Por Redação - 13/04/2016
O Procurador do Ministério Público do Estado da Bahia, Rômulo de Andrade Moreira emitiu, no dia 07 de abril, parecer sobre o Regime Disciplinar Diferenciado no sentido de sua inconstitucionalidade.
Configura a manifestação do procurador em favor da desinternação do apenado.
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DA BAHIA
PROCURADORIA DE JUSTIÇA CRIMINAL
PROCESSO Nº. 0003899-35.2016.8.05.0000 – HABEAS CORPUS
ORIGEM: VALENÇA – BA
ÓRGÃO JULGADOR: PRIMEIRA CÂMARA CRIMINAL – SEGUNDA TURMA
PACIENTE: U. S. S. S.
IMPETRADO: JUIZ DE DIREITO DE VALENÇA – 1ªVARA CRIMINAL
RELATOR: DESEMBARGADOR NILSON SOARES CASTELO BRANCO
PARECER Nº. 2735/2016
Tratam os presentes autos de um pedido de habeas corpus visando a desinternação do paciente, acima epigrafado, do regime disciplinar diferenciado. Alega que a decisão que determinou a sua permanência no Conjunto Penal de Serrinha, penitenciária destinada ao cumprimento de regime disciplinar diferenciado, não foi fundamentada, bem como aduz a ausência de instauração de procedimento disciplinar ou inquérito policial para apurar a veracidade dos fatos a ele imputados.
Negada a concessão da liminar requerida (fls. 12/13), a Magistrada prestou as informações de praxe (fls. 16).
Eis um sucinto relatório.
Os autos foram encaminhados ao Ministério Público para o parecer.
Preliminarmente, pugnamos pela inconstitucionalidade do regime disciplinar diferenciado.
Como se sabe, no ano de 2003 foi promulgada uma lei que alterou o Código de Processo Penal e, de quebra, modificando também a Lei de Execução Penal, instituiu entre nós o chamado Regime Disciplinar Diferenciado – RDD. Como outras tantas leis no Brasil, esta também foi ditada no afã de satisfazer a opinião pública e como uma resposta à violência urbana (ao menos no que concerne à alteração produzida na Lei de Execução Penal)[1].
Mais uma vez, utiliza-se de um meio absolutamente ineficaz para combater a criminalidade, cujas raízes, sabemos todos, está na desigualdade social que ainda reina no Brasil (apesar da esperança que ainda também nos resta).
Nos últimos anos temos visto várias leis criminais serem apresentadas como um bálsamo para a questão da violência urbana e da segurança pública, muitas delas com vícios formais graves e, principalmente, outros de natureza substancial, inclusive com mácula escancarada à Constituição Federal[2]. Como afirma Paulo César Busato, “é necessário centrar a atenção no fato de que legislações de matizes como os da Lei 10.792/03 correspondem por um lado a uma Política Criminal expansionista, simbólica e equivocada e, por outro, a um esquema dogmático pouco preocupado com a preservação dos direitos e garantias fundamentais do homem. Por isso, há a necessidade de cuidar-se com relação aos perigos que vêm tanto de um quanto de outro.”[3]
Efetivamente, há entre nós um mau vezo em se interpretar a Constituição à luz da legislação infraconstitucional (!!!), ao invés do contrário, ou seja, procurar-se uma interpretação das leis ordinárias à luz da Constituição Federal. O resultado, por óbvio, é desastroso, apesar de agradar a alguns (ora por ignorância, ora por conveniência). Relembremos que “não se pode interpretar a Constituição conforme a lei ordinária (gesetzeskonformen Verfassunsinterpretation). O contrário é que se faz.”[4]
Pois bem: a Lei nº. 10.792/2003 que, a par de trazer interessantes modificações na disciplina do interrogatório (como a exigência de defensor para o interrogando e a possibilidade de participação efetiva das partes), alterou a Lei de Execução Penal. Pela norma, estabelece-se que a “prática de fato previsto como crime doloso constitui falta grave e, quando ocasione subversão da ordem ou disciplina internas, sujeita o preso provisório, ou condenado, sem prejuízo da sanção penal, ao regime disciplinar diferenciado, com as seguintes características: duração máxima de trezentos e sessenta dias, sem prejuízo de repetição da sanção por nova falta grave de mesma espécie, até o limite de um sexto da pena aplicada; recolhimento em cela individual; visitas semanais de duas pessoas, sem contar as crianças, com duração de duas horas e direito à saída da cela por 2 horas diárias para banho de sol.”
