acusado e de seus pais, o que tornou ilícita a apreensão efetuada nesses locais.
Confira abaixo o Acórdão na íntegra. Vale a leitura!
Apelação Criminal n. 2015.012074-8, da Capital
Relator: Des. Substituto Volnei Celso Tomazini
.
APELAÇÃO CRIMINAL. CRIME DE TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES (ART. 33, CAPUT, DA LEI N. 11.343/06) E POSSE DE ARMA DE FOGO DE USO RESTRITO COM NUMERAÇÃO SUPRIMIDA E MUNIÇÕES (ART. 16, PARÁGRAFO ÚNICO, INCISO IV, DA LEI N. 10.826/03). SENTENÇA ABSOLUTÓRIA (ART. 386, II E V, DO CPP). RECURSO DA ACUSAÇÃO.
RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. ALEGAÇÃO DE QUE HÁ PROVAS SUFICIENTES DA AUTORIA E MATERIALIDADE. DEPOIMENTOS DOS POLICIAIS QUE SERIAM APTOS A EMBASAR A CONDENAÇÃO. NEGATIVA DE AUTORIA PELO RÉU. VERSÕES DOS FATOS DADAS PELOS POLICIAIS QUE APRESENTAM SÉRIAS INCONSISTÊNCIAS. GPS DA VIATURA DA POLÍCIA MILITAR QUE DEMONSTRA QUE A PRISÃO EM FLAGRANTE E A APREENSÃO DE DROGAS NÃO OCORRERAM NO LOCAL INFORMADO PELOS POLICIAIS. INEXISTÊNCIA DE SITUAÇÃO DE FLAGRÂNCIA QUE TERIA JUSTIFICADO A ENTRADA DOS POLICIAIS NA RESIDÊNCIA DOS PAIS DO RÉU E NO APARTAMENTO DESTE. DÚVIDA ACERCA DA LICITUDE DA OBTENÇÃO DA AUTORIZAÇÃO DA ENTRADA DOS POLICIAIS NA RESIDÊNCIA DOS PAIS DO RÉU. AUSÊNCIA DE PROVA DA AUTORIZAÇÃO PARA A ENTRADA DOS POLICIAIS NO APARTAMENTO DO RÉU. DIVERGÊNCIAS ACERCA DA QUANTIDADE DE DROGA APREENDIDA. CONJUNTO PROBATÓRIO QUE NÃO FORNECE A CERTEZA NECESSÁRIA DO COMETIMENTO DOS CRIMES PELO RÉU. ABSOLVIÇÃO MANTIDA, PORÉM POR FUNDAMENTO DIVERSO (ART. 386, VII, DO CPP). RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO.
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Criminal n. 2015.012074-8, da comarca da Capital (4ª Vara Criminal), em que é apelante Ministério Público do Estado de Santa Catarina, e apelado H.A.S.P.:
A Segunda Câmara Criminal decidiu, por unanimidade, conhecer e desprover o recurso da acusação, para manter a absolvição do réu, porém, por fundamento diverso (art. 386, VII, do CPP). Custas legais.
Participaram do julgamento, realizado nesta data, os Exmos. Srs. Des. Sérgio Rizelo (Presidente) e Des. Getúlio Corrêa. Funcionou como representante do Ministério Público o Exmo. Sr. Dr. Luiz Ricardo Pereira Cavalcanti.
Florianópolis, 11 de agosto de 2015.
Volnei Celso Tomazini
Relator
Relatório
A representante do MINISTÉRIO PÚBLICO, no uso de suas atribuições legais, ofertou denúncia contra H.A.S.P., pela prática dos crimes descritos no art. 33, caput, c/c art. 40, inciso VI, ambos da Lei n. 11.343/06, e do art. 16, parágrafo único, inciso IV, da Lei n. 10.826/03, na forma do art. 69 do Código Penal, nos seguintes termos:
No dia 4 de maio de 2013, por volta das 15 horas, a Polícia Militar recebeu denúncia no sentido de que no Centro Comunitário Capoeiras, situado na Rua Santos Saraiva, Capoeiras, nesta cidade, estava sendo praticado o comércio ilegal de drogas. Havia notícia de que a droga era entregue a adolescentes, naquele local – para que posteriormente a comercializassem –, por um indivíduo que conduzia um veículo R., placa ZZZ-9999.
Com essa informação, os Agentes Públicos efetuaram campana no mencionado endereço e, aproximadamente quatro horas depois, observaram a aproximação do sobredito automóvel, ocasião em que efetuaram a abordagem do mesmo.
Seu condutor era o denunciado H.A.S.P., e no banco do caroneiro foi apreendida uma mochila preta contendo 7(sete) tabletes de maconha (Termo de Apreensão de fls. 23/24 e Laudo de Constatação de fl. 25).
Ato contínuo, seguiram até a residência do denunciado (situada na Rodovia F.T., nº 9999, casa, A., Florianópolis/SC), e nela ingressaram com autorização do seu pai (fl. 19). No quarto de H.A.S.P. foi encontrado um pote plástico contendo mais droga (maconha) e a chave de um apartamento alugado por ele, situado na Rua A., n° 999, Kit 0000, Centro, Florianópolis/SC.
Com a notícia da existência dessa outra moradia, igualmente autorizados, os Policiais dirigiram-se até o referido apartamento, onde procederam revista, que resultou na localização de 4 (quatro) tijolos de maconha – semelhantes aqueles achados no automóvel do denunciado –, 1 (uma) barra de maconha, 1(um) torrão de haxixe, 1 (uma) balança de precisão; e também 1 revólver Rossi calibre 38 com numeração raspada, mais 5 (cinco) munições do mesmo calibre.
Na total foi apreendida a expressiva quantidade de 7.444,2g (sete quilos, quatrocentos e quarenta e quatro gramas e dois decigramas) de Cannabis sativa Lineu e 114,7g (cento e quatorze gramas e sete decigramas) de haxixe (Termo de Apreensão de fls. 23/24 e Laudo de Constatação de fl. 25).
Como se percebe, o denunciado H.A.S.P. trazia consigo, guardava e tinha em depósito droga destinada à venda, e também possuía arma de fogo com numeração raspada e munições, tudo sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar.
Diante das circunstâncias, H.A.S.P. foi encaminhado à Delegacia de Polícia para lavratura do respectivo Auto de Prisão em Flagrante.
