Prova testemunhal contraditória gera absolvição de tráfico, em São Paulo

22/03/2015

O Juiz de Direito Bruno Luiz Cassiolato, que publica no Empório do Direito (confira o artigo sobre audiência de custódia aqui), da Vara Criminal de Caraguatatuba, São Paulo, proferiu instigante decisão absolutória nos autos n. 0000623-64.2013.8.26.0663, em que a prova testemunhal policial era contraditória. Não obstante a materialidade (droga e arma) as circunstâncias da apuração criminal, já que a carga probatória é da acusação e não podem se fundar na imaginação dos personagens judiciais, implicaram na asbolvição dos agentes pelo crime de tráfico. Vale a pena conferir na íntegra, abaixo:

  Vistos.

O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO ofereceu denúncia em face de M.A.C.A., vulgo M., e A. R. D. S., vulgo M., em 10.01.2013, imputando à primeira as condutas descritas nos artigos 33, 34 e 35 da Lei n. 11.343/06 e no artigo 12 da Lei n. 10.826/06, em concurso material, e ao segundo as condutas descritas nos artigos 33 e 35 da Lei n. 11.343/06.

A denúncia foi recebida em 08.02.2013 (fl. 116), após os Réus terem apresentado defesa preliminar (fls. 101/110).

Ausentes as hipóteses de absolvição sumária, designou-se audiência una de instrução e julgamento. Neste ato foram ouvidos os Réus e as testemunhas arroladas nos autos (fl. 164).

Por fim, as partes apresentaram alegações finais escritas.

O Ministério Público, entendendo comprovados os fatos denunciados, pediu a condenação dos Réus nos termos da denúncia.

As Defesas, separadamente, diante das fragilidades que encontraram na prova produzida pela acusação, pediram a absolvição dos Réus. A Defesa do Réu A., ainda, pediu que em caso de condenação houvesse, no máximo, a consideração do delito descrito no artigo 28 da Lei n. 11.343/06, e não daqueles imputados pela acusação.

Laudos juntados às fls. 124/135, 143/145 e 41/44 do apenso relativo ao incidente de dependência toxicológica.

É o relatório. Decido.

Não há alegações preliminares pendentes de análise.

A confirmação da pretensão punitiva do Estado depende da existência de prova inequívoca de dois elementos, a materialidade e a autoria da infração penal imputada pelo órgão acusatório.

Destaco, inicialmente, que a prolação de sentença penal condenatória depende da existência de prova robusta e inequívoca a respeito dos fatos narrados pela acusação. Não há espaço para dúvidas. Não são aceitas suposições, ilações ou impressões pessoais.

Este Magistrado possui impressões próprias a respeito do que realmente aconteceu no dia dos fatos, mas não encontra provas suficientes para ampará-las nestes autos. E se assim é, não há como pretender fazer tais impressões prevalecerem a qualquer custo, por meio de distorção das provas produzidas nos autos ou procedimentos afins.

O Poder Público, e aqui incluo a Polícia, não pode agir de maneira arbitrária e casuística, imaginando que os fins justificam os meios. Não num Estado Democrático de Direito que, apesar das mazelas enfrentadas atualmente, ainda se pretende ver.

Segundo narra a peça acusatória, os Réus estavam associados para a realização do tráfico ilícito de entorpecentes desde data anterior a 24.12.2012. Nesta data, ainda conforme a denúncia, M. A. foi surpreendida portando algumas das substâncias entorpecentes descritas pela acusação e, em sua residência, ainda foram encontradas várias outras substâncias entorpecentes, maquinários, aparelhos e instrumentos destinados à preparação de drogas, um revólver Taurus, calibre 38, numerado, com nove munições, além de certa quantia em dinheiro. Na mesma oportunidade, A. foi flagrado com substâncias entorpecentes no interior de sua residência, embora em menor quantidade.

Compulsando os autos, verifico que o Ministério Público, a fim de sustentar sua acusação, apresentou provas documentais e testemunhais produzidas na fase administrativa e em Juízo.

Dentre tais documentos estão os laudos de constatação provisória, químico-toxicológico e da arma de fogo, além do auto de prisão em flagrante, auto de exibição e apreensão e do boletim de ocorrência (fls. 02/11, 13/17, 18/19, 21/23, 26/27, 124/135 e 143/145).

Esses documentos demonstram e comprovam a existência de todas as substâncias entorpecentes descritas pelo Ministério Público e a arma apreendida pelas autoridades policiais.

Não há, contudo, uma fotografia sequer dos demais equipamentos e instrumentos encontrados na casa da Ré (balança de precisão, pinos, sacos plásticos para embalagens), como costumo verificar nos demais processos existentes neste Juízo. Não que a descrição feita pela autoridade policial no auto de exibição e apreensão não mereça a fé pública que de fato possui, mas a fragilidade das provas produzidas contra os Réus inicia-se neste ponto, embora nem de longe seja o mais importante.

