Por Redação - 03/12/2016
O procurador de justiça Rômulo de Andrade Moreira emitiu parecer sobre o uso de documento falso (atestado médico), no qual pugnou pela absolvição da acusada.
Confira o parecer:
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DA BAHIA
PROCURADORIA DE JUSTIÇA CRIMINAL
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PROCESSO Nº. 0382985-81.2013.8.05.0001 – APELAÇÃO CRIMINAL
ORIGEM: SALVADOR – BA
ÓRGÃO JULGADOR: SEGUNDA CÂMARA CRIMINAL – SEGUNDA TURMA
APELADO: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DA BAHIA
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PARECER Nº. 10.306/2016
Trata-se de uma apelação criminal interposta por ..., irresignada com a sentença condenatória proferida nos autos da ação penal nº. 0382985-81.2013.8.05.0001, que tramitou perante o Juízo de Direito da 2ª. Vara Criminal de Salvador, cujo teor o condenou a uma pena de dois anos de reclusão, pela prática da conduta tipificada no art. 304, do Código Penal, em regime inicial aberto.
Recebida a denúncia em 22 de setembro de 2013 (fls. 75) e apresentada resposta à acusação (fls. 86), procedeu-se a audiência de instrução e julgamento, na qual ocorreu a oitiva das testemunhas (fls. 102/105), bem como, em seguida, o interrogatório (fls. 100/101).
Ultimada a instrução criminal e oferecidas as alegações finais, do Ministério Público às fls. 99 e da apelante às fls. 108/112, sobreveio sentença (fls. 132/136), que julgou procedente o pedido formulado na denúncia.
Inconformada, a apelante interpôs o presente recurso (fls. 142), pleiteando, em epítome, nas razões recursais de fls. 150/155, a sua absolvição.
Por sua vez, em sede de contrarrazões (fls. 160/163), o Ministério Público entendeu que a sentença não deve ser reformada, pugnando seja negado provimento ao recurso de apelação interposto, ratificando in totum a decisão condenatória do Juízo a quo.
Às fls. 167/168, o Relator entendeu intempestiva a apelação da defesa e, com fulcro no art. 593 do Código de Processo Penal, decidiu não conhecer do recurso.
Às fls. 169/174, a Defensoria Pública interpôs agravo regimental.
Às fls. 180/181, consta parecer Ministerial pugnando pelo provimento do agravo regimental.
Às fls. 182/187, o Relator reconsiderou a decisão de fls. 167/168, considerando tempestiva a apelação, e admitiu o recurso, nos termos do art. 1.021 do Novo Código de Processo Civil (Lei nº. 13.105/2015).
Eis um sucinto relatório.
Os autos foram encaminhados ao Ministério Público para o parecer.
Compulsando os autos, nota-se que a acusada foi condenada a uma pena de dois anos de reclusão, pela prática da conduta tipificada no art. 304, do Código Penal, em regime inicial aberto (fls. 132/136).
Como se sabe, o tipo penal descrito no art. 304 do Código Penal é um delito formal, comissivo e instantâneo de efeitos permanentes, sendo inadmissível a tentativa. A conduta incriminada é fazer uso, que significa empregar, utilizar, qualquer um dos papéis falsificados ou alterados, referidos nos arts. 297 a 302 do Código Penal. Faz-se uso de um documento falso apresentando-o como genuíno (se materialmente falso) ou como verídico (se ideologicamente falso), para uma finalidade qualquer, desde que juridicamente relevante, frise-se. De todo modo, fazer uso é sempre conduta comissiva, supondo sempre uma ação, nunca uma omissão e a sua consumação dá-se com o primeiro ato de utilização do documento falso.
No caso dos autos, a acusada supostamente apresentou um atestado médico falso no seu local de trabalho, para permanecer afastada por quatro dias de suas funções regulares. Em razão disso, a acusada foi demitida do seu emprego, conforme asseverou em seu interrogatório, a saber: “que por conta disso perdeu o emprego.” (fls. 100). Logo, a acusada já foi responsabilizada na esfera trabalhista.