A droga foi submetida a exame pericial (Laudo Preliminar de Constatação de fl. 25), apresentando resultado positivo para Cannabis sativa Lineu, a qual capaz de provocar dependência física e/ou psíquica, estando o seu uso e comercialização proibidos em todo o território nacional, nos termos da Portaria nº 344/98 da Secretaria de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde. (fls. 85-88).
Notificado pessoalmente (fls. 160-162), o réu apresentou defesa escrita por meio de defensor constituído (fls. 43 e 163-169), sendo que a denúncia foi recebida em 11/6/2013 (fls. 192-198).
Realizada a instrução do feito, foram ouvidas as testemunhas de acusação e defesa, bem como realizado o interrogatório do réu (fls. 403-408 e 431-436).
As partes ofereceram alegações finais às fls. 440-447 e 450-479, as quais foram complementadas às fls. 544-548 e 554-558.
Na sequência, o Juiz a quo julgou improcedente a denúncia, "para ABSOLVER o acusado H.A.S.P., já qualificado nos autos, da imputação do crime descrito no art. 33, caput, c/c art. 40, inciso VI, ambos da Lei n. 11.343/06, e do art. 16, parágrafo único, inciso IV, da Lei n. 10.826/03 , com base no art. 386, incisos II e V, do Código de Processo Penal" (fls. 559-573).
Inconformado, o MINISTÉRIO PÚBLICO apelou sustentando que há provas suficientes da autoria e materialidade do crime descrito no art. 33, caput, da Lei n. 11.343/06, bem como do delito tipificado no art. 12, caput, da Lei n. 10.826/03, em face da prisão em flagrante do réu, sendo os depoimentos dos policiais aptos a embasar a condenação (fls. 577-583).
Com as contrarrazões (fls. 587-598), os autos ascenderam a esta Corte e, com vista, a Procuradoria-Geral de Justiça, por meio do Procurador Odil José Cota, opinou pelo desprovimento do recurso e a manutenção da absolvição (fls. 7-20 desses autos).
É o relatório.
Voto
Extrai-se dos autos que, no dia 04 de maio de 2013, policiais militares teriam recebido uma denúncia anônima da prática de comércio de entorpecentes por um indivíduo condutor do veículo R., a qual estaria sendo realizada no Centro Comunitário Capoeiras, Florianópolis/SC. Após campana, ao visualizarem o referido automóvel ingressando no local, os policiais teriam efetuado a abordagem, ocasião em que identificaram o condutor como sendo o réu H., bem como apreenderam, no interior do veículo, 1 (uma) mochila preta contendo 7 (sete) tabletes de maconha.
Ato contínuo, os policiais deslocaram-se até a residência dos pais do réu, local onde teriam apreendido 1 (um) pote plástico contendo maconha e a chave do apartamento alugado na Rua A., n. 999, Kit 0000, no Centro deste Município.
Diante da ciência desse local, dirigiram-se até o supramencionado apartamento, onde foram supostamente apreendidos 4 tijolos de maconha, 1 barra de maconha, 1 torrão de haxixe, 1 balança de precisão, 1 revólver Rossi calibre 38 com numeração raspada e 5 munições de mesmo calibre.
Diante desses fatos, a representante do MINISTÉRIO PÚBLICO ofertou denúncia contra H.A.S.P., pela prática dos crimes descritos no art. 33, caput, c/c art. 40, inciso VI, ambos da Lei n. 11.343/06, e do art. 16, parágrafo único, inciso IV, da Lei n. 10.826/03, na forma do art. 69 do Código Penal.
Após a colheita de provas, em suas alegações finais, o parquet pugnou pela condenação do réu pela prática do crime descrito no art. 33, caput, da Lei n. 11.343/06, e art. 12, caput, da Lei n. 10.826/03.
A sentença de fls. 559-573, por sua vez, com base no art. 386, incisos II e V, do Código de Processo Penal, absolveu o réu: a) por falta de provas acerca da autoria; b) por existir diversas divergências nos depoimentos dos policiais; c) por haver divergência no material apreendido, inclusive em relação às drogas; d) por ser ilegal o flagrante e a apreensão das drogas, da arma de fogo e das munições, sendo, por isso, ilegais as provas, de modo que estaria ausente a materialidade delitiva.
Inconformado com a absolvição, o MINISTÉRIO PÚBLICO apelou e pugnou pela condenação do réu.
Pois bem.
A materialidade dos delitos está comprovada por meio do boletim de ocorrência (fls. 3-4); termo de exibição e apreensão (fls. 20-23); fotografia (fl. 24); laudo de constatação n. 331/13 (fl. 25); laudo pericial de identificação de substâncias entorpecentes n. 5729/2013 (fls. 141-144); e laudo pericial de exame em arma e munição n. IC/0000000/2013 (fls. 150-153).
Quanto à autoria, é necessário analisar como se deu a prisão em flagrante do réu e como as apreensões foram realizadas, a fim de se aferir a legalidade das provas, uma vez que, segundo a defesa, a primeira apreensão de drogas não existiu, bem como os policiais teriam ido ao apartamento do réu no Centro da cidade e, somente depois, à residência de seus pais (Bairro A.), diversamente do que constou na denúncia, fatos esses relevantes para a análise da absolvição do réu. Veja-se.
Conforme o boletim de ocorrência n. 00000-2013-00000, os policiais que estavam com a viatura PPT-0000, receberam uma denúncia anônima de tráfico de drogas no Centro Comunitário do Bairro Capoeiras, Florianópolis/SC, na tarde de 4 de maio de 2013. Consta no referido documento que um veículo R. transportava drogas para distribuição e que, após 4 horas de observação em campana, os policiais abordaram o automóvel, que estava sendo conduzido pelo réu H.. No interior do automóvel teria sido encontrado uma mochila contendo 7 tabletes de maconha. O local do fato descrito no boletim seria a Rua D.G.C., Bairro C., Florianópolis/SC, relativo à primeira apreensão de drogas (fls. 3-4).
Em princípio, cumpre ressaltar que, embora se trate de denúncia anônima, cabe à autoridade policial, ao receber a informação de determinado delito, proceder à averiguação e investigação do fato noticiado, não havendo ilegalidade nesse sentido.