Além disso, há os depoimentos prestados pelos policiais militares V. B. e A. M. S. N. em duas oportunidades.

Quanto a este ponto, não apenas conheço como reiteradamente aplico o entendimento jurisprudencial pacífico a respeito da validade do depoimento de policiais militares para a formação do conjunto probatório oferecido pelo Ministério Público. E é normal que assim seja, pois não seria lógico conferir atribuições para alguém exercer um serviço público de tamanha relevância para, após, retirar-lhe a credibilidade quando atua como testemunha, presumindo sua parcialidade, má-fé ou falta de compromisso com o interesse público.

A prova produzida por meio de depoimentos dados por policiais, no entanto, assim como qualquer outra prova, deve fazer sentido dentro do contexto em que foi produzida e deve ser confrontada com todos os demais elementos contidos nos autos para que sua credibilidade seja aferida pelo julgador.

Neste ponto, verifico que há importantes divergências entre os depoimentos prestados por cada um dos policiais militares ouvidos nos autos. Mais do que isso, no entanto, verifico que as versões que eles narraram não são verossímeis porque absolutamente divorciadas do que normalmente ocorre em casos análogos aos destes autos e porque destoam dos demais elementos contidos nos autos.

O policial B. disse que havia diversas denúncias, feitas por telefone e por populares, dando conta que a Ré M.A. praticava o tráfico ilícito de entorpecentes na região e utilizada um Civic dourado. Não há nos autos um registro sequer das denúncias mencionadas, nem mesmo de denúncia anônima normalmente registrada pela polícia e apresentada em Juízo.

Disse, ainda, que dois menores apreendidos na traficância ilícita em outra oportunidade também confessaram que trabalhavam para a Ré, mas nada foi trazido aos autos nesse sentido, nem o respectivo boletim de ocorrência, nem a oitiva desses menores perante a autoridade policial, Ministério Público ou quem quer que seja. Também contrariando o que percebo em outros processos criminais.

Posteriormente, disse que a Ré possuía quatro “jogos” com quinze porções de entorpecentes em seus bolsos e que entregaria metade para o Réu vender para ela, e que ainda estava ali, na casa do Réu, para coletar dinheiro de vendas que ele deveria ter feito anteriormente. Ora, não é necessária muita experiência para saber que dificilmente alguém com tamanho envolvimento no tráfico de drogas apresente espontaneamente as drogas que estão em seu bolso, diga que estava ali para entregar mais porções para a venda, que denuncie uma outra pessoa como componente da associação criminosa e que confesse as vendas anteriores feitas pelo comparsa.

Mas não é só.

O policial B. ainda mencionou que a Ré levou a guarnição até a sua casa, espontaneamente, para entregar as demais substâncias entorpecentes (em grande quantidade e diversidade) que ali estavam armazenadas, além dos materiais e equipamentos para o preparo das drogas. Além disso, no caminho para sua casa, a Ré avisou aos policiais militares que possuía um revólver Taurus em sua residência, com as respectivas munições. Por fim, todos esses objetos, drogas e arma, estavam dentro de uma bolsa sobre o sofá, sem qualquer disfarce, dentro da casa da Ré onde estavam, no momento dos fatos, dois de seus quatro filhos. Absolutamente inverossímil a versão policial.

Por fim, B. disse que o Réu A. apontou onde possuía drogas no interior de sua residência, indicando um armário dentro do qual foi encontrada uma bolsa com algumas pedras de crack e porções de cocaína.

O policial N., nas principais partes de seu depoimento, narrou fatos semelhantes aos de seu colega.

A divergência principal, e mais importante, ocorreu quanto à dinâmica dos fatos denunciados.

Inicialmente narraram que a Ré estava estacionando o carro perto da casa do Réu, para onde correu ao avistar a viatura policial. Narraram que ela foi presa no último cômodo da casa com 60 pedras de crack nos bolsos da calça, que ela teria apresentado espontaneamente aos dois, além de confessar a traficância praticada, em associação, entre ela e o Réu. Posteriormente, no entanto, divergiram quanto à dinâmica envolvida na ida até a casa da Ré, não sabendo explicar, com precisão, se a Ré e o Réu foram juntos na viatura até lá e, então, seguiram para a delegacia, se passaram antes na delegacia para deixar o Réu e, então, rumaram para a casa da Ré, nem mesmo quem teria ficado com o Réu Aguinaldo em sua casa, assumindo-se a versão de que a Ré teria sido levada sozinha à sua residência, se apenas esses dois policiais participaram da diligência.

São divergências importantes quando se tem em conta as versões defensivas apresentadas pelos Réus quando ouvidos perante a autoridade policial e em Juízo.

A Ré M., desde a fase policial, manteve a mesma versão para os fatos ocorridos.

Disse que estava no local dos fatos, onde trabalha como esteticista, quando foi abordada por policiais que lhe mencionaram haver denúncias de tráfico contra ela. Disse que a colocaram numa viatura e pediram dinheiro para fazer um acerto, sendo que após a resposta negativa e depois de nada encontrarem em sua residência, apresentaram-lhe uma bolsa cor de rosa em cujo interior havia as substâncias entorpecentes e o revólver Taurus.

Nesse sentido, a inverossímil versão narrada pelos policiais militares foi expressamente contrariada pela Ré, da mesma forma, desde o início de sua atuação no feito.

E aqui, dois fatores chamam atenção na versão da Ré.

A tal bolsa cor de rosa, encontrada na casa da Ré cheia de drogas e com uma arma, em cima de um sofá onde moram quatro crianças (segundo a versão policial), e apresentada pelos policiais ainda na viatura após a negativa do acerto (segundo a versão da Ré), não foi apreendida e exibida nos autos, ao contrário dos demais objetos que foram registrados no respectivo auto de exibição e apreensão.

O mais curioso, no entanto, diz respeito à arma atribuída à Ré.

A arma, que segundo a Ré estava dentro da bolsa que lhe foi apresentada pelos policiais militares dentro da viatura policia, está registrada justamente em nome da Delegacia de Polícia. E a justificativa para tanto, conforme documentos juntados posteriormente aos autos (fls. 183/192), foi que a arma estava no interior do carro de um terceiro policial que foi roubado no dia 07.11.2012 e que, no entanto, ele esqueceu de mencionar que ela também havia sido levada pelos roubadores. Novamente, pouco crível que um policial tenha seu carro roubado e lavre um boletim de ocorrência registrando o ocorrido e mencionando que dentro do veículo estavam o documento do carro, um celular e uma blusa de lã cinza, esquecendo-se justamente de uma arma, seu instrumento de trabalho, sobre o qual possui responsabilidade administrativa, e cuja perda implica consequências gravíssimas.

Aliados a tais fatos, anoto que a Ré comprovou ter residência fixa e ocupação lícita, além de ser primária, merecendo, em face de todo o acima exposto, ter a sua versão considerada ainda que seja para gerar a dúvida quanto à possibilidade de uma condenação.

Quanto ao Réu, anoto que em solo policial optou por permanecer em silencio. Em Juízo, e nesse ponto sua versão corrobora a versão policial, o Réu disse que apresentou espontaneamente as substâncias entorpecentes aos policiais militares e alegou que assim o fez justamente porque pensava que não seria preso, já que elas estavam destinadas ao seu consumo pessoal.

A versão do Réu, que também é primário, possui residência fixa e ocupação lícita, ainda em face dos argumentos acima expostos e de sua confissão corroborada pela versão policial, merece credibilidade. Especialmente quando suas testemunhas mencionam que ele é usuário de entorpecentes e que o laudo pericial produzido com tal objetivo aponta para a mesma direção, registrando o vício nas drogas encontradas em sua casa e constatando até uma semi-imputabilidade em razão dele.

Com esses fundamentos, faz-se medida de rigor a absolvição da Ré M. por todos os delitos que lhe foram imputados e, quanto ao Réu A., a desclassificação das condutas que lhe foram imputadas para aquela prevista no artigo 28 da Lei n. 11.343/06.

À vista da primariedade do Réu A. e de suas outras circunstâncias pessoais, e autorizado pelo artigo 383, § 1º do Código de Processo Penal, vislumbro a possibilidade de oferecimento do benefício previsto no artigo 89 da Lei n. 9.099/95.

Ante o exposto, JULGO IMPROCEDENTE a denúncia formulada pelo MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO para:

 (i) ABSOLVER M. A. C. A., vulgo M., nos termos o artigo 386, VII, do Código de Processo Penal, de todas as acusações que lhe foram dirigidas nestes autos;

(iv) DESCLASSIFICAR a imputação feita em face de A. R. S., vulgo M., quanto à conduta descrita no artigo 33 da Lei n. 11.343/06, para aquela prevista no artigo 28 da Lei n. 11.343/06, e para ABSOLVÊ-LO das demais.

Autorizo a incineração da droga apreendida, caso esta providência ainda não tenha sido adotada.

Determino a restituição do veículo e dos valores apreendidos com os Réus.

Quanto ao Réu A., com o trânsito em julgado, abra-se vista ao Ministério Público para que se manifeste, nos termos do artigo 89 da Lei n. 9.099/95, quanto ao benefício que, em tese, lhe poderá ser oferecido.

Determino a cessação de quaisquer medidas cautelares que ainda estejam em vigor em desfavor dos Réus.

 P.R.I.C.
   

Vale a pena conferir, no mesmo sentido, a decisão do Juiz de Direito fluminense Marcos Peixoto aqui e do Defensor Público Eduardo Newton aqui


10271648_649099768473250_698157104410651630_n2Bruno Luiz Cassiolato é Juiz de Direito da vara Criminal de Caraguatatuba.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                        
Imagem Ilustrativa do Post: Complete Fantasy // Foto de: Ryan Hyde // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/breatheindigital/4625780708/in/photostream/ Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura