No julgamento da Apelação Criminal Nº 1.0042.14.000662-0/001, no egrégio Tribunal de Justiça de Minas Gerais - TJMG, prevaleceu a compreensão de Verdade Real e da atividade probatória ativa do juiz. O voto vencido, da lavra do Des. Alexandre Victor de Carvalho, todavia, merece os elogios do Empório do Direito. Analisando a temática sob o olhar constitucionalizado e do processo entre partes, demonstrou a inviabilidade da utilização da prova. Ficou vencido. Destacamos seu brilhantismo.
Segue o voto abaixoAPELAÇÃO CRIMINAL – TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES E FALSA IDENTIDADE – PRODUÇÃO DE PROVA PELO MAGISTRADO – ARTIGO 234 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL NÃO RECEPCIONADO PELA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE 1988 - PROVA ILÍCITA - PROVAS REMANESCENTES INSUFICIENTES – ABSOLVIÇÃO - RECURSO PROVIDO.
VOTO
Peço vênia ao eminente Relator para apresentar divergência quanto ao conteúdo de seu judicioso voto, pois entendo que procede a preliminar suscitada pela defesa.
Conforme consta da sentença de f. 242/253, a magistrada determinou, sem provocação, com fundamento no artigo 234 do Código de Processo Penal, a juntada de pedido protocolizado nos autos da prisão em flagrante, o qual, em tese, desacredita a versão defensiva sobre a dinâmica dos fatos, confira-se:
A alegação de que a acusada conheceu o menor na data dos fatos, além de não restar comprovada, cai por terra diante do pedido protocolado nos autos da prisão em flagrante, em que o então menor de idade afirma ser amásio da acusada e pede autorização para visitá-la no estabelecimento prisional.
Na oportunidade, junto o referido documento nos presentes autos, salientando que essa diligência prestigia o princípio da verdade real. Saliento, ainda, que inexiste prejuízo à defesa, uma vez que ela tem conhecimento do documento, pois assinado pelo procurador da acusada – sem grifo no original.
A defesa, em preliminar, requer a declaração da nulidade de tal prova, por ofensa ao sistema acusatório adotado na Constituição da República de 1988.
Entendo que razão assiste à defesa. O sistema adotado pela Constituição da República entrega a gestão da prova às partes, cabendo ao juiz a imparcialidade que lhe garanta um julgamento o mais isento possível, dado que, como é de conhecimento de todos, não há como haver neutralidade, face à bagagem de cada pessoa e ao caldo cultural dentro do qual ela está inserida.
O artigo 234 do CPP, cuja redação data da promulgação do Código, dispõe que
se o juiz tiver notícia da existência de documento relativo a ponto relevante da acusação ou da defesa, providenciará, independentemente de requerimento de qualquer das partes, para sua juntada aos autos, se possível.
Pedindo vênia àqueles que entendem em sentido diverso, considero que referido artigo não foi recepcionado pela Constituição da República.
Esta, ao conferir a titularidade exclusiva da ação penal ao Ministério Público, ao estabelecer o contraditório e a ampla defesa, o devido processo legal, a presunção de inocência e a exigência de publicidade e fundamentação das decisões judiciais, adota o sistema acusatório no âmbito do processo penal, afastando qualquer possibilidade de ativismo judicial, o que requer do julgador um distanciamento da produção probatória que lhe permita julgar com imparcialidade (LOPES JR., 2013, p. 223-224).
Por esse motivo, todos os dispositivos constantes no Código de Processo Penal – da década de 1940, com matriz fascista, importante salientar – que entreguem atividade probatória ao magistrado não devem ter aplicabilidade, porquanto não recepcionados pela Carta Magna de 1988.
Aury Lopes Jr., sobre o tema, ensina-nos que
Não apenas o Ministério Público é o agente exclusivo da acusação, garantindo a imparcialidade do juiz e submetendo sua atuação à prévia invocação por meio da ação penal, mas, principalmente, que a carga probatória é inteiramente do acusador e que o juiz não deve ter qualquer tipo de ativismo probatório.
A imparcialidade do julgador não decorre de uma virtude moral, mas de uma estrutura de atuação. Não é uma qualidade pessoal do juiz, mas uma qualidade do sistema acusatório. Por isso a importância de mantê-lo longe da iniciativa probatória, pois quando o juiz atua de ofício, funda uma estrutura inquisitória. (destaquei)
A gestão da prova deve estar nas mãos das partes (mais especificamente, a carga probatória está inteiramente nas mãos do acusador), assegurando-se que o juiz não terá iniciativa probatória, mantendo-se assim suprapartes e preservando sua imparcialidade.
(...)
Como decorrência, fulminada está a principal garantia da jurisdição: a imparcialidade do julgador. O sistema acusatório exige um juiz-espectador, e não um juiz ator (típico do modelo inquisitório) (LOPES JR., 2013, p. 224).
No caso dos autos, não há como a utilização do artigo 234 do CPP ser mais inquisitorial, haja vista que resgata documento produzido na fase administrativa da persecução penal que, sabe-se, é inquisitiva, não havendo contraditório e ampla defesa e, consequentemente, o devido processo legal.
A magistrada de primeiro grau fundamentou sua atividade probatória no argumento de que tal conduta não acarretou prejuízo à defesa, vez que a acusada tinha conhecimento do documento. Ora, há prejuízo maior em processo penal que a prolação de uma sentença condenatória lastreada em prova produzida pelo juiz?
Ainda que assim não fosse, o prejuízo é presumido quando o julgador se imiscui na função de acusação. Se ele vai atrás da prova é porque já formou seu convencimento, contudo, não há prova judicializada a partir da iniciativa das partes capaz de fundamentar a decisão condenatória já formada pelo magistrado.
E que não se fale em verdade real. Verdade Real nada mais é do que uma fraude processual para validar a concessão de poderes instrutórios ao juiz, o que, como já visto, vilipendia o sistema acusatório então adotado no Brasil.
A regra é clara: in dubio, pro reo. Se há dúvida, o provimento já está delineado: deve ser o absolutório. Não cabe ao juiz ir atrás da condenação a todo custo.
Aury Lopes Jr. e Alexandre Morais da Rosa, sempre cirúrgicos, sustentam que
o juiz-ator-inquisidor viola toda a estrutura acusatória-constitucional, colide com o devido processo legal substancial, mata o contraditório (tratamento igualitário) e, principalmente, fulmina a imparcialidade (o imenso prejuízo que decorre dos pré-juízos, pois quem procura, procura algo...ou seja, decide primeiro e depois vai atrás dos argumentos que justificam a decisão já tomada, etc.). Sem falar no que já conhecemos de pré-julgamento a partir da teoria da dissonância cognitiva. - em “A dispensabilidade do Ministério Público diante do juiz-faz-tudo”.
Por todos esses argumentos ora expendidos, imperativo o reconhecimento da nulidade do documento juntado de ofício pela magistrada, razão por que o expurgo da valoração da prova.
Excluindo-se a prova ilícita, verifica-se que não sobra NADA que dê substrato à versão da acusação.
Há, ao contrário, uma testemunha que, em verdade, desconstitui a credibilidade da versão do Ministério Público, que se baseia em relatos de que havia uma denúncia anônima via 190 a qual narrava que “uma mulher baixa, trajando camiseta preta e short jeans, em companhia de um menor, traficava na BR 354” (f. 242).
Referida testemunha narrou, em juízo, que, feita busca pessoal na acusada, foi encontrada a quantia de R$204,00 e que não a ouviu confirmar a propriedade da droga, bem como não pode afirmar se naquela ocasião algo fora arremessado ao solo (f. 245).
Assim, não tendo a prova produzida pela acusação sido suficiente para persuadir, de modo racional, este julgador acerca da culpabilidade da ré, o provimento não pode ser outro que não o absolutório.
Ante o exposto, DOU PROVIMENTO AO RECURSO DEFENSIVO e absolvo a apelante da imputação, nos termos do artigo 387, VII, do Código de Processo Penal.
Expeça-se alvará de soltura, se por outro motivo não estiver presa.
Sem custas.Referências: Disponível em <http://www.conjur.com.br/2015-jun-19/limite-penal-dispensabilidade-ministerio-publico-diante-juiz-faz-tudo>. Acesso em 19/06/2015. LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. 1394 p.