Sobre o tema, Julio Fabbrini Mirabete leciona:
Não obstante o art. 5.º, IV, da CF, que proíbe o anonimato na manifestação do pensamento, e de opiniões diversas, nada impede a notícia anônima do crime (notitia criminis inqualificada), mas, nessa hipótese, constitui dever funcional da autoridade pública destinatária, preliminarmente, proceder com a máxima cautela e discrição a investigações preliminares no sentido de apurar a verossimilhança das informações recebidas. Somente com a certeza da existência de indícios da ocorrência do ilícito é que deve instaurar o procedimento regular (Código de processo penal interpretado. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 99).
Esclarece-se, ademais, que "Não há, na linha da jurisprudência do c. Supremo Tribunal Federal, (v.g. HC 95.244/PE, 1ª Turma, Rel. Min. Dias Toffoli, DJE 30/04/2010) qualquer ilegalidade na determinação de realização de diligência para apurar a veracidade de denúncia anônima formulada dando conta da prática de crime de tráfico de entorpecentes, da qual advém a prisão em flagrante do paciente" (STJ, HC n. 137256 Min. Felix Fischer, j. 03.08.2010).
O policial C.R.P. afirmou que havia recebido a denúncia de "populares" e que fizeram campana no local por 4h antes de prenderem o réu em flagrante (fls. 5-6). E.P. DE S., também policial, prestou depoimento no mesmo sentido, pois acompanhava o policial C. (fls. 7-8).
Na fase policial, o réu optou por não prestar informações (fl. 9).
Em juízo, o policial E. "[...] relatou que receberam informações, por intermédio de um conhecido do acusado, no sentido de que este traria um carregamento de drogas em seu veículo, as quais seriam entregues próximo ao Centro Comunitário de Capoeiras, localizado na Rua Santos Saraiva". Disse que "efetuaram campana em um ponto de observação próximo. Assim que o veículo se aproximou do local, fizeram a abordagem, tendo sido encontrada uma certa quantidade de tijolos de maconha na mochila, com aproximadamente 4 a 5Kgs (quatro a cinco quilos). Acrescentou que a campana foi efetuada durante aproximadamente três a quatro horas sem a viatura e, após a prisão, foi utilizada a viatura. Em seguida, afirmou que quando foram ao Centro, na Rua A., estavam com a viatura e mais os carros do P2 de apoio, e se negou, ao ser indagado a respeito, a identificar o ponto de observação". (fl. 403). (grifei).
O policial C., que acompanhava o colega E., disse que "[...] a guarnição foi informada por um popular – um taxista que conhece o acusado – a respeito do tráfico de drogas a ser efetuado no local". Afirmou que montaram "[...] um ponto de observação para aguardar a chegada do veículo, durante cerca de três a quatro horas, quando foi feita a abordagem" e que "No interior do veículo estava somente o acusado e uma mochila com entorpecentes", o qual foi preso ainda no Bairro Capoeiras. Sobre a campana realizada, "[...] o policial não recordou se foram até o Centro Comunitário de viatura ou se a viatura os deixou lá, porque permaneceriam a pé", aduzindo que, "De toda forma, não estavam com a viatura durante a campana". Por fim, disse que "[...] chamaram o apoio e veio o restante da equipe para fazer a apreensão", mas que "[...] não se recorda em qual veículo foram do trajeto de Capoeiras até o Centro, uma vez que havia outras unidades do P2 auxiliando a ocorrência" (fl. 403 e 563). (grifei).
Interrogado judicialmente, o réu H. relatou os fatos envolvendo a investida dos policiais no final da tarde, em local próximo do seu apartamento, ou seja, em frente ao posto de gasolina, ao lado de um bar, na esquina com a Rua A., Centro, Florianópolis/SC, quando estava dentro do seu veículo R., bem como a ida de todos à residência dos seus pais, localizada no Bairro A., nesta cidade (fl. 432 e 564-565).
Vê-se, portanto, que a versão do réu é totalmente oposta à versão dos policiais, em relação ao ocorrido no Bairro Capoeiras. E, para corroborar as palavras do réu, o relatório de GPS da viatura PM0000, que atendeu à ocorrência no dia dos fatos, indica que a operação no Bairro Capoeiras não aconteceu (fls. 525-536).
Em relação às viaturas participantes da ocorrência, segundo os policiais, havia sido utilizada a viatura policial desde a apreensão, no Centro Comunitário do Bairro Capoeiras, até o momento em que o réu foi encaminhado à Delegacia de Polícia, "com o apoio das viaturas do P2".
No entanto, o ofício de fl. 551, da Polícia Militar, informa que "foi verificado o registro sob protocolo 131741, relacionado ao APF n. 343/2013, tendo esta ocorrência sido atendida apenas pela Guarnição de Serviço que integrava a Viatura PM 0000, do PPT/xxºBPM, não havendo a participação de outra viatura no referido atendimento" (grifei).
E mais. O fato de a viatura PM0000 (ou PPT-0000) não ter parado nas proximidades do Centro Comunitário do Bairro Capoeiras, situado na Rua Santos Saraiva, n. 2011, torna a versão dos policiais ainda mais duvidosa. Veja-se:
Conforme consta na fl. 527 do Relatório do GPS, a viatura transitou pela Rua Santos Saraiva entre os números 2.312 e 1.732 entre 15h42min e 15h43min, sem nenhum registro de parada. Se, conforme a versão dos milicianos, a viatura foi utilizada desde a prisão do acusado no supracitado local, não há dúvidas de que haveria registro da parada no Relatório. Saliente-se que não há outros registros da passagem da viatura pelo local no dia dos fatos. (sentença de fl. 566).
Além disso, de acordo com o réu e com as testemunhas de defesa R. e E. (fls. 431), a prisão em flagrante deu-se no final da tarde, na Rua A., e sem a presença de viatura policial. Veja-se:
A testemunha de defesa R.P. de S. (fls. 434 e mídia de fl. 431) afirmou que trabalhava no posto de gasolina situado na esquina da Rua A. com a Avenida H.. Certo dia, próximo do anoitecer, viu três homens armados correndo, sem uniforme e com armas em punho, indo na direção de dois carros estacionados em que estavam algumas pessoas, mandaram estas saírem do veículo, entraram e levaram o automóvel. Não chegou a ver se alguém foi levado junto e não soube precisar se a ocorrência que viu era de fato a dos autos. (sentença de fl. 565).
A testemunha de defesa E.R.M. (fl. 435 e mídia de fl. 431) relatou que parou o seu veículo próximo da avenida H. para tomar um café no bar situado em frente ao posto de gasolina. Quando estava retornando para o seu veículo, viu um carro trancar outro e a movimentação de alguns homens de preto. Após não viu mais nada. Na semana seguinte, seu filho, que estudava com o acusado, lhe disse que este havia sido preso próximo de onde havia visualizado aquela ocorrência. (sentença de fl. 565).
Ademais, os policiais não recordaram se estavam com a viatura ou a pé, pois de acordo com o policial C., o reforço de equipe foi chamado após a abordagem para fazer a apreensão. O policial E. prestou declarações nesse sentido, asseverando que a viatura foi utilizada após a prisão do réu, no Centro Comunitário do Bairro Capoeiras, bem como quando se dirigiram ao Centro, na Rua A., em que estavam com os carros do P2 de apoio (fl. 403).
No mais, o relatório de GPS da viatura PM0000 (ou PPT-0000) aponta que, após o veículo passar pela Rua Santos Saraiva, sem paradas, dirigiu-se à Rua do R., Bairro M.C., onde permaneceu das 15h57min até às 19h21min, de modo que a viatura não se dirigiu imediatamente ao Centro da Capital, como sustentado pelos policiais.
Portanto, a acusação não fez prova suficiente para embasar a condenação, conforme constou na sentença de fl. 567:
[...] depreende-se que o acusado não foi detido no Centro Comunitário de Capoeiras, mas em local diverso, de forma que a viatura policial PM0000 saiu da Rua do R., situada no Bairro M.C., já com o acusado detido, e foi diretamente à residência dos pais deste no Bairro P.. Há fortes indícios de que o acusado tenha sido detido no final da tarde na Rua A., em atenção à versão apresentada por este e pelas testemunhas de defesa, encaminhado até a Rua do R., e depois, seguido na viatura até a residência de seus pais e, posteriormente, ao apartamento em que morava.
Sendo assim, e como bem observado na sentença de fl. 567, "Diante das inúmeras contradições existentes nos autos, não há como se imputar ao acusado, com a certeza necessária que um édito condenatório exige, a autoria do delito de tráfico de drogas, uma vez que o local em que o acusado foi detido, a quantidade das drogas apreendidas e o modo como foi preso em flagrante não restaram devidamente esclarecidos".
Além disso, de acordo com a denúncia de fl. 85-86, após a suposta prisão em flagrante do réu e apreensão de drogas no Bairro Capoeiras, Florianópolis/SC (a qual não foi suficientemente esclarecida), os policiais teriam se dirigido à residência dos pais do réu, localizada na Rodovia F., 9999, Bairro A., nessa cidade.
Na referida residência, na companhia do réu e com suposta autorização do pai deste, os policiais teriam adentrado ao local e localizado no quarto do réu, 1 pote plástico contendo erva seca (maconha) e a chave de um apartamento alugado pelo agente, situado na Rua A., 999, Kit 0000, Centro, Florianópolis/SC, culminando na segunda apreensão de drogas (fls. 19, 23-25 e 131-134).
Com a notícia da existência dessa outra moradia e, segundo a denúncia, igualmente autorizados, os policiais dirigiram-se ao apartamento do réu, ocasião em que teriam encontrado em seu interior: 4 tijolos de maconha; 1 barra de maconha; 1 torrão de haxixe; 1 balança de precisão; 1 revólver calibre 38, marca Rossi, com numeração raspada; 5 munições do mesmo calibre, resultando na terceira apreensão de drogas (fls. 23-25, 131-134 e 150-155).
Sobre a ação dos policiais acerca dessas apreensões, o Juiz a quo anotou que "Ninguém pode ir à casa de ninguém baseado em meros indícios de que lá possa haver entorpecentes e achar que "limpou" a ilegalidade ao afirmar que a entrada foi franqueada pelos pais do acusado". (sentença de fl. 567).
Ora, como já ressaltado, registra-se que há indícios de que a prisão do réu teria ocorrido no Centro de Florianópolis/SC, próximo ao seu apartamento (e não no Bairro Capoeiras) e que, do centro, os policiais dirigiram-se à residência dos pais do réu, ao contrário do que os milicianos afirmaram.
Sobre esses fatos, o policial E. relatou em juízo que "O acusado disse morar no Centro, de forma que se deslocaram até a Rua A." e que "Chegando no segundo local, o acusado falou que não morava ali, mas no sul da ilha", ocasião em que "Foram, então, até a residência indicada, na qual moravam os pais do acusado", com 4 policiais da sua equipe mais o pessoal da P2, sendo que não houve parada antes do deslocamento para o sul da Ilha. Relatou que "Ambos, o pai e a mãe do acusado, teriam dado autorização para a entrada, contudo, não recorda quem redigiu a autorização de fl. 19, nem se esta foi redigida antes ou depois do ingresso dos policiais na casa". Afirmou não recordar se havia cachorro no local e que no quarto do réu encontrou substâncias semelhantes à maconha, de cultivo próprio segundo o réu, bem como a chave do seu apartamento do Centro (fl. 403 e sentença de fl. 563).
O policial E. ainda disse que foram ao apartamento do Centro e que adentraram no local, porque o réu disse que possuía arma e outros objetos, enquanto o réu permanecia na viatura. Informou que encontraram drogas e uma arma de fogo no local.
Em seu depoimento, o policial C. corroborou o depoimento do colega E.. Disse que "[...] a mãe do acusado assinou a autorização para a guarnição, antes do ingresso dos policiais na residência, embora não se recorde quem a redigiu". Afirmou também que foram autorizados porque havia um cachorro de grande porte na residência e que não conseguiriam entrar sem abater o animal. Relatou que entrou na casa junto com E. e que "[...] foi encontrado entorpecente desidratado e não prensado dentro de um pote, bem como uma chave com endereço na mesma rua que o acusado levou os policiais inicialmente".
O policial C. ainda disse, segundo a mãe do réu, que o apartamento do Centro teria sido alugado para o réu, razão pela qual a genitora autorizou a entrada dos policiais por escrito, documento esse que estaria nos autos ou no Batalhão. Anotou que "mostraram a autorização por escrito, assinada pela mãe do acusado e locatária do imóvel, ao porteiro, o qual não quis acompanhar os policiais", bem como encontrou no apartamento, junto com E., um revólver calibre 38 e munições do mesmo calibre, além de algumas peças de maconha em uma bolsa. O réu, por sua vez, teria permanecido o tempo todo na viatura (fl. 403 e sentença de fls. 563-564).