Também por força da referida lei, o RDD “poderá abrigar presos provisórios (leia-se: aqueles ainda sem uma condenação definitiva e, portanto, presumivelmente não culpados, segundo a nossa Carta Magna) ou condenados, nacionais ou estrangeiros, que apresentem alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade”, bem como “o preso provisório (idem) ou o condenado sob o qual recaiam fundadas suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer título, em organizações criminosas, quadrilha ou bando.” O que seriam mesmo fundadas suspeitas? Afinal, a presunção constitucional não é a de não-culpabilidade?
A inclusão no RDD será determinada por “prévio e fundamentado despacho do juiz competente”, a partir de “requerimento circunstanciado elaborado pelo diretor do estabelecimento ou outra autoridade administrativa”, sendo imprescindível a “manifestação do Ministério Público e da defesa”, devendo ser “prolatada no prazo máximo de quinze dias.”
Cotejando-se, portanto, o texto legal e a Constituição Federal, concluímos com absoluta tranquilidade ser tais dispositivos flagrantemente inconstitucionais, pois no Brasil não poderão ser instituídas penas cruéis (art. 5º., XLVII, “e”, CF/88), assegurando-se aos presos (sem qualquer distinção, frise-se) o respeito à integridade física e moral (art. 5º., XLIX) e garantindo-se, ainda, que ninguém será submetido a tratamento desumano ou degradante (art. 5º., III).
Ademais, não se observou o princípio constitucional da proporcionalidade, pois “um meio é proporcional quando o valor da promoção do fim não for proporcional ao desvalor da restrição dos direitos fundamentais. Para analisá-lo é preciso comparar o grau de intensidade da promoção do fim com o grau de intensidade da restrição dos direitos fundamentais. O meio será desproporcional se a importância do fim não justificar a intensidade da restrição dos direitos fundamentais.”[5]
Será que manter um homem solitariamente em uma cela durante 360 ou 720 dias, ou mesmo por até um sexto da pena (não esqueçamos que temos crimes com pena máxima de até 30 anos), coaduna-se com aqueles dispositivos constitucionais? Ora, se o nosso atual sistema carcerário, absolutamente degradante tal como hoje está concebido, já não permite a ressocialização do condenado, imagine-se o submetendo a estas condições. É a consagração, por lei, do regime da total e inexorável desesperança. Como afirma José Antonio Paganella Boschi, “a potestade punitiva encontra limites na aspiração ética do Direito (...), inclusive quanto ao processo destinado à imposição, quantificação e posterior execução das penas, matéria do CPP e da LEP.”[6]
Ora, “quando o direito interno inclui a dignidade entre os fundamentos que alicerçam o Estado Democrático de Direito, estabelece a dignidade da pessoa como ´fonte ética` para os direitos, as liberdades e as garantias pessoais e os direitos econômicos, sociais e culturais.” (Célia Rosenthal Zisman, Estudos de Direito Constitucional – O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, São Paulo: Thomson IOB, 2005, p. 23). O Princípio da Dignidade obriga “que apenas excepcionalmente possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.” (Alexandre de Moraes, Constituição do Brasil Interpretada, São Paulo: Atlas, 2002, p. 129). Para José Afonso da Silva, “a dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida.” (Curso de Direito Constitucional Positivo, São Paulo: Malheiros, 10ª. ed., 1995, p. 106).
Segundo Étienne Vergès, “le principe de dignité de la personne humaine domine de três nombreux domaines du droit. Il a fait son apparition à l´issue de la seconde guerre mondiale dans les textes internationaux.”[7]
Célia Rosenthal Zisman anota ainda que “a consciência da dignidade do homem, a evolução da humanidade que se verifica com a aceitação da necessidade de respeito do homem como pessoa, leva ao entendimento de que a dignidade depende do respeito aos direitos fundamentais por parte de cada indivíduo da sociedade e também por parte do Estado.” (Grifo nosso).[8] Norberto Bobbio afirmava que os “direitos do homem, a democracia e a paz são três momentos necessários do mesmo movimento histórico: sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem democracia, não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos. Em outras palavras, a democracia é a sociedade dos cidadãos, e os súditos se tornam cidadãos quando lhes são reconhecidos alguns direitos fundamentais.”[9] Por outro lado, continua o filósofo italiano, “(...) os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas.”[10]
Mas, não é só.