Nada obstante o princípio da independência das esferas administrativa, civil e penal (que não é absoluto), não se observa nos autos uma consequência lesiva juridicamente relevante a ponto de exigir a intervenção do Direito Penal, porquanto a atuação de outro ramo do direito (trabalhista) já foi suficiente para a reprovação do fato.
Frise-se que o Direito Penal deve ser a ultima ratio, ou seja, a sua intervenção só será aceitável em casos de ataques relevantes a bens jurídicos tutelados pelo Estado.
Paulo Queiroz, por exemplo, explica o inexpressivo sentido jurídico penal de determinadas condutas, conquanto típicas abstratamente:
“É que não tem o legislador, em face das limitações naturais da técnica legislativa e da multiplicidade de situações que podem ocorrer, o poder de previsão, casuística, das hipóteses efetivamente merecedoras de repressão. Noutros termos, falta-lhe o poder de prever em que grau e em que intensidade devem tais ações merecer, in concreto, castigo. Não lhe é possível, enfim, ao prever tipos abstratos, ainda que se atendo àquelas lesões mais significativas, fixar, segundo o caso concreto, em que intensidade a lesão deve assumir relevância penal efetiva. Com bem assinala Maurach, nenhuma técnica legislativa é tão acabada a ponto de excluir a possibilidade de que, em alguns casos particulares, possam ficar fora da ameaça penal certas condutas que não apareçam como merecedoras de pena. Vale dizer, a redação do tipo legal pretende certamente só incluir prejuízos graves à ordem jurídica e social , porém não impede que entrem também em seu âmbito os casos mais leves, de ínfima significação social. Enfim, o que in abstrato é penalmente relevante pode não o ser verdadeiramente, isto é, podem não assumir, in concreto, suficiente dignidade e significado jurídico-penal.”[1] (Grifos nossos).
Por sua vez, Cezar Roberto Bitencourt esclarece, in verbis:
“O princípio da intervenção mínima, também conhecido como ultima ratio, orienta e limita o poder incriminador do Estado, preconizando que a criminalização de uma conduta só se legitima se constituir meio necessário para a prevenção de ataques contra bens jurídicos importantes. Ademais, se outras formas de sanção ou outros meios de controle social revelarem-se suficientes para a tutela desse bem, a sua criminalização é inadequada e não recomendável. Assim, se para o restabelecimento da ordem jurídica violada forem suficientes medidas civis ou administrativas, são estas as que devem ser empregadas, e não as penais. Por isso, o Direito Penal deve ser a ultima ratio do sistema normativo, isto é, deve atuar somente quando os demais ramos do Direito revelarem-se incapazes de dar a tutela devida a bens relevantes na vida do indivíduo e da própria sociedade. (...) Antes, portanto, de se recorrer ao Direito Penal deve-se esgotar todos os meios extrapenais de controle social, e somente quando tais meios se mostrarem inadequados à tutela de determinado bem jurídico, em virtude da gravidade da agressão e da importância daquele para a convivência social, justificar-se-á a utilização daquele meio repressivo de controle social .”[2] (Grifos nossos).
Uma das vertentes do princípio da intervenção mínima é a subsidiariedade que “condiciona a intervenção do Direito Penal à comprovação da incapacidade dos demais mecanismos de controle social em resolver adequadamente o problema.” [3]
Sobre o tema, Paulo César Busato leciona:
“Silva Sánchez refere que ‘deve-se prescindir da cominação e sanção penal sempre que, no caso em questão, caiba esperar efeitos preventivos similares (ou superiores) da intervenção de outros meios menos lesivos, como, por exemplo, medidas estatais de política social, sanções próprias do Direito Civil, do Direito Administrativo, ou inclusive meios não jurídicos de controle social’. O oportuno comentário de Silva Sánchez deixa claro que pleitear a não intervenção penal em determinados casos não significa pugnar pela ausência completa da intervenção do Direito ou a desnecessidade de intervenção estatal, ou ainda, a irrelevância completa do fato em si, como frequentemente se pensa. O Direito penal não é uma solução para todos os males, não é a única forma de controle social jurídico, nem tampouco é a única forma de intervenção à disposição do Estado. A intervenção penal deve ficar reservada para as hipóteses em que falharam outros mecanismos de defesa social. Ao Direito penal não podemos atribuir, de maneira exclusiva ou principal, a tarefa de redução da criminalidade, que pode ser mais amplamente atendida ou diminuída por outros meios de controle social. Por outro lado, quando se produzam ataques aos bens jurídicos, estes têm que ser intoleráveis. Se não reúnem essa característica, sua atenção pode ficar reservada para outros campos do direito. (...) Isso não implica negar ao patrimônio a condição de bem jurídico essencial do indivíduo, apenas reconhece a hipótese como um ‘ataque menos grave’ a esse bem.” [4] (Grifos nossos).
A propósito, vejamos alguns julgados do Superior Tribunal de Justiça:
“O Direito Penal deve ser encarado de acordo com a principiologia constitucional. Dentre os princípios constitucionais implícitos figura o da subsidiariedade, por meio do qual a intervenção penal somente é admissível quando os demais ramos do direito não conseguem bem equacionar os conflitos sociais. In casu, pago o débito de água antes do oferecimento da denúncia, resolvido está o ilícito civil, não se justificando a persecução penal. Recurso provido para, reformando o acórdão recorrido, trancar a ação penal.” (RHC 72.825/SP, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 30/06/2016, DJe 08/08/2016) (Grifo nosso).
“A missão do Direito Penal moderno consiste em tutelar os bens jurídicos mais relevantes. Em decorrência disso, a intervenção penal deve ter o caráter fragmentário, protegendo apenas os bens jurídicos mais importantes e em casos de lesões de maior gravidade. O princípio da insignificância, como derivação necessária do princípio da intervenção mínima do Direito Penal, busca afastar de sua seara as condutas que, embora típicas, não produzam efetiva lesão ao bem jurídico protegido pela norma penal incriminadora.” (HC 50.863/PE, Rel. Ministro HÉLIO QUAGLIA BARBOSA, SEXTA TURMA, julgado em 04/04/2006, DJ 26/06/2006, p. 216) (Grifo nosso).
“O Direito Penal deve ser encarado de acordo com a principiologia constitucional. Dentre os princípios constitucionais implícitos figura o da subsidiariedade, por meio do qual a intervenção penal somente é admissível quando os demais ramos do direito não conseguem bem equacionar os conflitos sociais. In casu, tendo-se apurado, em verdade, apenas um ilícito de colorido meramente contratual, relativamente à distribuição da água, com o equacionamento da quaestio no plano civil, não se justifica a persecução penal. Ordem concedida para trancar a ação penal n. 0268968-47.2010.8.19.0001, da 36.ª Vara Criminal da Comarca da Capital do Rio de Janeiro.” (HC 197.601/RJ, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 28/06/2011, DJe 03/08/2011) (Grifos nossos).
O Supremo Tribunal Federal também já decidiu:
“O sistema jurídico há de considerar a relevantíssima circunstância de que a privação da liberdade e a restrição de direitos do indivíduo somente se justificam quando estritamente necessárias à própria proteção das pessoas, da sociedade e de outros bens jurídicos que lhes sejam essenciais, notadamente naqueles casos em que os valores penalmente tutelados se exponham a dano, efetivo ou potencial, impregnado de significativa lesividade. O direito penal não se deve ocupar de condutas que produzam resultado, cujo desvalor - por não importar em lesão significativa a bens jurídicos relevantes - não represente, por isso mesmo, prejuízo importante, seja ao titular do bem jurídico tutelado, seja à integridade da própria ordem social.” (HC 92463, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 16/10/2007, DJe-134 DIVULG 30-10-2007 PUBLIC 31-10-2007 DJ 31-10-2007 PP-00104 EMENT VOL-02296-02 PP-00281) (Grifo nosso).
Vale registrar ainda o teor do art. 8º., da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, a saber: “A lei apenas deve estabelecer penas estrita e evidentemente necessárias (...).” (Grifo nosso).
Assim, no caso dos autos, o Direito Penal não é o meio necessário e imprescindível para a reprovação do fato e a proteção do bem jurídico tutelado, pois não se observa o fracasso de outros meios de controle social, haja vista que a acusada já foi demitida do seu emprego, sendo, portanto, suficiente essa sanção e proporcional ao fato concreto.
Conforme a doutrina de Paulo Queiroz, a quem recorremos mais uma vez, “o caráter subsidiário do direito penal decorre, portanto, de um imperativo político-criminal proibitivo do excesso: não se justifica o emprego de um instrumento especialmente lesivo à liberdade se se dispõe de meios menos gravosos e mais adequados de intervenção, sob pena de violação ao princípio da proporcionalidade.” [5] (Grifo nosso).
Com efeito, o postulado normativo da proporcionalidade é aplicado nas hipóteses em que haja uma relação de causalidade entre um fim e determinado meio escolhido para atingi-lo. A exigência da realização desses fins implica a adoção de medidas adequadas, necessárias e proporcionais em sentido estrito, o que não nos parece ter ocorrido no caso dos autos.
O postulado da proporcionalidade, cujo aprimoramento e autonomia como norma jurídica dissociada das regras e princípios deveu-se, sobretudo, aos esforços da dogmática alemã e da construção pretoriana elaborada pelo Bundesverfassungsgericht, desdobra-se em três outros “sub-princípios”: O sub-princípio da necessidade (Erforderlichkeit), da pertinência ou aptidão (Geeignetheit) e o da proporcionalidade em sentido estrito (Abwägungsgebot). Juntamente com tais “sub-princípios” encontramos as máximas da proibição de excesso ( Übermassverbot) e da exigibilidade da escolha do meio mais suave (der Grundsatz der Wahl des mildesten Mittels). Na verdade todos esses “sub-princípios” constituem aspectos do postulado da proporcionalidade não se cogitando de fórmulas vazias, retóricas ou meramente políticas possuindo indiscutível significação jurídica como valor normativo e, portanto, vinculatividade, devendo orientar o atuar seja do administrador, legislador ou julgador, mormente em se tratando de aplicação de pena cujas finalidades (privação da liberdade, restrição de direitos ou constrição econômica) devem estar de acordo com os meios eleitos para tanto.
Desta forma, somente as condutas mais graves e mais perigosas praticadas contra bens jurídicos efetivamente relevantes carecem dos rigores do Direito Penal. Seu aparecimento “recomenda a aplicação do Direito Penal apenas nos casos de ofensa grave aos bens jurídicos mais importantes (principio bagatelar próprio).”[6] Já o seu fundamento “está, também, na ideia de proporcionalidade que a pena deve guardar em relação à gravidade do crime. Nos casos de ínfima afetação ao bem jurídico o conteúdo do injusto é tão pequeno que não subsiste nenhuma razão para o pathos ético da pena, de sorte que a mínima pena aplicada seria desproporcional à significação social do fato.”[7] (Grifo nosso).
Como ensina Cezar Roberto Bitencourt, “a tipicidade penal exige uma ofensa de alguma gravidade aos bens jurídicos protegidos, pois nem sempre qualquer ofensa a esses bens ou interesses é suficiente para configurar o injusto típico.”[8]
Por sua vez, Luiz Flávio ensina que “pequenas ofensas ao bem jurídico não justificam a incidência do direito penal, que se mostra desproporcionado quando castiga fatos de mínima importância (furto de uma folha de papel, de uma cebola, de duas melancias etc.). Dogmaticamente falando, já não se discute que o princípio da insignificância (ou da bagatela, como lhe denominam os italianos, assim como Tiedemann) exclui a tipicidade, mais precisamente a tipicidade material.” Para ele, hoje, “já praticamente ninguém nega a relevância do princípio da insignificância (ou da bagatela) no direito penal. Não há dúvida que é um princípio de política criminal, mas adotado e aplicado diariamente pelos juízes e tribunais.”[9] (Grifo nosso).
Está-se aí diante do velho adágio latino minima non curat praetor, que fundamenta o princípio da bagatela, cunhado por Claus Roxin, na década de 60. Francisco de Assis Toledo ensina que Welzel considerava que “o princípio da adequação social bastaria para excluir certas lesões insignificantes. É discutível que assim seja. Por isso, Claus Roxin propôs a introdução, no sistema penal, de outro princípio geral para a determinação do injusto, o qual atuaria igualmente como regra auxiliar de interpretação. Trata-se do denominado princípio da insignificância, que permite, na maioria dos tipos, excluir os danos de pouca importância. Não vemos incompatibilidade na aceitação de ambos os princípios que, evidentemente, se completam e se ajustam à concepção material do tipo que estamos defendendo. Segundo o princípio da insignificância, que se revela por inteiro pela sua própria denominação, o direito penal, por sua natureza fragmentária só vai até onde seja necessário para a proteção do bem jurídico. Não deve ocupar-se de bagatelas."[10]
Segundo Carlos Vico Manãs, “o princípio da insignificância surge como instrumento de interpretação restritiva do tipo penal que, de acordo com a dogmática moderna, não deve ser considerado apenas em seu aspecto formal, de subsunção da fato à norma, mas, primordialmente, em seu conteúdo material, de cunho valorativo, no sentido da sua efetiva lesividade ao bem jurídico tutelado pela norma penal, o que consagra o postulado da fragmentariedade do direito penal.” Para ele, tal princípio funda-se “na concepção material do tipo penal, por intermédio do qual é possível alcançar, pela via judicial e sem macular a segurança jurídica do pensamento sistemático, a proposição político-criminal da necessidade de descriminalização de condutas que, embora formalmente típicas, não atingem de forma socialmente relevante os bens jurídicos protegidos pelo Direito Penal.”[11]
Para Maurício Antônio Ribeiro Lopes:
"O juízo de tipicidade, para que tenha efetiva significância e não atinja fatos que devam ser estranhos ao Direito Penal, por sua aceitação pela sociedade ou dano social irrelevante, deve entender o tipo, na sua concepção material, como algo dotado de conteúdo valorativo, e não apenas sob seu aspecto formal, de cunho eminentemente diretivo. Para dar validade sistemática à irrefutável conclusão político-criminal de que o Direito penal só deve ir até onde seja necessário para a proteção do bem jurídico, não se ocupando de bagatelas, é preciso considerar materialmente atípicas as condutas lesivas de inequívoca insignificância para a vida em sociedade. É notável a síntese apresentada por Sanguiné sobre o conteúdo da tipicidade material ao dispor que a tipicidade não se esgota na concordância lógico-formal (subsunção) do fato no tipo. A ação descrita tipicamente há de ser geralmente ofensiva ou perigosa a um bem jurídico. O legislador toma em consideração modelos de vida que deseja castigar. Com essa finalidade, tenta compreender, conceitualmente, de maneira mais precisa, a situação vital típica. Embora visando alcançar um círculo limitado de situações, a tipificação falha ante a impossibilidade de regulação do caso concreto em face da infinita gama de possibilidades do acontecer humano. Por isso, a tipificação ocorre conceitualmente de forma absoluta para não restringir demasiadamente o âmbito da proibição, razão porque alcança também casos anormais. A imperfeição do trabalho legislativo não evita que sejam subsumíveis também nos casos que, em realidade, deveriam permanecer fora do âmbito de proibição estabelecido pelo tipo penal. A redação do tipo penal pretende, por certo, somente incluir prejuízos graves da ordem jurídica e social, porém não pode impedir que entrem em seu âmbito os casos leves. Para corrigir essa discrepância entre o abstrato e o concreto e para dirimir a divergência entre o conceito formal e o conceito material de delito, parece importante utilizar-se o princípio da insignificância".[12]
Ademais, é sabido desde há muito que a norma penal “existe para a tutela de alguns bens ou interesses (de especial relevância) consubstanciados em relações sociais valoradas positivamente pelo legislador para constituir o objeto de uma especial e qualificada proteção, como é a penal.”[13] Logo, alguém só “pode ser responsabilizado pelo fato cometido quando tenha causado uma concreta ofensa, ou seja, uma lesão ou ao menos um efetivo perigo de lesão para o bem jurídico que constitui o centro de interesse da norma penal.”[14] É a aplicação do princípio da ofensividade[15], segundo o qual nulla poena, nullum crimen, nulla lex poenalis sine iniuria.
É de Luigi Ferrajoli a seguinte lição: “La necesaria lesividad del resultado, cualquiera que sea la concepción que de ella tengamos, condiciona toda justificación utilitarista del derecho penal como instrumento de tutela y constituye su principal límite axiológico externo. Palabras como ‘lesión’, ‘daño’ y ‘bien jurídico’ son claramente valorativas.”[16]
Ante o exposto, pugnamos pela absolvição da acusada, tendo em vista que “a apelação, como todo recurso, devolve ao Tribunal o conhecimento da matéria impugnada e da que pode ser conhecida de ofício”, “podendo o Tribunal examinar, nos limites da impugnação, aspectos não suscitados pelas partes, ou tópicos não apreciados pelo Juiz inferior”. Portanto, “além da matéria contida na impugnação das partes, a devolução engloba ainda outras que podem ser conhecidas de ofício.” [17]
Por fim, prequestionamos, para efeito de recurso especial, o art. 304 do Código Penal, o art. 386, III e VII, do Código de Processo Penal.
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Salvador, 30 de novembro de 2016.
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RÔMULO DE ANDRADE MOREIRA
Procurador de Justiça
[1] Paulo de Souza Queiroz - Do caráter subsidiário do direito penal – Lineamentos para um direito penal mínimo, Editora Del Rey, Belo Horizonte – 1998, p.122
[2] Tratado de Direito Penal – Parte Geral, 22ª. Edição, São Paulo: Editora Saraiva, 2016, p. 54.
[3] Direito Penal – Parte Geral, São Paulo: Editora ATLAS, 2013, p. 60.
[4] Ibidem, pp. 60 e 61.
[5] In Curso de Direito Penal. 10ª. edição, Editora Juspodivm, Salvador, 2014, p. 67.
[6] Thales Tácito Pontes Luz de Pádua Cerqueira, O princípio da insignificância ou bagatela - conceito, classificação hodierna e limites, Revista Jurídica Consulex – Ano VIII – N. 186 – 15 de outubro/2004, p. 62.
[7] José Henrique Guaracy Rebelo, Princípio da Insignificância, Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 38.
[8] Manual de Direito Penal - Parte Geral - Ed. Revistas dos Tribunais - 4a ed., p. 45.
[9] Site: ultimainstancia.com.br – terça-feira, 9 de novembro de 2004.
[10] Princípios Básicos de Direito Penal - Ed. Saraiva - 4a ed. - 1991 - p. 132.
[11] O Princípio da Insignificância como Excludente da Tipicidade no Direito Penal, 1ª. ed., São Paulo: Saraiva, pp. 56 e 81.
[12] Princípio da Insignificância no Direito Penal, 2ª. ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, págs.. 117⁄118.
[13] Luiz Flávio Gomes, Norma e Bem Jurídico no Direito Penal, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 18.
[14] Idem, p. 15.
[15] Sobre o assunto, conferir a recente obra de Luiz Flávio Gomes, “Princípio da Ofensividade no Direito Penal”, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.
[16] Derecho y Razón, Madrid: Editorial Trotta, 1995, p. 467.
[17] Recursos no Processo Penal. Ada Pellegrini Grinover, Antonio Magalhães Gomes Filho e Antonio Scarance Fernandes 7ª. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais: 2011, pp. 123/124.
. Rômulo de Andrade Moreira é Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor de Direito Processual Penal da UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela UNIFACS.
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