Em juízo, o réu negou a autoria dos crimes e deu outra versão para os fatos. Disse que a prisão teria ocorrido no Centro, próximo ao seu apartamento (e não no Bairro Capoeiras, Florianópolis/SC), em frente ao posto de gasolina e ao lado de um bar, na esquina com a Rua A., quando estava dentro do seu veículo R. aguardando um colega. Anotou que, após 5 minutos de espera, parou atrás do seu carro um A. verde-musgo, ocasião em que o rapaz desceu e adentrou no seu veículo portando uma mochila. Disse que, na sequência, um veículo preto tipo caminhonete fechou a frente do seu veículo, ocasião em que alguns homens de preto realizaram a sua prisão. Afirmou que um dos policiais saiu com seu veículo, enquanto o outro colocou-o com o rapaz no veículo A., tudo isso no final da tarde. Disse aos policiais que morava com seus pais e que encontraram uma viatura próxima a um terminal de ônibus abandonado, ocasião em que decidiram ir até a casa de seus pais, no Bairro A.. (fls. 432 e sentença de fls. 564-565).
Ou seja, de acordo com o réu, os policiais não adentraram em seu apartamento e, somente após, decidiram ir ao Bairro A., conforme afirmaram as testemunhas de acusação.
Sobre a ação dos policiais no centro da Capital, no final da tarde, a testemunha de defesa R., que trabalhava no posto de gasolina situado na esquina da Rua A. com a Avenida H., prestou informações que reforçam a versão do réu. Veja-se:
Certo dia, próximo do anoitecer, viu três homens armados correndo, sem uniforme e com armas em punho, indo na direção de dois carros estacionados em que estavam algumas pessoas, mandaram estas saírem do veículo, entraram e levaram o automóvel. Não chegou a ver se alguém foi levado junto e não soube precisar se a ocorrência que viu era de fato a dos autos. (fls. 431 e sentença de fl. 565).
A testemunha de defesa E. também viu a ação dos policiais. Veja-se:
relatou que parou o seu veículo próximo da avenida H. para tomar um café no bar situado em frente ao posto de gasolina. Quando estava retornando para o seu veículo, viu um carro trancar outro e a movimentação de alguns homens de preto. Após não viu mais nada. (fls. 431 e sentença de fl. 565).
Ainda de acordo com o interrogatório do réu, "[...] foram até a residência de seus pais, pararam a viatura e já iam entrando, momento em que pediu para os policiais esperarem, pois havia um cachorro grande lá". Assim, a pedido do réu, seu pai colaborou com os policiais. Disse que após um certo tempo, os policiais retornaram sem fazer perguntas e todos se dirigiram para o centro, sendo que os policiais estavam na posse da chave do seu apartamento, a qual continha o endereço. Em seguida, por volta de 22h, os policiais pararam em frente ao apartamento, tendo o réu permanecido na viatura com um policial. Afirmou que no apartamento não havia drogas e que, ao chegar na Delegacia, fizeram a entrega de uma mala, cujo conteúdo não conseguiu visualizar. Relatou que não viu os objetos e que nada do que foi apreendido era seu (fls. 432 e 564-565). Veja-se:
Após cerca de 5 minutos de espera, parou atrás do seu carro um A. verde-musgo, o rapaz desceu e entrou no C. do acusado, no banco do passageiro, portando uma mochila. Ato contínuo, um veículo preto tipo caminhonete, fechou a frente do veículo do acusado. Imediatamente, alguns homens de preto algemaram o acusado e esse rapaz, pegaram a mochila, e falaram "perdeu, perdeu". Um dos policiais entrou no C. e saiu com o veículo, enquanto colocaram ele e o rapaz dentro do A.. A prisão se deu no final da tarde. Em seguida, foram levados para um local situado na parte continental da Capital, não sabendo precisar a localização exata. Recorda-se que se tratava de um lugar que subia um "morrinho", com muros altos de pedra dos dois lados da rua, com uma casa em cada lado, sendo que já era noite. Então pararam o A. entre as duas casas, levaram o acusado para um lugar e o rapaz para outro, momento em que o perdeu de vista definitivamente. Colocaram o acusado sentado no chão e dois policiais ficaram conversando com ele, momento em que perguntaram se ele não iria colaborar. Depois levaram-no para um banheiro, um dos policiais o agrediu no rosto, vindo inclusive a bater com a cabeça no piso da parede, e deu-lhe uma coronhada nas costas, dizendo "tu não vai colaborar?". O acusado respondeu que não estava entendendo, que não sabia o que estava faltando. Então, o outro policial ligou o chuveiro e uma máquina de choque, e perguntou novamente "tu não vai ajudar?". O acusado respondeu que estava disposto a colaborar. Os policiais lhe perguntaram onde ele morava, ao que informou morar com os pais, de forma que eles poderiam ir até sua casa sem problemas. Em seguida, os policiais pararam de agredi-lo e o tiraram dali, e ficaram conversando a respeito do que iriam fazer. Após, colocaram o acusado numa viatura do Tático e saíram pela região continental. Passaram por um lugar que parecia ser um terminal de ônibus abandonado, um outro veículo parou ao lado da viatura, conversaram entre si, e decidiram ir até a casa do P..
Assim, foram até a residência de seus pais, pararam a viatura e já iam entrando, momento em que pediu para os policiais esperarem, pois havia um cachorro grande lá. O acusado forneceu o telefone da casa e os milicianos ligaram para o pai do acusado. Este pediu para ver se o acusado estava bem, e, apesar de não ter contato visual, o acusado pediu para que o pai colaborasse com os policiais. Após um certo tempo, os agentes retornaram, não fizeram perguntas a ele e se dirigiram para o Centro, direto para o apartamento alugado. Certamente eles haviam encontrado a chave do imóvel, a qual continha o endereço.
Por volta de 22h, os policiais pararam em frente ao apartamento, permanecendo dentro da viatura o acusado e um policial. Passados aproximadamente 20 minutos, os policiais retornaram dizendo "hoje vai ter baile funk". Em seguida encaminharam-no até a Delegacia e entregaram uma mala, cujo conteúdo não conseguiu visualizar. No interior do apartamento não havia drogas, de forma que nada do que foi apreendido era seu, nem mesmo chegou a ver os objetos. O acusado permaneceu o tempo todo dentro da viatura, desde o momento em que saiu da região continental até a sua chegada à Delegacia de Polícia. (fls. 432 e 564-565). (grifei).
Acerca da suposta autorização assinada por P., pai do réu, permitindo que os policiais adentrassem à sua residência, localizada no Bairro A; (fl. 19), o documento teria sido obtido mediante coação, na ocasião em que os policiais já estavam saindo da referida residência.
