Os Professores André Karam Trindade (IMED-RS) e Alexandre Morais da Rosa (UFSC-UNIVALI) apresentam a obra "Direito Curvo", do renomado Professor José Calvo González. O livro foi publicado pela Livraria do Advogado e merece ser lido.
PREFÁCIO EM CURVA
Calvo González é um jurista da mais alta erudição. Ele conhece quase tudo: direito, política, economia, filosofia, sociologia, artes, música e, sobretudo, literatura. Quando não conhece, já leu algo a respeito. É impressionante sua capacidade de compartilhar seu conhecimento com um toque especial, sabedoria e humildade.
Reconhecido internacionalmente como um dos principais expoentes do estudo do Direito e Literatura, autor de dezenas de livros e centenas de ensaios e artigos científicos, professor catedrático de teoria e filosofia do direito da Universidad de Málaga, juiz do Tribunal Superior de Andalucía, Calvo González é, antes de tudo, um grande amigo que temos a satisfação de ter em comum.
Em seu conhecido blog, iurisdictio-lex malacitana, posta suas análises e observações, divulga os últimos lançamentos, comenta livros, indica cursos e eventos, enfim, registra suas descobertas e sua visão do mundo. O mesmo se aplica ao Facebook, onde nos conta suas andanças e compartilha as mais diversas experiências, além de acompanhar passo-a-passo aqueles que integram sua rede.
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Nos encontramos em outros dois eventos: primeiro, em Florianópolis – juntamente com Luís Carlos Cancellier de Olivo, Cristiano Paixão, Vera Karam de Chueiri e Lenio Streck –; depois, em Benevento, no sul da Itália – desta vez na companhia de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, Aldacy Rachid Coutinho e Henriete Karam –, onde o provocamos a respeito da metáfora do derecho curvo, convidando-o para desenvolvê-la melhor em Passo Fundo, na conferência de abertura do I Colóquio Internacional de Direito e Literatura, que seria realizado em outubro de 2012.
O desafio foi aceito. E devidamente cumprido. Mais uma vez, Calvo surpreendeu a todos os presentes. O resultado não poderia ter sido melhor. Tanto foi assim que, imediatamente, iniciamos a tradução das duas conferências por ele proferidas, que resultaram na edição deste belo opúsculo.
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Na primeira conferência – O direito curvo –, logo em sua epígrafe, o leitor se depara com uma citação de Nietzsche, que relaciona a verdade à curva. Logo em seguida, a premissa adotada vem de um conto de Machado de Assis, intitulado Sereníssima República, que retrata a política brasileira. O fragmento refere-se às geometrias retilínea, curvilínea e reto-curvilínea, que caracterizam os partidos políticos na República das Aranhas. E, a partir dele, Calvo conclui que as teorias jurídicas sobre os direitos são tão frágeis quanto teias de aranhas.
Na verdade, após o dilema posto pelo principio do tertium non datur, representado através das distintas poesias de Le Corbusier e de Oscar Niemeyer – cujo único denominador comum é a ideia da geometria aplicada à arquitetura moderna –, Calvo apresenta seu objetivo central: explicar no que consiste o denominado direito curvo.
Para isto, o consagrado jurista espanhol desenvolve sua tese em quatro etapas, que são percorridas na agradável companhia de filósofos, escritores, pintores, artistas e juristas: (a) as aspirações geométricas dos juristas, impulsionadas pelo racionalismo cartesiano e pelo império da lógica dedutivista; (b) a relação entre a teoria pura do direito e a ordem figurativa do cubismo; (c) as ondulações sofridas pelo direito a partir das concepções flexível, dúctil, frágil e solúvel, que surgem nas últimas décadas; (d) e, finalmente, o reconhecimento do paradigma do “direito curvo”.
Com efeito, entre retas e curvas, impressiona o modo como Calvo traça seu próprio itinerário, estabelecendo os mais inusitados pontos de contato entre Nietzsche, Machado de Assis, Niemeyer, Le Corbusier, Hobbes, Wolff, Descartes, Spinoza, Leibniz, Ortega y Gasset, Kelsen, Merkl, Schmitt, Picasso, Braque, Carbonnier, Zagrebelsky, Arnaud, Belley, Kandinsky, Mondrian, Reale e Borges.
Demonstra a trajetória das diversas teorias que procuraram indicar as (im)possibilidades deste diálogo. Ao mesmo tempo, descreve e aponta suas imprecisões. Ao final, em efetiva e criativa contribuição, indica as características de um direito curvo. O texto da conferência pode ser lido como um ensaio, mas talvez um ensaio que somente os iluminados possam, de fato, apresentar. Isto porque a curvatura não está aberta para qualquer um.
É preciso, todavia, que o intérprete compreenda o meio em que o discurso se sustenta, sob pena de se perder numa curva qualquer da vida ou do direito. De todo modo, uma coisa é certa: o direito curvo ocupará, em breve, seu lugar na tradição jurídica contemporânea, tornando-se presente em qualquer discussão séria sobre o que se passa diariamente no e pelo direito.
Em suma: a construção deste novo paradigma jurídico – o direito curvo – pressupõe um olhar que certamente transcende os limites do universo jurídico. E este continua a ser o maior desafio dos juristas.
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Na segunda conferência – Por uma teoria narrativista do direito –, Calvo apresenta os pressupostos do modelo teórico que vem construindo desde o início a década de 90, em diversas obras: El Discurso de los hechos. Narrativismo en la interpretación operativa (Ed. Tecnos, 1993); Derecho y Narración. Materiales para una Teoría y Crítica narrativista del Derecho (Ed. Ariel, 1996); Verdad [Narración] Justicia (Ed. Universidad de Málaga, 1998); La Justicia como relato. Ensayo de una semionarrativa sobre los jueces (Ed. Ágora, 2002); Implicación Derecho Literatura. Contribuciones a una teoría literaria del Derecho (Ed. Comares, 2008); El escudo de Perseo (Ed. Comares, 2012).
Seu ponto de partida é, precisamente, um belo poema de Wallace Stevens – The Man with the Blue Guitar (1957), inspirado na obra El viejo guitarrista ciego (1903), de Picasso –, um renomado escritor modernista norte-americano, com formação jurídica, que exerceu a advocacia no início do século XX.
Isto porque, embora não faça referência expressa à Gadamer, a teoria narrativista do direito se estrutura sobre uma premissa hermenêutica: “não existem as coisas exatas como elas são”. Trata-se, com efeito, de uma teoria de viés anti-objetivista, anti-naturalista, anti-essencialista e, portanto, anti-metodológico.
Como se sabe, desde os avanços trazidos pelo narrative turn e, sobretudo, os reflexos por ele promovidos nas mais diversas disciplinas das ciências humanas e sociais – entre elas o direito, onde surge a denominada narrative jurisprudence –, a aplicação da noção de “narrativa” à teoria jurídica assume duas linhas diversas, especialmente nas décadas, ambas relacionadas à produção dos discursos jurídicos na construção da realidade processual.
De um lado, nos Estados Unidos, surgiram-se inúmeras contribuições ligadas à teoria da decisão judicial e, igualmente, à retórica. De outro, na Europa, desenvolveram-se propostas semelhantes, embora mais ligadas à elaboração de padrões probatórios, como, por exemplo, as ancoragens narrativas e os esquemas narrativos.
De todo modo, independentemente da linha adotada, Calvo observa que a “coerência narrativa” sempre foi o tema ao qual se dedicou maior atenção, especialmente a partir dos estudos desenvolvidos por autores do porte de Ronald Dworkin, que desenvolveu da metáfora do romance em cadeia, e Neil MacCormick, que defende o teste de coerência narrativa, como critério de verdade, na ausência de provas diretas acerca dos fatos.
Ocorre que, para Calvo, as aplicações narrativas operadas pelos juristas não devem ser confundidas com sua teoria narrativista do direito. Isto porque, para ele, a coerência narrativa deve ser entendida como um mecanismo de construção dos sentidos, que poderá atuar exclusivamente na condição de critério de verossimilhança.
Assim, levando em conta que a “verdade dos fatos” é sempre o produto interpretativo da faticidade resultante de uma atividade discursiva de estrutura narrativa inventiva destinada a justificar a melhor resposta, a teoria formulada por Calvo tem como objeto consiste no estudo das estruturas que, a partir do material fático e normativo, constroem narrações.
Seu caráter crítico fica bastante nítido na medida em que a teoria não desconsidera o fato de que, muitas vezes, a atribuição de sentido implica uma série de elementos que compõem o horizonte de expectativas do intérprete. Neste contexto, um enunciado fático acaba por se tornar discursivamente coerente também a partir do influxo de subsistemas de sentido, como são a memória (individual) e o imaginário (social).
Assim, a teoria narrativista do direito da qual nos fala Calvo ajuda a compreender que nossos sistemas jurídicos são instalações ficcionais e, por vezes, hiperficcionais. O direito, afirma, é uma forma linguística ficcional de um mundo puramente textual. Ele habita nos discursos narrativos e, portanto, não está imune aos efeitos da ficcionalidade.
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Warat, o anjo torto que tanto nos instigou a desvelar as nuances do ensino jurídico, certamente gostaria muito deste livro azul – igual à guitarra que “pode mudar as coisas como elas são” –, em que o direito é curvo.
Prof. Dr. André Karam Trindade
Prof. Dr. Alexandre Morais da Rosa