Entendemos que o RDD também afronta a Constituição, agora o seu art. 5º., XLVI, que trata da individualização da pena. Não se olvide que a individualização da pena engloba, não somente a aplicação da pena propriamente dita, mas também a sua posterior execução, com a garantia, por exemplo, da progressão de regime. Observa-se que o art. 59 do Código Penal, que estabelece as balizas para a aplicação da pena, prevê expressamente que o Juiz sentenciante deve prescrever “o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade”, o que indica induvidosamente que o regime de cumprimento da pena é parte integrante do conceito “individualização da pena”. Assim, não podemos admitir que, a priori, alguém seja condenado a cumprir a sua pena em regime integralmente fechado, vedando-se absolutamente qualquer possibilidade de progressão, ferindo, inclusive, as apontadas finalidades da pena: a prevenção e a repressão.
Como ensina Luiz Luisi, “o processo de individualização da pena se desenvolve em três momentos complementares: o legislativo, o judicial, e o executório ou administrativo.” (grifo nosso). Explicitando este conceito, o mestre gaúcho ensina: “Tendo presente as nuanças da espécie concreta e uma variedade de fatores que são especificamente previstas pela lei penal, o juiz vai fixar qual das penas é aplicável, se previstas alternativamente, e acertar o seu quantitativo entre o máximo e o mínimo fixado para o tipo realizado, e inclusive determinar o modo de sua execução.”(...) “Aplicada a sanção penal pela individualização judiciária, a mesma vai ser efetivamente concretizada com sua execução.” (...) “Esta fase da individualização da pena tem sido chamada individualização administrativa. Outros preferem chamá-la de individualização executória. Esta denominação parece mais adequada, pois se trata de matéria regida pelo princípio da legalidade e de competência da autoridade judiciária, e que implica inclusive o exercício de funções marcadamente jurisdicionais.”(...) “Relevante, todavia no tratamento penitenciário em que consiste a individualização da sanção penal são os objetivos que com ela se pretendem alcançar. Diferente será este tratamento se ao invés de se enfatizar os aspectos retributivos e aflitivos da pena e sua função intimidatória, se por como finalidade principal da sanção penal o seu aspecto de ressocialização. E, vice-versa.”
E conclui o autor: “De outro lado se revela atuante o subjetivismo criminológico, posto que na individualização judiciária, e na executória, o concreto da pessoa do delinqüente tem importância fundamental na sanção efetivamente aplicada e no seu modo de execução.”[11]
O profesor peruano, Luis Miguel Reyna Alfaro, afirma que “la individualización judicial de la pena a imponer, es uno de los más importantes aspectos que deben ser establecidos por los tribunales al momento de expedir sentencia. Sostienen por ello con absoluta razón ZAFFARONI/ ALAGIA/ SLOKAR que la individualización judicial de la pena debe servir para ´contener la irracionalidad del ejercicio del poder punitivo`. Este proceso de individualización judicial de la pena es ciertamente un proceso distinto y posterior al de determinación legal de la misma que es realizado por el legislador al momento de establecer normativamente la consecuencia jurídica. Esta distinción es importante porque nos permite marcar la diferencia –a la que recurriremos posteriormente- entre ´pena abstracta` y ´pena concreta`. La primera está relacionada a la pena determinada legalmente por el legislador en el proceso de criminalización primaria, mientras la segunda se refiere a la pena ya individualizada por el operador de justicia penal, dentro del proceso de criminalización secundaria. Adicionalmente, ésta distinción ´pena abstracta- pena concreta` sirve para comprender que el proceso de individualización judicial de la pena es un mecanismo secuencial que pasa, en primer lugar, por establecer cuál es la pena establecida por el legislador para, en segundo lugar y sobre esos márgenes, establecer la aplicable al caso concreto y la forma en que la misma será impuesta. (...) Como se indicó anteriormente, el proceso de individualización judicial de la pena debe necesariamente encontrarse vinculado a los fines de la pena, lo que obliga a introducirnos al inacabable debate sobre el fin de la pena.”[12] (grifo nosso).
Assim, não restando dúvidas de que a possibilidade de progressão de regime é parte integrante da individualização da pena, afigura-se-nos também inconstitucional o RDD, desde que constitui elemento impeditivo daquela garantia.
Neste mesmo sentido, Rodríguez Devesa afirma que “pueden distinguirse tres fases en el proceso de determinación de la pena aplicable: individualización legal; individualización judicial e individualización penitenciaria.”[13]
Comentando o assunto, o mestre Tucci afirma que o RDD, “mais do que um retrocesso, apresenta-se como autêntica negação dos fins objetivados na execução penal, constituindo um autêntico bis in idem, uma vez tida a imposição da pena como ajustada à natureza do crime praticado – considerados todos os seus elementos constitutivos e os respectivos motivos, circunstâncias e consequências -, e à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social e à personalidade do agente.”[14]
Esqueceu-se-se novamente que o modelo clássico de Justiça Penal, fundado na crença de que a pena privativa de liberdade seria suficiente para, por si só, resolver a questão da violência, vem cedendo espaço para um novo modelo penal, este baseado na idéia da prisão como extrema ratio e que só se justificaria para casos de efetiva gravidade. Em todo o mundo, passa-se gradativamente de uma política paleorrepressiva ou de hard control, de cunho eminentemente simbólico (consubstanciada em uma série de leis incriminadoras, muitas das quais eivadas com vícios de inconstitucionalidade, aumentando desmesurada e desproporcionalmente a duração das penas, inviabilizando direitos e garantias fundamentais do homem, tipificando desnecessariamente novas condutas, etc.) para uma tendência despenalizadora.
Como afirma Jose Luis de la Cuesta, “o direito penal, por intervir de uma maneira legítima, deve respeitar o princípio de humanidade. Esse princípio exige, evidentemente, que se evitem as penas cruéis, desumanas e degradantes (dentre as quais pode–se contar a pena de morte), mas não se satisfaz somente com isso. Obriga, igualmente, na intervenção penal, a conceber penas que, respeitando a pessoa humana, sempre capaz de se modificar, atendam e promovam a sua ressocialização: oferecendo (jamais impondo) ao condenado meios de reeducação e de reinserção.” (grifo nosso, na tradução de Consuelo Rauen)[15].
Na lição de Canotilho, no Estado Democrático de Direito deve-se atentar para o Princípio da Proibição do Excesso, impondo-se a observância de três requisitos: adequação, necessidade e proporcionalidade. Segundo o jurista português, “a exigência da adequação aponta para a necessidade de a medida restritiva ser apropriada para a prossecução dos fins invocados pela lei (conformidade com os fins). A exigência da necessidade pretende evitar a adopção de medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias que, embora adequadas, não são necessárias para se obterem os fins de protecção visados pela Constituição ou a lei. Uma medida será então exigível ou necessária quando não for possível escolher outro meio igualmente eficaz, mas menos ´coactivo`, relativamente aos direitos restringidos.” Para ele, “proibir o excesso não é só proibir o arbítrio; é impor, positivamente, a exigibilidade, adequação e proporcionaliade dos actos dos poderes públicos em relação aos fins que eles prosseguem.”(Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra: Almedina, 6ª. ed., 2002, pp. 455 e 1.151). esso, segundo o qual "vado o Princonstitucional - O s direitos econt.sil, que tambem crit
Hoje, ainda que o nosso sistema penal privilegie induvidosamente o encarceramento (acreditando, ainda, na função dissuasória da prisão), o certo é que a tendência mundial é no sentido de alternativizar este modelo clássico, pois a pena de prisão em todo o mundo passa por uma crise sem precedentes. A ideia disseminada a partir do século XIX segundo a qual a prisão seria a principal resposta penológica na prevenção e repressão ao crime perdeu fôlego, predominando atualmente “uma atitude pessimista, que já não tem muitas esperanças sobre os resultados que se possa conseguir com a prisão tradicional” (Cezar Roberto Bittencourt).
Urge, pois, que encontremos uma solução intermediária que não privilegie o cárcere (muito menos a desumanidade no cumprimento da pena), nem espalhe a ideia da impunidade. Parece-nos que esta solução se encontra exatamente nas penas alternativas. É induvidoso que o cárcere deve ser concebido como última via, pois não é, nunca foi e jamais será solução possível para a segurança pública de um povo.
A nossa realidade carcerária é preocupante; os nossos presídios e as nossas penitenciárias, abarrotados, recebem a cada dia um sem número de indiciados, processados ou condenados, sem que se tenha a mínima estrutura para recebê-los; e há, ainda, milhares de mandados de prisão a serem cumpridos; ao invés de lugares de ressocialização do homem, tornam-se, ao contrário, fábricas de criminosos, de revoltados, de desiludidos, de desesperados; por outro lado, a volta para a sociedade (através da liberdade), ao invés de solução, muitas das vezes, torna-se mais uma via crucis, pois são homens fisicamente libertos, porém, de uma tal forma estigmatizados que se tornam reféns do seu próprio passado.
Hoje, o homem que cumpre uma pena ou de qualquer outra maneira deixa o cárcere encontra diante de si a triste realidade do desemprego, do descrédito, da desconfiança, do medo e do desprezo, restando-lhe poucas alternativas que não o acolhimento pelos seus antigos companheiros; este homem é, em verdade, um ser destinado ao retorno: retorno à fome, ao crime, ao cárcere (só não volta se morrer).
Diante destas considerações, entendemos que os artigos que tratam do Regime Disciplinar Diferenciado não devem ser aplicados, pois, apesar de normas vigentes formalmente (porque aprovadas pelo Poder Legislativo e promulgadas pelo Poder Executivo), são substancialmente inválidas, tendo em vista a incompatibilidade material com a Constituição Federal.
Canotilho explica que são “princípios jurídicos fundamentais os princípios historicamente objectivados e progressivamente introduzidos na consciência jurídica e que encontram uma recepção expressa ou implícita no texto constitucional. Pertencem à ordem jurídica positiva e constituem um importante fundamento para a interpretação, integração, conhecimento e aplicação do direito positivo.”[16]
Uma coisa é lei vigente; outra é lei válida. Nem toda lei vigente é válida e só a lei válida e que esteja em vigor deve ser observada pelos cidadãos e operadores de Direito.
Aliás, ressaltamos a valiosa lição de Ferrajoli:
“Para que una norma exista o esté en vigor es suficiente que satisfaga las condiciones de validez formal, condiciones que hacen referencia a las formas y los procedimientos de acto normativo, así como a la competência del órgano de que emana. Para que sea válida se necesita por el contrario que satisfaga también las condiciones de validez sustancial, que se refieren a su contenido, o sea, a su significado.” Para o autor, “las condiciones sustanciales de la validez, y de manera especial las de la validez constitucional, consisten normalmente en el respeto de valores – como la igualdad, la libertad, las garantias de los derechos de los ciudadanos.”[17]
Já no século XVIII, Beccaria, autor italiano, em obra clássica, já afirmava que “entre as penalidades e no modo de aplicá-las proporcionalmente aos crimes, é necessário escolher os meios que devem provocar no espírito público a impressão mais eficiente e mais perdurável e, igualmente, menos cruel no organismo do culpado” (Dos Delitos e das Penas, São Paulo: Hemus, 1983, p. 43).
Jean Paul Marat, em 1790, advertia que “es un error creer que se detiene el malo por el rigor de los suplicios, su imagen se desvanece bien pronto. Pero las necesidades que sin cesar atormentan a un desgraciado le persiguen por todas partes. Encuentra ocasión favorable? Pues no escucha más que esa voz importuna y sucumbe a la tentación.” (Plan de Legislación Criminal, Buenos Aires: Hamurabi, 2000, p. 78). A preocupação, vê-se, é antiga.[18]
Por tudo quanto exposto, diríamos nós, o melhor seria cognominar o RDD de “Regime Diferenciado da Desesperança” (como disse o Professor Dotti), lembrando-se da advertência de Nilo Batista, comentando-o: “Quando os condenados começarem a se matar, saberemos muito bem, ´sem sentimentalismos feminis`, de quem é a culpa”.[19]
Esta nossa posição, sem sombra de dúvidas, sofre forte contestação; de toda maneira, valemo-nos da lição de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, segundo a qual “autores sofrem o peso da falta de respeito pela diferença (o novo é a maior ameaça às verdades consolidadas e produz resistência, não raro invencível), mas têm o direito de produzir um Direito Processual Penal rompendo com o saber tradicional, em muitos setores vesgo e defasado (...).”[20]
Superada essa preliminar, compulsando os autos, notadamente as decisões de fls. 07/08 e 09/10, bem como o teor das informações do Juízo a quo, às fls. 16, afere-se que não foi observado integralmente o disposto no art. 54, § 2º., da Lei nº. 7.210/84, porquanto as decisões judiciais sobre a inclusão do paciente em regime disciplinar diferenciado não foram precedidas de manifestação da defesa.