P., pai do réu, disse que por volta das 20h ou 20h30 recebeu uma ligação comunicando que a polícia estava no portão de sua casa. Afirmou que viu a viatura em frente a sua casa, "sendo que os policiais já estavam forçando o portão para entrar no terreno, com as armas em punho". Solicitou que os policiais aguardassem, pois tinha um cachorro de grande porte, mas que, quando percebeu, os milicianos já tinham aberto o portão. Relatou que "os policiais lhe mostraram uma mochila, a qual continha drogas" e disseram que o réu havia confessado que era traficante de drogas, de modo que precisavam entrar na casa. Nesse momento, afirmou que não iria permitir a entrada sem mandado judicial, ao que os policiais informaram que iriam entrar de qualquer forma, pois tratava-se de uma extensão do flagrante, previsto em lei (fls. 403 e sentença de fl. 568).
K., mãe do réu, "[...] relatou que não autorizou a entrada dos policiais em qualquer momento, nem assinou qualquer documento, seja na entrada ou na saída". Disse que "[...] P. pediu para que aguardassem enquanto prendia o cachorro na parte de cima da casa" que "quando estava terminando de prender o cão, visualizou os policiais ingressando na residência". Afirmou que "já na entrada, os milicianos teriam ameaçado o cachorro de morte, bem como, durante a entrada, o cão avançou na porta e eles o ameaçaram com as armas, de forma que o pai do acusado ficou muito nervoso com a situação. Estavam em quatro ou cinco policiais". (fls. 403 e sentença de fls. 568-569). (grifei).
Continuando, a mãe do réu disse que "No momento em que os milicianos chegaram no interior da residência, foram direto para o quarto do acusado, em busca de drogas e dinheiro", ocasião em que começaram a juntar seus objetos pessoais. Relatou que "Revistaram o local e retornaram com uma xepa de cigarro, dizendo que era maconha, e com uma outra pequena porção que parecia um ramo, afirmando que provavelmente plantavam drogas no terreno", ocasião em que disse desconhecer a origem dos objetos. Disse que "Os policiais também encontraram uma chave, a qual continha um endereço na etiqueta, sendo desta forma que os policiais tomaram conhecimento do apartamento alugado para o acusado no Centro da Capital". Registrou que, "Antes de irem embora, quando já se encontravam no portão da residência, os policiais disseram ao pai do acusado que como aqueles objetos haviam sido encontrados no interior da sua residência, ele teria que assinar um termo que os policiais iriam redigir, no qual ele se responsabilizava pelos itens apreendidos; caso se negasse a assinar, seria considerado cúmplice do crime de tráfico de drogas" (fls. 403 e sentença de fls. 569). (grifei).
Acerca da autorização para a entrada na residência do casal P. e K., pais do réu, o policial E. disse que aqueles teriam autorizado a entrada, não recordando quem redigiu a autorização de fl. 19 e nem se esta foi obtida antes ou depois do ingresso na casa. Em relação ao apartamento do centro, "relatou apenas que ingressaram no local porque o acusado teria dito haver arma de fogo e outros objetos lá guardados, nada mencionando a respeito de qualquer autorização" (fl. 403 e sentença de fl. 568).
O policial C., por sua vez, "afirmou que a mãe do acusado teria assinado a autorização para a guarnição, antes do ingresso dos policiais na residência, embora não se recorde quem a redigiu". Disse que possuíam o cachorro e que não teriam como ter acesso ao imóvel sem abater o animal, de forma que o pai do réu levou o cão até os fundos e o prendeu. Em relação ao apartamento do centro, "a existência do local teria sido informada pela mãe do acusado, a qual autorizou, novamente por escrito, o ingresso dos policiais", cuja autorização "estaria no processo ou no Batalhão da Polícia Militar". Por fim, anotou que ambos não disseram aos pais do réu que, caso não assinassem a respectiva autorização, seriam considerados como partícipes no crime de tráfico de entorpecentes. (fl. 403 e sentença de fl. 568).
Analisadas as provas, é necessário destacar que o crime de tráfico de drogas é considerado permanente, autorizando, quando observado o estado de flagrância, a entrada dos policiais em domicílio sem mandado de busca e apreensão ou autorização do morador (art. 5º, XI, da CF/1988).
Nesse sentido, oportuno transcrever lição de Guilherme de Souza Nucci:
Desnecessidade de mandado em caso de flagrante: é indiscutível que a ocorrência de um delito no interior do domicílio autoriza a sua invasão, a qualquer hora do dia ou da noite, mesmo sem o mandado, o que, aliás, não teria mesmo sentido exigir fosse expedido. Assim, a polícia pode ingressar em casa alheia para intervir num flagrante delito, prendendo o agente e buscando salvar, quando for o caso, a vítima. Em caso de crimes permanentes (aqueles cuja consumação se prolonga no tempo), como é o caso de tráfico de entorpecentes, na modalidade "ter em depósito" ou "trazer consigo", pode o policial penetrar no domicílio efetuando a prisão cabível (Código de Processo Penal comentado, 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 530-531).
Sobre o tema, o Superior Tribunal de Justiça já se manifestou:
HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS (ARTIGO 33 DA LEI 11.343/2006). APONTADA NULIDADE DA PRISÃO EM FLAGRANTE DO PACIENTE. INGRESSO NA RESIDÊNCIA DO ACUSADO SEM AUTORIZAÇÃO E SEM MANDADO JUDICIAL. AUSÊNCIA DE DOCUMENTAÇÃO COMPROBATÓRIA DAS SUPOSTAS MÁCULAS. NECESSIDADE DE PROVA PRÉ-CONSTITUÍDA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO.
Não há na impetração a cópia do auto de prisão em flagrante, documento a partir do qual seria possível a análise da alegada eiva da sua custódia e dos elementos de prova colhidos na oportunidade, quedando-se isoladas as afirmações contidas mandamus.
O rito do habeas corpus pressupõe prova pré-constituída do direito alegado, devendo a parte demonstrar, de maneira inequívoca, por meio de documentos que evidenciem a pretensão aduzida, a existência do aventado constrangimento ilegal suportado pelo paciente.
Ainda que assim não fosse, deve-se frisar que esta Corte Superior de Justiça entende ser dispensável o mandado de busca e apreensão quando se trata de flagrante de crime permanente, como na espécie, podendo-se realizar as medidas sem que se fale em ilicitude das provas obtidas [...]. (Habeas Corpus n. 179169 / SC, rel. Min. Jorge Mussi, j. em 11-10-2011).
No entanto, as circunstâncias da prisão em flagrante e a apreensão de drogas no Bairro Capoeiras não ficaram suficientemente esclarecidas, de modo que a suposta ação policial, que teria gerado a situação de flagrância, não autorizaria a entrada dos policiais na residência dos pais do réu, a noite e sem autorização ou mandado judicial.
Ademais, as provas não fornecem a certeza necessária de que a autorização de fl. 19, assinada pelo pai do réu, tenha sido obtida por meios lícitos e de forma livre e consciente, conforme os relatos de P. e K.. Já a suposta autorização para a entrada dos policiais no apartamento do centro da Capital, alugado pelo réu, que teria sido fornecida por escrito pela sua mãe K., não consta nos autos. Nesse ponto, esclarece-se que o réu não acompanhou a revista na residência, pois permaneceu o tempo todo dentro da viatura policial.
Sobre o assunto, constou na sentença:
Ainda que a suposta autorização tenha sido juntada aos autos, à fl. 19, e esteja assinada pelo pai do acusado, esta se refere tão somente à residência situada no P., além de não haver dúvidas de que não foi produzida mediante o livre consentimento do signatário, de acordo com o relato judicial dos pais do acusado.
Desta feita, tem-se que a autorização juntada à fl. 19 foi obtida mediante coação, sendo, portanto, inválida para fins probatórios. Os policiais adentraram a residência dos pais do acusado e o apartamento deste sem autorização, durante o período noturno, sem qualquer evidência de flagrante próprio. A função do Poder Judiciário é o de garantir Direitos Fundamentais do sujeito em face do Estado, a saber, as intervenções na esfera privada somente se justificam se houver uma relevância coletiva e, no caso de investigações criminais, os fundamentos precisam ser firmes.
Assim é que não há justificativa para a adoção de qualquer medida direta pela autoridade policial que não a investigação preliminar e, se for o caso, requerer-se ao Juízo competente o respectivo mandado de busca e apreensão, apresentando-se as investigações preliminares. Claro que se verificada alguma das hipóteses do art. 302, incisos I ou II, do Código de Processo Penal, estará autorizada a agir. Mas esta ação precisa estar autorizada anteriormente, ou seja, o flagrante não pode ser pressuposto, mas deve estar posto, a saber, não se pode "achar" que há fato ilícito e se adentrar. Em caso de tráfico, por exemplo, é preciso que a droga – ou sua entrega, ou mesmo a venda – tenha sido vista anteriormente no respectivo local, situação diversa da presente.
Com efeito, não basta que o agente estatal afirme que "acharam" que poderia haver drogas e armas de fogo na residência do acusado e de seus pais. É preciso que haja evidências ex ante, ou atuação policial será abusiva e inconstitucional, por violação do domicílio do acusado. E embora seja uma prática rotineira a violação da casa, não se pode continuar tolerando a arbitrariedade. Desde há muito se sabe – e os policiais não podem desconhecer a lei que não se pode entrar na casa de ninguém, pobre ou rico, sem mandado judicial, salvo na hipótese de flagrante próprio. Nem se diga que depois se verificou o flagrante, porque quando ele se deu já havia contaminação pela entrada inconstitucional no domicílio. (fl. 569).
[...]
Assim é que não se pode tolerar violações de Direitos Fundamentais em nome do resultado, à margem da legalidade e com franca violação dos Direitos Fundamentais.
Claro que o argumento seguinte é: mas o proprietário autorizou a entrada! Será que alguém acredita mesmo que o acusado ou seus pais autorizaram? Não há verossimilhança, ainda mais com a constante acolhimento jurisdicional desta prática, mormente em se tratando de crime permanente, como de tráfico. A prevalecer esta lógica, a garantia do cidadão resta fenecida. (sentença de fls. fl. 569-570).
Sobre a ilicitude da prova, colhe-se da jurisprudência:
CRIME CONTRA A SAÚDE PÚBLICA - TRÁFICO DE DROGAS - ART. 12, CAPUT, DA LEI N. 6.368/76 - MATERIALIDADE E AUTORIA COMPROVADAS - DEPOIMENTOS DOS POLICIAIS MILITARES E DE TRÊS USUÁRIOS - RETRATAÇÃO DE DOIS USUÁRIOS ISOLADA NO CONTEXTO PROBATÓRIO - ABSOLVIÇÃO INVIÁVEL - DESCLASSIFICAÇÃO PARA O CRIME DE USO - INADMISSIBILIDADE - CONDUTA "VENDER" NÃO PREVISTA NO TIPO PENAL DO ART. 16 DA LEI N. 6.368/76 OU DO ART. 28 DA LEI N. 11.343/06 - APREENSÃO DE OBJETOS NA RESIDÊNCIA FORA DAS HIPÓTESES TAXATIVAS PREVISTAS NO ART. 5.º, XI, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA - DILIGÊNCIA ILÍCITA - RESTITUIÇÃO ORDENADA - VEÍCULO UTILIZADO HABITUALMENTE PARA A PRÁTICA DO TRÁFICO - RESTITUIÇÃO INDEFERIDA - RECURSO CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO.
Comprovada a materialidade e autoria do crime de tráfico de drogas, esta por meio de depoimento de policiais e de usuários, a condenação é medida que se impõe.
O depoimento prestado na fase policial por usuários de drogas, ainda que retratado em juízo, serve para embasar um decreto condenatório quando estiver em consonância com as demais provas produzidas sob o crivo do contraditório.
Os tipos penais do art. 16 da Lei n. 6.368/76 e do art. 28 da Lei n. 11.343/03 não descrevem a conduta "vender", motivo pelo qual é inadmissível a desclassificação do tráfico de drogas quando o agente praticar tal conduta.
Não ocorrendo situação de flagrante (CR, art. 5.º, XI c/c CPP, arts. 302 e 303) dentro da residência, mostra-se ilícita a apreensão de objetos sem autorização judicial.
O veículo usado habitualmente para o fim de cometer o crime de tráfico de drogas deve ser declarado perdido. (TJSC. Apelação criminal n. 2007.045527-5, de Lages. Relator: Des. Roberto Lucas Pacheco). (grifei).
