O absurdo cotidiano. Entrevista sobre Kafka e o Processo, com Alexandre Morais da Rosa

28/07/2016

Por redação, 28/07/2016

O Empório do Direito reproduz entrevista com o colunista do Empório do Direito, anteriormente publicada no site da Revista do Instituto Humanitas da UNISINOS (aqui), realizada por Ricardo Machado, sob o título Kafka e a crítica à burocratização do Direito.

Segue o conteúdo abaixo.

“A literatura promove, como metáfora, um lugar em que as coordenadas dos discursos distintos podem se fundir. Não se trata de psicanalisar o autor da obra, muito menos o leitor, mas sim de usar o enredo como pano de fundo do que se passa, passou ou passará. Afinal, do Real não se pode dizer”, sustenta Alexandre Morais da Rosa, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. “Kafka é o autor que para o direito promove o encontro com o absurdo. Esse absurdo é apresentado em cenários e contextos eminentemente jurídicos, com os quais o leitor jurídico se projeta, percebe, enfim, atribui sentido. Suas novelas apresentam funções típicas do jurídico, fragmentadas em responsabilidade, alheios ao todo, aparentemente sem sentido”, analisa.

Para Alexandre Morais da Rosa, poucos autores conseguiram traduzir tão bem quanto Kafka as questões de fundo que cercam a atividade jurídica. “A capacidade descritiva do autor é fantástica. Talvez nenhum outro tenha conseguido, com tamanha dureza, mal-estar, descrever a atmosfera alienada e burocrática, especialmente no campo penal, e sua estrutura de destruição de subjetividade. Kafka é a descrição tanto dos julgamentos quanto da execução penal. Se perguntarmos a um acusado ou apenado, a coisa será mais avassaladora que polianamente se pensa”, argumenta o entrevistado. “A maioria é um inseto jurídico. Sair da geleia geral é atividade individual e clandestina. O sujeito se diverte, finge que decide, vive na inautenticidade de um parasita do direito. Pensar é complicado. Dá trabalho. Faz com que se possa objetar”, complementa.

Alexandre Morais da Rosa possui graduação e mestrado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC, doutorado também em Direito pela Universidade Federal do Paraná - UFPR e pós-doutorado na Universidade de Coimbra. Atualmente é professor da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC e Juiz de Direito do Tribunal de Justiça de Santa Catarina. É autor, entre outras obras, de Decisão Penal: a bricolage de significantes (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006) e de Introdução Crítica ao Ato Infracional: Princípios e Garantias Constitucionais. (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Em que medida Direito e psicanálise estão imbricados? De onde nasce o olhar jurisdicional sob a lente da psicanálise?

Alexandre Morais da Rosa - São diversos discursos que se fundem no horizonte da interseção entre direito e psicanálise. Embora campos autônomos e com especificidades, pode-se dizer que atuam sobre as ações e responsabilidade do sujeito. Enquanto o direito pensa no orgulhoso sujeito racional da modernidade, com o deslocamento de Freud , aponta-se que há inconsciente. Não sendo, claro, o lado negro do consciente, mas um lugar em que a coisa escapa. Daí que, no discurso de ambos os campos, surge a possibilidade de um diálogo.

IHU On-Line - Onde a literatura entra nesse debate e qual sua contribuição?

Alexandre Morais da Rosa - A literatura promove, como metáfora, um lugar em que as coordenadas dos discursos distintos podem se fundir. Não se trata de psicanalisar o autor da obra, muito menos o leitor, mas sim de usar o enredo como pano de fundo do que se passa, passou ou passará. Afinal, do Real não se pode dizer.

IHU On-Line - Em que sentido as obras da Kafka  contribuem para o debate sobre a prática jurídica? Por que ele é um autor importante para pensarmos o Direito?

Alexandre Morais da Rosa - Kafka é o autor que para o direito promove o encontro com o absurdo. Esse absurdo é apresentado em cenários e contextos eminentemente jurídicos, com os quais o leitor jurídico se projeta, percebe, enfim, atribui sentido. Suas novelas apresentam funções típicas do jurídico, fragmentadas em responsabilidade, alheios ao todo, aparentemente sem sentido. Nessa perspectiva, assim, podemos fazer o sentido desvelar-se.

IHU On-Line - Como o Direito se apresenta como um ente repressor e uma máquina burocrática nas obras da Franz Kafka? Em que medida corresponde à realidade dos órgãos judiciários?

Alexandre Morais da Rosa - A capacidade descritiva do autor é fantástica. Talvez nenhum outro tenha conseguido, com tamanha dureza, mal-estar, descrever a atmosfera alienada e burocrática, especialmente no campo penal, e sua estrutura de destruição de subjetividade. Kafka é a descrição tanto dos julgamentos quanto da execução penal. Se perguntarmos a um acusado ou apenado, a coisa será mais avassaladora que polianamente  se pensa.

IHU On-Line - Recuperando a discussão da psicanálise, o Direito tem uma “aura” de tecnicidade, porém controla a conduta humana. Nesse sentido, que tensões se estabelecem entre a interpretação de normas — as leis — e a modelagem do pensamento jurídico hegemônico marcadamente elitista?

Alexandre Morais da Rosa - Lenio Streck  e Ernildo Stein , no Brasil, refundaram a Hermenêutica Filosófica. Por eles, sabe-se que não há um sentido a ser descoberto, mas sim um processo de desvelamento, pelo qual o inconsciente se apresenta. Daí que na avaliação dos prejuízos, muitas vezes, o sujeito racional é incompleto, embora desvelar o inconsciente seja algo de borda, ou seja, sem as totalidades racionais.

IHU On-Line - Na novela literária “A colônia penal” de Franz Kafka, quando o explorador é cooptado pelo oficial (sistema) e diz “não”, ele acaba revelando a questão jurídica premente na obra. Como a objeção às práticas hegemônicas de interpretação podem ajudar o Direito a aprimorar o próprio fazer?

Alexandre Morais da Rosa - A cooptação ideológica (Gramsci ) é o meio utilizado pelas elites para sedução dos que objetam, os quais, com pequenos bônus, não raro, entregam-se... Fazer objeção, dizer não, parece ser atividade clandestina, ilegal. Como aponta Charles Melman , num mundo sem gravidade, o sujeito está cada vez mais impedido de objetar. Assim, quando se diz não, quem sabe, aí, no lugar, possa surgir o sujeito. Não se trata de um não para tudo e para todos. Significa fugir do discurso padrão de que tudo é possível, relativo.

IHU On-Line - De que armadilhas os operadores do direito precisam escapar para que não se transformem em insetos como em “A metamorfose” de Franz Kafka?

Alexandre Morais da Rosa - A maioria é um inseto jurídico. Sair da geleia geral é atividade individual e clandestina. O sujeito se diverte, finge que decide, vive na inautenticidade de um parasita do direito. Pensar é complicado. Dá trabalho. Faz com que se possa objetar.

IHU On-Line - Como a literatura ajuda a compreender as lógicas de funcionamento do direito?

Alexandre Morais da Rosa - Entre as diversas possibilidades de compreensão, desde direito como literatura, direito na literatura e direito da literatura, tão bem expostos por Calvo , Cancellier , Karam Trindade , dentre outros, a metáfora que ele enseja e a reflexão de uma possível assunção de responsabilidades, a meu juízo, parece ser um sendeiro.

IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?

Alexandre Morais da Rosa - Não recomendo aos acadêmicos Direito e Literatura. Pode ser que deixem de ser insetos. Vivam como Forrest Gump. Serão mais felizes, embora não saibam que são.


Imagem Ilustrativa do Post: The Kafka monument // Foto de: Peter Corbett // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/ptc24/746906260/ Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/2.0/legalcode
O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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