Assim, restou violado o devido processo legal, inexistente sem o contraditório e a ampla defesa, mesmo porque, “para que haya un proceso penal propio de un Estado de Derecho es irrenunciable que el inculpado pueda tomar posición frente a los reproches formulados en su contra, y que se considere en la obtención de la sentencia los puntos de vista sometidos a discusión”.[21]
A exigência do contraditório representa a plena igualdade de oportunidades processuais. A respeito, Willis Santiago Guerra Filho afirma:
“Daí podermos afirmar que não há processo sem respeito efetivo do contraditório, o que nos faz associar o princípio a um princípio informativo, precisamente aquele político, que garante a plenitude do acesso ao Judiciário (cf. Nery Jr., 1995, p. 25). Importante, também, é perceber no princípio do contraditório mais do que um princípio (objetivo) de organização do processo, judicial ou administrativo – e, logo, um princípio de organização de um instrumento de atuação do Estado, ou seja, um princípio de organização do Estado, um direito. Trata-se de um verdadeiro direito fundamental processual, donde se poder falar, com propriedade em direito ao contraditório, ou Anspruch auf rechliches Gehör, como fazem os alemães.” (Grifos no original).[22]
No sentido da imprescindibilidade da manifestação da defesa antes da decisão judicial acerca da inclusão do preso em regime disciplinar diferenciado, vejamos alguns julgados do Superior Tribunal de Justiça:
“Incabível a inclusão de preso em RDD se inocorrente no caso qualquer das hipóteses legais, previstas no artigo 52 da Lei de Execuções Penais. O Regime Disciplinar Diferenciado é sanção disciplinar que depende de decisão fundamentada do juiz das execuções criminais e determinada no curso do processo de execução penal. A decisão judicial sobre a inclusão do preso em regime disciplinar será precedida de manifestação do Ministério Público e da defesa, o que não foi propiciado no presente caso. Desproporcional a imposição do regime disciplinar diferenciado no seu prazo máximo de duração, de um ano, sem uma individualização da sanção adequadamente motivada (Inteligência do artigo 57 da Lei de Execução Penal). Ordem concedida para determinar a transferência do paciente do regime disciplinar diferenciado, retornando para o Conjunto Penal de Feira de Santana, onde se encontrava. Efeitos estendidos aos demais presos na mesma situação”. (HC 89.935/BA, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, julgado em 06/05/2008, DJe 26/05/2008) (Grifos nossos).
“Trata-se, in casu, de paciente envolvido com conhecida facção criminosa atuante no Estado de São Paulo, mentor e líder de planos de fuga e rebeliões internas no estabelecimento prisional onde custodiado, não levadas a cabo em razão de sua transferência para outro presídio. Houve a instauração da devida sindicância - acompanhada por advogado constituído pelo próprio paciente -, que concluiu, ao final, por sua participação nos fatos, inclusive como efetivo líder do grupo insurgente. Encontram-se presentes todos os requisitos legais necessários para imposição do regime disciplinar diferenciado - a saber: requerimento circunstanciado do diretor do estabelecimento, prévia manifestação do Ministério Público e da defesa e o despacho do Juiz competente -, inexistindo, ipso facto, qualquer ilegalidade no constrangimento imposto ao paciente. Parecer do MPF pela denegação da ordem. Ordem denegada”. (Habeas Corpus nº. 117.199/SP, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Quinta Turma, julgado em 15/09/2009, DJe 05/10/2009) (Grifo nosso).
Com efeito, destacamos a lição de Salo de Carvalho acerca do sistema de Execução Penal e o Modelo Jurídico de Garantias:
“Se é verdade que o sistema jurídico, mesmo perfeito, por si só não pode garantir nada, não podemos afirmar que o jurista nada possa fazer para otimizar o modelo de garantias. É do papel crítico do operador utilizar os mecanismos fornecidos pela Constituição, e as lacunas e contradições entre esta e o ordenamento inferior, para legitimar/deslegitimar, manifestando as validades/invalidades e eficácias/ineficácias, das normas e das práticas judiciais e administrativas. (...) ao avaliarmos o conjunto principiológico, parece-nos que o legislador constituinte optou por um modelo de garantias, alertando para que, apesar de condenada pela prática de crime, a pessoa não perde sua dignidade (art. 5º., XLIX). Somente dessa forma podemos interpretar os princípios elaborados pela doutrina pátria em decorrência dos dispositivos constitucionais penais. Os autores nacionais afirmam, e com plena razão, serem estas normas instituidoras dos princípios da humanidade, da proporcionalidade, da pessoalidade e da individualização da pena.”[23] (Grifos nossos).
A propósito, Marcus Vinícius Pimenta Lopes esclarece:
“(...) Garantia, etimologicamente, está ligada à ideia de uma posição de segurança, que vai contra a incerteza e a fragilidade. Anota Bonavides (2007, p. 525) que \'Existe garantia sempre em face de um interesse que demanda proteção e de um perigo que se deve conjurar\'. Por sua vez, ensina Baracho (1984, p. 138) que \'a própria palavra garantia é usada como sinônimo de proteção jurídico-política. O conceito vem do Direito Privado, de onde decorre sua acepção geral e seu conteúdo técnico-jurídico; garantir significa assegurar de modo efetivo\'. Ainda, e com a habitual perfeição conceitual, diz Rui Barbosa (s/d, p. 193-194): “Direito ‘é a faculdade reconhecida, natural ou legal, de praticar ou não praticar certos atos’. Garantia ou segurança de um direito, é o requisito de legalidade, que o defende contra a ameaça de certas classes de atentados de ocorrência mais ou menos fácil”. Assim, garantia é uma ideia de contenção do poder. Visto o sentido de garantia – como contenção – poderemos iniciar uma associação mais clara da forma como garantia. Antes, porém, deve-se entender como a forma limita. Qualquer enunciado é uma limitação do discurso. Quando se diz, por exemplo, que \'o céu é azul\', se diz – ao mesmo tempo e necessariamente – que \'o céu não é vermelho ou verde\'. Ao se delimitar uma asserção se nega tudo o que dela difere. É por essa razão que disse o gênio Karl Popper (2007, p. 72) que as teorias \'(...) não asseveram que algo exista ou ocorra; negam-no. Insistem na não-existência de certas coisas ou estados de coisas, proscrevendo ou proibindo, por assim dizer, essas coisas ou estados de coisas; afastam-nos\'. Aplicando-se tal conceito ao Direito Democrático, temos, por exemplo, que se um sistema deve ser acusatório, logo ele não deve ser inquisitivo; e, se existe determinado procedimento(1) para a formação de um provimento final, logo, qualquer ato que difere dos enunciados normativos previstos para tal procedimento se apresenta como ilegal – pois fora da formulação autorizada pela lei democrática. Dessa maneira, a fórmula limita; pois ao prescrever um comportamento, impede que seja feito qualquer outro. E quanto às eventuais críticas ao formalismo, fazemos nossa a lição de Chiovenda (1969, p. 4):\'Entre leigos abundam censuras às formas judiciais, sob a alegação de que as formas ensejam longas e inúteis querelas, e frequentemente a inobservância de uma forma pode acarretar a perda do direito; e ambicionam-se sistemas processuais simples e destituídos de formalidades. A experiência, todavia, tem demonstrado que as formas são necessárias no processo tanto ou mais que em qualquer outra relação jurídica; sua ausência carreia a desordem, a confusão e a incerteza\'. A forma jurídica ao limitar o poder e proporcionar a segurança é, assim, garantia. (...)”[24] (grifos nossos).
Ante o exposto, somos pela concessão da ordem de Habeas Corpus requerida, por entendermos inconstitucional o regime disciplinar diferenciado, bem como em razão da violação ao contraditório e à ampla defesa, conforme explicitado.
Salvador, 07 de abril de 2016.
RÔMULO DE ANDRADE MOREIRA
Procurador de Justiça
Notas e Referências:
[1]Como afirmam Fábio Félix Ferreira e Salvador Cutiño Raya, “está em curso no Brasil uma Política Criminal e Penitenciária autoritária, conservadora, utilitarista, midiática e simbólica”, acreditando-se “que uma centena de presos em RDD vai suspender ou minimizar as causas e motivações que geram a violência e a criminalidade”, tudo a demonstrar o “afastamento por completo do Estado Democrático, Social e de Direito prometido pelo legislador constituinte de 1988, bem assim da legislação internacional de tutela e promoção dos direitos fundamentais que o Brasil recepcionou.” (Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº. 49, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 288).
[2] Em conferência realizada no Brasil, em Guarujá, no dia 16 de setembro de 2001, Zaffaroni contou a parábola do açougueiro: “El canicero es un señor que está en una carnicería, con la carne, con un cuchillo y todas esas cosas. Si alguien le hiciera una broma al canicero y robase carteles de otros comércios que dijeran: ‘Banco de Brasil’, Agencia de viages’, ‘Médico’, ‘Farmacia’, y los pegara junto a la puerta de la carnicería; el carnicero comenzaria a ser visitado por los feligreses, quienes le pedirían pasajes a Nueva Zelanda, intentarían dejar dinero en una cuenta, le consultarían: ‘tengo dolor de estómago, que puede hacer?’. Y el carnicero sensatamente responderia: ‘no sé, yo soy carnicero. Tiene que ir a otro comercio, a otro lugar, consultar a otras personas’. Y los feligreses se enojarían: ‘Cómo puede ser que usted está ofreciendo un servicio, tiene carteles que ofrecen algo, y después de no presta el servicio que dice?’. Entonces tendríamos que pensar que el carnicero se iría volviendo loco y empezaria a pensar que él tiene condiciones para vender pasajes a Nueva Zelanda, hacer el trabajo de un banco, resolver los problemas de dolor de estómago. Y puede pasar que se vuelva totalmente loco y comience a tratar de hacer todas esas cosas que no puede hacer, y el cliente termine con el estómago agujereado, el otro pierda el dinero, etc. Pero si los feligreses también se volvieran locos y volvieran a repetir las mismas cosas, volvieran al carnicero; el carnicero se vería confirmado en ese rol de incumbencia totalitaria de resolver todo.” Conclui, então, o mestre portenho: “Bueno, yo creo que eso pasó y sigue pasando con el penalista. Tenemos incumbencia en todo.”
[3] “Regime Disciplinar Diferenciado como Produto de um Direito Penal de Inimigo”, in Revista de Estudos Criminais nº. 14, Porto Alegre: NOTADEZ/PUC/!TEC, agosto/2004, p. 145.
[4] STJ, Rel. Min. ADEMAR MACIEL, DJU 3.4.95, p.8.149.
[5] Humberto Ávila, Teoria dos Princípios, São Paulo: Malheiros, 4ª. ed., 2004, p. 131.
[6] Ação Penal, Rio de Janeiro: AIDE Editora, 2002, 3ª. ed., p. 19.
[7] Procédure Pénale, Paris: LexisNexis Litec, 2005, p. 55.
[8] Estudos de Direito Constitucional – O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, São Paulo: Thomson IOB, 2005, p. 39.
[9] Norberto Bobbio, A Era dos Direitos, Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 01.
[10] Idem, p. 05.
[11] Os Princípios Constitucionais Penais, Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1991, pp. 37 e segs.
[12] “La individualización judicial de la pena. Especial referencia al artículo 46 CP peruano”, encontrado no site www.eldial.com – 13 de junho de 2005.
[13] Apud Nicolas Gonzalez-Cuellar Serrano, “Proporcionalidad y Derechos Fundamentales en el Proceso Penal”, Madri: Editorial Colex, 1990, p. 30.
[14] Boletim do IBCCrim, nº. 140, julho/2004, p. 4.
[15] “Pena de morte para os traficantes de drogas?”, publicado no Boletim da Associação Internacional de Direito Penal (Grupo Brasileiro), ano 1, nº. 01 (maio de 2005), p. 04.
[16] Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra: Almedina, 6ª. ed., p. 1.151.
[17] Derecho y Razón – Teoria del Garantismo Penal, Madri: Editorial Trotta S.A., 3ª. ed., 1998, p. 874.
[18] Leia-se Michel Foucault, no indispensável “Vigiar e Punir – História da Violência nas Prisões”, Rio de Janeiro: Vozes, 1998, 18ª. edição.
[19] Boletim do IBCCrim, nº. 135, outubro/2003, p. 02.
[20] O Núcleo do Problema no Sistema Processual Penal Brasileiro, Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, nº. 175, junho/2007, p. 11.
[21]Klaus Tiedemann, Introducción al Derecho Penal y al Derecho Penal Procesal, Barcelona: Ariel, 1989, p. 184.
[22]Introdução ao Direito Processual Constitucional, São Paulo: Síntese, 1999, p. 27.
[23]Pena e Garantias: Uma Leitura do Garantismo de Luigi Ferrajoli no Brasil, Rio de Janeiro:Editora Lumen Juris, 2001, páginas 176/177.
[24]A forma como garantia contra a pulsão vingativa do sistema penal. http://www.ibccrim.org.br/boletim_artigo/5224-A-forma-como-garantia-contra-a-pulsão-vingativa-do-sistema-penal. Acesso em 04 de dezembro de 2014.
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Rômulo de Andrade Moreira é Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor de Direito Processual Penal da UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela UNIFACS.
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