Ressalta-se, também, que existem "[...] divergências entre a quantidade de drogas apreendidas descrita na exordial (ao todo 11 tijolos, 1 barra de maconha, 1 torrão de haxixe e 01 balança de precisão), a qual se embasou nos depoimentos dos policiais na fase extrajudicial, e o Termo de Exibição e Apreensão de fl. 23, no qual aparecem 4 (quatro) torrões de maconha a mais do que os descritos na denúncia e não há registro da apreensão da balança de precisão (15 torrões de maconha, 2 buchas de maconha, 1 pedra de haxixe, 1 pote com erva seca e nenhuma balança de precisão)". (fl. 567). (grifei).
Outra divergência refere-se ao trajeto realizado pelo réu desde a prisão em flagrante até o momento em que chegou à Delegacia, pois "Segundo os depoimentos dos policiais militares, do Centro Comunitário de Capoeiras seguiram com a viatura até a Rua A., onde está situado o apartamento alugado pelo acusado; depois foram até a residência dos pais deste, localizada no P.; e retornaram à Rua A., no Centro. Dali seguiram para a Delegacia de Polícia". (fls. 566).
Porém, "Segundo o Boletim de Ocorrência de fls. 03-04, os fatos teriam se dado supostamente às 15h, de forma que a viatura não se dirigiu imediatamente ao Centro da Capital, como sustentado pelos policiais. Além disso, o início da Rua do R. muito se assemelha à descrição dada pelo acusado como sendo o local para onde foi encaminhado após a prisão em flagrante: trata-se de uma servidão estreita, com muros altos de pedras dos dois lados, na subida de um pequeno morro. Cumpre salientar que a Rua do R. é relativamente distante do Centro Comunitário de Capoeiras, não havendo como se tratar do ponto de observação para a campana policial". (fls. 566-567).
Em seguida, segundo os autos, "a viatura dirigiu-se ao Terminal de Integração de Capoeiras, o qual se encontra atualmente desativado, onde permaneceram por cerca de 03 (três) minutos, quando então se dirigiram diretamente à residência dos pais do acusado, no P., não havendo registros de que a viatura tenha se deslocado até a Rua A., novamente em consonância com a versão prestada pelo acusado. Os policiais, frise-se, foram categóricos ao afirmar que, após a prisão do acusado, teriam ido diretamente ao Centro, onde está situado o apartamento alugado por este, situado na Rua A.". (fl. 567). (grifei).
A fragilidade das provas foram verificadas e apontadas no parecer da Procuradoria de Justiça (fls. 7-20), conforme segue:
Nesse norte, impossível acolher-se a pretensão ministerial de reforma da sentença, uma vez que os elementos fáticos nos quais se baseiam a pretensão acusatória são absolutamente inadmissíveis quanto aos objetos encontrados em ambas as residências, não havendo qualquer prova material, portanto, da ocorrência do delito previsto no art. 16, parágrafo único, inciso IV, da Lei n. 10.826/03; e porque não há provas contundentes quanto a autoria do crime de tráfico de drogas, já que a versão dos policiais acerca da mochila, supostamente encontrada com o acusado, contradiz os demais elementos probatórios trazidos aos autos – particularmente o relatório GPS acostado à fl. 527 -, sendo portanto, a absolvição por insuficiência de provas medida que se impõe. (fls. 19-20).
Portanto, da análise das provas, constata-se que existem diversas incongruências nas versões dos policiais, as quais são totalmente diversas da versão do réu e das provas documentais e testemunhais, de modo que as provas produzidas pela acusação não são suficientes para a condenação.
Nesse sentido:
APELAÇÃO CRIMINAL. CRIMES DE TRÁFICO DE DROGAS, ASSOCIAÇÃO PARA SUA FINALIDADE E DE FALSA IDENTIDADE. SENTENÇA DE PARCIAL PROCEDÊNCIA DA ACUSAÇÃO. IRRESIGNAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO.
PRETENSÃO DA CONDENAÇÃO DA ACUSADA PELO DELITO CONTIDO NO ART. 33, § 1º, INC. III, DA LEI 11.343/06. IMPOSSIBILIDADE. CONJUNTO PROBATÓRIO INSUFICIENTE. DILIGÊNCIA POLICIAL MOTIVADA UNICAMENTE POR DENÚNCIA ANÔNIMA, SEM CONTAR COM CAMPANA OU PRÉVIA INVESTIGAÇÃO. AUSÊNCIA DE APREENSÃO DE MATERIAL ILÍCITO NA RESIDÊNCIA SUPOSTAMENTE UTILIZADA PARA O VIL COMÉRCIO. ABSOLVIÇÃO MANTIDA.
DELITO DE ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO DE DROGAS. ABSOLVIÇÃO DA CORRÉ QUE DESNATURA A ELEMENTAR DO TIPO PENAL CONSISTENTE NA PLURALIDADE DE AGENTES. SENTENÇA CONFIRMADA.
CRIME DE FALSA IDENTIDADE. CONDUTA CRIMINOSA NÃO EXCLUÍDA PELO EXERCÍCIO DA AUTODEFESA. MATERIALIDADE E AUTORIA DELITIVAS DEVIDAMENTE COMPROVADAS NO FEITO. CONDENAÇÃO QUE SE IMPÕE. CONSEQUENTE EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE PELA PRESCRIÇÃO RETROATIVA.
RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.
EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE PELA PRESCRIÇÃO PARA O CRIME DE TRÁFICO DE DROGAS E MAJORAÇÃO DA VERBA HONORÁRIA DEVIDA A DEFENSORA NOMEADA, DE OFÍCIO. (TJSC. Apelação criminal n. 2014.023298-5, de Itajaí. Relator: Des. Sérgio Rizelo).
No entanto, altera-se o fundamento da absolvição, pelo fato de "não existir prova suficiente para a condenação" (art. 386, VII, do CPP), eis que a materialidade dos delitos está presente nas drogas e objetos apreendidos, diversamente do que entendeu o Juízo a quo.
Conclusão
Ante o exposto, vota-se pelo conhecimento e desprovimento do recurso da acusação, para manter a absolvição do réu, porém, por fundamento diverso (art. 386, VII, do CPP).
Encaminhar cópia dos autos à Promotoria Militar do Estado de Santa Catarina, para fins de eventual apuração da alegada conduta atípica dos policiais militares que atuaram na investigação e que deflagrou a presente ação penal.
É o voto.
Imagem Ilustrativa do Post: gps // Foto de: Bradley Gordon // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/icanchangethisright/3686625053/
Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode