Namorados que adentram em piscina de casa alheia cometem o crime de violação de domicílio?

13/07/2015

Por redação - 13/07/2015

O acusado, de 18 anos, adentra em piscina de uma casa de veraneio, com sua namorada, para o fim de "namorarem". São autuados por violação de domicílio (CP, art. 150). O magistrado reconhece que houve o fato, mas não se justifica a punição, sendo uma "molecagem", irrelevante do ponto de vista penal. Houve recurso do Ministério Público e acolhimento da tipicidade e dolo pela maioria da Turma Recursal, mesmo com parecer contrário do Ministério Público que funcionou perante o órgão recursal. O voto vencido confirmaria a decisão. Casos inusitados como esses tomam espaço do Poder Judiciário, com custos alarmantes. A reflexão e conclusão são do leitor, ao final. Vale a pena criminalizar o ato?

Confira as decisões. Os nomes foram omitidos.

 A SENTENÇA

Autos nº 006.11.000723-4

SENTENÇA

Vistos etc.

O presentante do Ministério Público ofereceu denúncia contra M. A. M. de O. J, brasileiro, padeiro, filho de S. B. e M. O., nascido em xx.xx.1992, residente na xxxxx, s/n, Centro, Município de Barra Velha, pelos fatos a seguir expostos:

No dia 16 de fevereiro de 2011, por volta das 20horas, na Rua xxx, nº xxx, Bairro xxxx, Município de Barra Velha, o denunciado M. A. M. de O. J, violou o domicílio de O. R. T., ocasião em que, durante o período noturno, entrou clandestinamente nas dependências de casa alheia, contra a vontade tácita de quem de direito.

Pediu a condenação do acusado nas sanções do artigo 150, parágrafo 2º, do Código Penal.

A denúncia foi recebida em audiência, na data de 2 de maio de 2012. Naquela oportunidade, foi decretada a revelia do acusado e nomeado defensor dativo que, no mesmo ato, apresentou defesa preliminar. A vítima foi ouvida em Juízo.

As alegações finais foram apresentadas.

É o relatório. Decido.

Em que pese o Ministério Público haver denunciado o acusado como incurso no parágrafo 2º do artigo 150 do Código Penal, verifico que os fatos apurados e narrados na peça incoativa não condizem com o disposto no referido parágrafo 2º, visto que não há se falar em funcionário público ou abuso de poder, mas sim em suposta prática durante o período noturno.

Sendo assim, por se tratar de mera mudança do libelo, estando tal fato narrado na denúncia, passo diretamente à análise do crime tipificado no parágrafo 1º do artigo supracitado.

Dispõe o artigo 150, parágrafo 1º, do Código Penal:

Art. 150. Entrar ou permanecer, clandestina ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito, em casa alheia ou em suas dependências.

Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) meses, ou multa.

1º. Se o crime é cometido durante a noite, ou em lugar ermo, ou com o emprego de violência ou de arma, ou por duas ou mais pessoas:

Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, além da pena correspondente à violência

A objetividade jurídica é a inviolabilidade da casa, a tranquilidade doméstica e a liberdade individual. De acordo com a Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso XI, a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial.

O núcleo do tatbestand é entrar ou permanecer clandestina ou astuciosamente ou contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito, em casa alheia ou em suas dependências. O elemento subjetivo é o dolo, a vontade livre e consciente de entrar ou permanecer em casa alheia, sem consentimento.

Não obstante a presença da materialidade e da autoria, tenho que a improcedência da denúncia é a solução que melhor faz justiça no caso concreto.

De acordo com a narrativa da vítima:

(...) que eu tenho uma casa; que não é a casa que eu resido definitivamente, é a casa que eu passo o final de semana e tenho piscina; que por volta das 18:30 eu fui ver a minha filha que mora ao lado, e passei por lá; que quando cheguei na casa da minha filha, escutei um determinado barulho de água, então, fui me aproximando e o barulho foi aumentando; que cheguei na casa e vi um casal dentro da piscina tomando banho e perguntei para o rapaz o que ele estava fazendo ali; que este respondeu, "estou aqui tomando um banhinho"; que então questionei, sendo a minha casa o penúltimo lote antes de chegar a praia, é pequeno o mar para você tomar banho? Que o que eu me admiro é que eu tenho um muro de aproximadamente 3 metros de altura e mais uma cerca de três ou quatro fios de arame, em cima do muro; que a cerca não é vulnerável; que o réu arredou os arames da cera passou e passou a menina que estava com ele; que soube depois que a menina era menor; que o réu ficou na casa até a polícia chegar, quando esta chegou, o policial disse para o réu que a menina era menor de idade. Que o réu respondeu que ele é responsável pela menina; que foi chamado o Conselho Tutelar que levaram a menina; que o réu foi para a delegacia junto comigo; que o réu estava dentro da minha propriedade sem minha autorização. Que o réu mora do outro lado da Rodovia BR 101, onde não deixa de ser vizinho, porque fica diante aproximadamente 600 metros; que o réu disse que todo mundo entra na minha casa; que eu já desconfiava disso; que na minha casa tem mesas e cadeiras e os invasores usavam essas cadeiras para sair da propriedade; que não sei como eles entravam; que depois deste fato não constatei novas invasões; que o réu não estava bêbado e nem drogado, aparentemente.

A dinâmica dos fatos, portanto, segundo se depreende dos autos, envolve um rapaz de 18 anos (acusado) e uma adolescente que adentraram no imóvel de propriedade da vítima (uma casa de praia não propriamente habitada no momento dos acontecimentos), ao que tudo indica, para namorarem dentro da piscina no calor do verão, ou seja, uma verdadeira molecagem que não se subsume em absoluto ao tipo penal da invasão de domicílio, estando ausente, portanto, o elemento subjetivo do tipo em questão.

De acordo com a doutrina não é o patrimônio que fundamenta a proteção penal específica na invasão de domicílio (tanto que o tipo em questão está capitulado na parte do Código Penal que cuida da Liberdade Individual enquanto bem jurídico), mas a intimidade e a privacidade, que são aspectos da liberdade individual, assumem dimensão superior no recesso do lar e aí, mas que em qualquer outro lugar, necessitam de irrestrita tutela legal (Cezar Roberto Bitencourt, Código Penal Comentado, Editora Saraiva, 3ª edição, p. 613).

Estamos tratando, portanto, de um jovem sem antecedentes penais que está sendo acusado de crime qualificado e, de outro lado, de uma casa de praia que sequer estava sendo usada no momento. Não há justifica bastante, penso, para o acionamento legítimo do Direito Penal (artigo 150 do Código Penal), haja vista que a questão pode ser resolvida com sucesso na esfera cível, mediante ação possessória.

O direito, por princípio, não pode ser manejado com abuso, sendo a esfera criminal, no dizer de juristas, ultima ratio. Logo, tenho que o Direito Penal deve ser utilizado como última medida e em conformidade com os vetores, dentre outros, da adequação social (FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO, em Princípios Básicos de Direito Penal, Saraiva, 5 edição, página 131), da materialidade da conduta (AMILTON BUENO DE CARVALHO e SALO DE CARVALHO, em Aplicação da Pena e Garantismo, 3 edição, Lumen Juris, páginas 28 a 29) e da lesividade a bem jurídico-penal (LUIZ RÉGIS PRADO, em Bem Jurídico-Penal e Constituição, Revista dos Tribunais, 2 edição, 1997).

Vamos condenar criminalmente um jovem por uma molecagem, havendo medidas específicas no cível para a justa solução da lide que sequer foram usadas pelo interessado? Eu não... por fundamentadamente não entrever presente o elemento subjetivo do tipo, a materialidade da conduta e a lesividade a bem jurídico-penal.

ISSO POSTO, julgo IMPROCEDENTE a denúncia e, em consequência, ABSOLVO M. A. M. de O. J com fundamento no artigo 386, inciso III, do Código de Processo Penal.

Sem custas.

O Plenário do Supremo Tribunal Federal, em 14 de março de 2012, julgou procedentes as Ações Diretas de Inconstitucionalidade n° 3892 e n° 4270, decretando a invalidade de normas do Estado de Santa Catarina que dispõem sobre a Defensoria Dativa e a Assistência Judiciária Gratuita (artigo 104 da Constituição de Santa Catarina e Lei Complementar Estadual 155/97), com eficácia diferida para um ano. Em razão disso, todos os advogados inscritos nesta Comarca fizeram o descredenciamento no sistema de nomeações de Defensoria Dativa e Assistência Judiciária.  Nos termos da lei nacional, parágrafo 1º do artigo 22 da Lei 8.906, de 4 de julho de 1994: O advogado, quando indicado para patrocinar causa de juridicamente necessitado, no caso de impossibilidade da Defensoria Pública no local da prestação de serviço, tem direito aos honorários fixados pelo juiz, segundo tabela organizada pelo Conselho Seccional da OAB, e pagos pelo Estado. Referida Tabela de Honorários encontra-se disponível no seguinte link: http://www.oab-sc.org.br/documentos/tesouraria/tab_honorarios.pdf

Assim, nos termos do parágrafo 1º do artigo 22 da Lei 8.906, de 4 de julho de 1994, fixo remuneração ao advogado nomeado em R$ 1.430,50.

Publique-se. Registre-se. Intimem-se.

Oportunamente, arquivem-se.

Barra Velha, 29 de junho de 2012.

IOLMAR Alves BALTAZAR,

Juiz de Direito.

 

ACÓRDÃO VENCEDOR

Apelação Criminal n. 2013.500668-1, de Barra Velha

Relatora: Juíza Viviane Isabel Daniel Speck de Souza

APELAÇÃO CRIMINAL. CRIME DE VIOLAÇÃO DE DOMICÍLIO DURANTE O PERÍODO NOTURNO. ART. 150, § 1º, DO CÓDIGO PENAL. INSTRUÇÃO QUE REVELA A ENTRADA DO RÉU NO DOMICÍLIO DA VÍTIMA, SEM SUA CONCORDÂNCIA, PARA BANHAR-SE NA PISCINA. ÁREA DE LAZER EXTERNA QUE FAZ PARTE DO “COMPARTIMENTO” PROTEGIDO PELO LEGISLADOR. CASA DE PRAIA. LOCAL DE HABITAÇÃO EVENTUAL TAMBÉM TUTELADO PELO DIREITO PENAL. INTIMIDADE E PRIVACIDADE COMPREENDIDAS NA LIBERDADE INDIVIDUAL QUE É VIOLADA DURANTE O CRIME. FATO TÍPICO E ANTIJURÍDICO. ABSOLVIÇÃO IMPOSSÍVEL. CONDENAÇÃO. REFORMA DA SENTENÇA. RECURSO PROVIDO.

No crime de violação de domicílio, geralmente praticado na clandestinidade, longe dos olhos de testemunhas, as palavras da vítima possuem fundamental importância para a condenação, mormente porque, quando possível, é quem acaba surpreendendo o agente.

A permanência do réu apenas em área externa, sem ingresso nos cômodos da casa da vítima, não afasta a tipicidade do delito, uma vez que o objeto protegido alcança toda a estrutura que compõe a habitação, nela incluídos o jardim, o quintal, a garagem e, inclusive, a piscina.

Assim, pratica o delito de violação de domicílio o réu que ingressa na residência da vítima e se utiliza da piscina, cuja conduta é qualificada quando o ato é cometido durante o período noturno.

A violação de casa de praia configura o delito do art. 150 do Código Penal, uma vez que o legislador optou por proteger não apenas o local de residência diária, contínua e ininterrupta, mas todo e qualquer compartimento habitado (§ 4º, inc. I), ainda que eventualmente, excluindo apenas as instalações do § 5º do referido dispositivo.

A absolvição de agente que viola terreno de terceiro para tomar banho de piscina importa autorização judicial para ingresso de qualquer pessoa em residência alheia, o que se revela absolutamente inadequado e configura evidente desprezo da lei penal em vigor.

Vistos, examinados e discutidos estes autos de Apelação Criminal n. 2013.500668-1, da comarca de Barra Velha (2ª Vara), em que é recorrente o Ministério Público do Estado de Santa Catarina e recorrido M. A. M. de O. J:

A Quinta Turma de Recursos decidiu, por maioria de votos, conhecer do recurso e dar-lhe provimento, nos termos do voto da relatora, vencido o Exmo. Sr. Juiz Fernando de Castro Faria, que declarava a nulidade do processo pelo não oferecimento da proposta de suspensão do processo e, no mérito, absolvia o réu; e quanto à dosimetria da pena, não aplicava o contido na Súmula 231 do Superior Tribunal de Justiça, reduzindo a pena na segunda fase da dosimetria.

Sem custas.

O julgamento, realizado no dia 7 de outubro de 2013, foi presidido pelo Exmo. Sr. Juiz Maurício Cavallazzi Póvoas, com voto, e dele participou o Exmo. Sr. Juiz Fernando de Castro Faria.

Joinville, 21 de outubro de 2013.

Viviane Isabel Daniel Speck de Souza

 RELATORA

 RELATÓRIO

Dispensado, nos termos dos arts. 46 e 81, § 3º, da Lei n. 9.099/1995 e do art. 63, § 1º, do Regimento Interno das Turmas de Recursos Cíveis e Criminais dos Juizados Especiais do Estado de Santa Catarina (Resolução n. 4/2007-CG).

VOTO

Cuida-se de ação penal pública incondicionada movida pelo Ministério Público de Santa Catarina, que atribui a M. A. M. de O. J a prática do crime previsto no art. 150, § 2º, do Código Penal.

Narra a denúncia o seguinte:

 No dia 16 de fevereiro de 2011, por volta das 20horas, na Rua xxx, nº xxx, Bairro xxxx, Município de Barra Velha, o denunciado M. A. M. de O. J, violou o domicílio de O. R. T., ocasião em que, durante o período noturno, entrou clandestinamente nas dependências de casa alheia, contra a vontade tácita de quem de direito (fl.).

O feito tramitou pelo rito sumaríssimo, tendo em vista envolver infração de menor potencial ofensivo, nos termos do art. 61 da Lei n. 9.099/1995.

Concluída a instrução, o réu foi absolvido.

Inconformado com o veredicto, o representante do Ministério Público recorreu buscando a condenação do acusado, que apresentou suas contrarrazões.

Da detida análise dos autos verifica-se que a sentença merece ser reformada.

Preliminarmente, não há que se falar em nulidade do feito pelo não oferecimento de proposta de suspensão condicional do processo ao réu. Isso porque ele já havia sido beneficiado com a transação penal, mediante o pagamento de R$ 100,00 (fl. 08), cuja obrigação não cumpriu sem qualquer justificativa, o que deu ensejo ao oferecimento da denúncia.

Não bastasse isso, o Dr. Promotor de Justiça, ao apresentar a denúncia, manifestou expressamente as razões pelas quais deixava de propor a suspensão condicional do processo. No caso, registrou que todas as tentativas de localizar o acusado para a audiência de justificação restaram frustradas, acrescentando que a designação de uma audiência não instrutória somente serviria para adiar o trâmite do feito (fl. III).

Logo, o magistrado de primeiro grau, ao receber a denúncia e decretar a revelia do acusado, acabou por acolher a manifestação da acusação acerca dos motivos pelos quais não propunha a suspensão do processo.

Não bastasse, o réu não compareceu na audiência de instrução e julgamento, embora regularmente citado (fl. 31), oportunidade em que poderia reivindicar eventual direito à suspensão condicional do processo. Assim, ainda que a denúncia estivesse acompanhada de proposta de suspensão do processo, a situação dos autos não sofreria qualquer alteração, o que, por si só já afasta a nulidade por ausência de prejuízo (art. 563 do CPP).

Evidente, portanto, que a designação de audiência para o oferecimento de proposta de suspensão seria inútil e, inclusive, incompatível com os princípios da economia processual e da celeridade que devem nortear os feitos que tramitam pelo rito da Lei n. 9.099/1995.

Em caso similar, esta Turma Recursal assim já decidiu:

OFERECIMENTO DE TRANSAÇÃO PENAL OU SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO. ARGUMENTOS CONTRÁRIOS AO OFERECIMENTO DAS BENESSES ACEITAS PELO MAGISTRADO A QUO.

Havendo nos autos a devida justificativa do não oferecimento de transação penal e suspensão condicional do processo, aceitas pelo Juiz de Direito, não há que se falar em nulidade do feito e remessa dos autos à Comarca de origem para tal providência.

SENTENÇA MANTIDA POR SEUS PRÓPRIOS FUNDAMENTOS (Recurso Criminal n. 2011.500264-9, de Itaiópolis, rel. Juiz André Alexandre Happke)

No tocante ao mérito, o exame da materialidade fica prejudicado porque a violação de domicílio é crime de mera conduta.

Assim, aprecia-se em conjunto a prova da existência do crime e da autoria.

No caso, o boletim de ocorrência de fls. 02-03 foi confirmado pelo depoimento prestado pela vítima em audiência de instrução em julgamento (fl. 35), oportunidade em que foi ratificada a entrada do réu na residência daquela sem qualquer concordância, o que ocorreu por volta das 18h30.

Não se nega que “aquele que cometeu o delito e quem o sofreu, não são testemunhas imparciais; por isso a crítica criminal dá mais valor ao testemunho de terceiro, como a mais rica e pura fonte de certeza em matéria criminal” (MALATESTA, Nicola Framarino Dei. A lógica das provas em matéria criminal. Tradução Paolo Capitanio. Campinas: Bookseller, 1996. v. 1. p. 392).

Ocorre que no crime de violação de domicílio, geralmente praticado na clandestinidade, longe dos olhos de testemunhas, as palavras da vítima possuem fundamental importância para a condenação, mormente porque é quem acaba surpreendendo o agente no ato, o que, a propósito, nem sempre acontece.

A corroborar, a Polícia Militar, após acionada, foi até o local dos fatos e flagrou o réu no interior da piscina da vítima, conduzindo-o até a Delegacia de Polícia.

Tem-se, portanto, que as provas dos autos demonstram que o réu adentrou na casa de praia da vítima, sendo surpreendido por ela enquanto banhava-se na piscina, fato que também foi constatado pela autoridade policial, que o conduziu até a delegacia de polícia.

Cumpre verificar se tal fato se enquadra no tipo do art. 150, § 1º, do Código Penal, destacando-se que o erro material constante da denúncia, que capitulou o fato no § 2º, já fora ajustado na sentença.

Pois bem. Antes de mais nada, é necessário relembrar o que dispõe o art. 5º, XI, da Constituição da República, que trata da garantia fundamental da inviolabilidade do domicílio:

“XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”.

Para punir a violação de tal garantia, o Código Penal já havia tipificado a conduta nos termos do dispositivo que segue:

Violação de domicílio

Art. 150 - Entrar ou permanecer, clandestina ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito, em casa alheia ou em suas dependências:

Pena - detenção, de um a três meses, ou multa.

1º - Se o crime é cometido durante a noite, ou em lugar ermo, ou com o emprego de violência ou de arma, ou por duas ou mais pessoas:

 Pena - detenção, de seis meses a dois anos, além da pena correspondente à violência.

2º - Aumenta-se a pena de um terço, se o fato é cometido por funcionário público, fora dos casos legais, ou com inobservância das formalidades estabelecidas em lei, ou com abuso do poder.

3º - Não constitui crime a entrada ou permanência em casa alheia ou em suas dependências:

I - durante o dia, com observância das formalidades legais, para efetuar prisão ou outra diligência;

II - a qualquer hora do dia ou da noite, quando algum crime está sendo ali praticado ou na iminência de o ser.

4º - A expressão “casa” compreende:

I - qualquer compartimento habitado;

II - aposento ocupado de habitação coletiva;

III - compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade.

5º - Não se compreendem na expressão “casa”:

I - hospedaria, estalagem ou qualquer outra habitação coletiva, enquanto aberta, salvo a restrição do n.º II do parágrafo anterior;

II - taverna, casa de jogo e outras do mesmo gênero.

O delito está previsto no Livro I, Capítulo VI, que trata dos crimes contra a liberdade individual, e, como bem assentou o Magistrado sentenciante, a objetividade jurídica do delito é a inviolabilidade da casa, a tranquilidade doméstica e a liberdade individual.

Na lição de Cezar Roberto Bitencourt:

O bem jurídico protegido, neste tipo penal, continua sendo a liberdade individual, ou seja, o status libertatis na sua expressão mais elementar, que é a inviolabilidade domiciliar, a invulnerabilidade do lar, que é o lugar mais recôndito que todo ser humano deve possuir, para encontrar paz, tranquilidade e segurança junto aos seus familiares. A intimidade e a privacidade, que são aspectos da liberdade individual, assumem dimensão superior no recesso do lar e aí, mais que em qualquer outro lugar, necessitam de irrestrita tutela legal, justificando-se, inclusive, a proteção constitucional (art. 5º, X) (Código penal comentado. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 613).

Como bem anotou o doutrinador, a intimidade e a privacidade, que são aspectos da liberdade individual, são tutelados pelo tipo penal em análise. No caso concreto, é evidente que a conduta do réu de utilizar a piscina existente na casa de praia do ofendido, sem o consentimento deste, atingiu a sua intimidade e privacidade.

Note-se que não se está protegendo o patrimônio do ofendido, mas sua tranquilidade doméstica e a liberdade individual.

Nesse contexto, equivoca-se o Magistrado, data venia, ao afirmar que, por se tratar de mera “molecagem”, o elemento subjetivo do tipo não estaria presente. Segundo Celso Delmanto, o tipo subjetivo é o “dolo (vontade livre e consciente de entrar ou permanecer sem consentimento). Portanto, o agente deve saber que há vontade contrária ao seu comportamento” (Código penal comentado. 6. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 322).

Aliado a isso, ainda que a finalidade do agente não fosse outra que não a de banhar-se na piscina da vítima, tal circunstância não descaracteriza o crime, pois, para a sua configuração, basta “a vontade de ingressar ou permanecer na casa contra a vontade de quem de direito, não sendo necessário indagar qual a sua finalidade última” (MIRABETE, Julio Fabbrini. Código penal interpretado. São Paulo: Atlas, 1999, p. 853).

Assim, é evidente que, no caso concreto, o elemento subjetivo se fez presente na conduta do réu, uma vez que sua intenção de adentrar em residência alheia era clara, não importando se a sua entrada constituiu ato de mera “molecagem”.

Não se esqueça que o tipo penal do art. 150 do Código Penal constitui crime de mera conduta e, como tal, independe de qualquer resultado, bastando, para sua consumação, que o agente ingresse em casa alheia sem o consentimento do morador, tal como ocorreu no caso concreto.

O sentenciante afirmou, ainda, que, em se tratando de uma “casa de praia que sequer estava sendo usada no momento”, não haveria justificativa para o acionamento do Direito Penal a fim de se condenar um jovem sem antecedentes, podendo a questão ser resolvida no âmbito civil.

O entendimento adotado, contudo, não se justifica.

A violação de casa de praia configura o delito do art. 150 do Código Penal, uma vez que o legislador optou por proteger não apenas o local de residência diária, contínua e ininterrupta, mas todo e qualquer compartimento habitado (§ 4º, inc. I), ainda que eventualmente, excluindo apenas as instalações do § 5º do referido dispositivo.

Evidente, portanto, que não de pode designar de desabitada uma casa apenas porque seus habitantes não estão ali presentes diariamente.

O tema já foi objeto de amplo estudo por parte de consagrados doutrinadores, senão vejamos:

Julio Fabbrini Mirabete:

O conceito de casa pode ser dado como o de qualquer construção, aberta ou fechada, imóvel ou móvel, de uso permanente ou ocupada transitoriamente.

[...]

Compartimento habitável em caráter eventual – TACRSP: A expressão ‘casa’ contida no caput do art. 150 do estatuto penal é a mais ampla possível, abrangendo qualquer compartimento habitável, ainda que em caráter eventual (JTACRIM 93/273) (op. cit., p. 858, sem grifo no original).

Cezar Roberto Bitencourt:

[...] se houve invasão de casa habitada, cujos moradores se encontrem ausentes, tipificará o crime de invasão de domicílio, pois, a despeito da ausência dos ‘moradores’, o lugar permanece como ‘habitado’ e repositório da intimidade e privacidade que caracterizam a vida doméstica daqueles.

[...]

Convém, ademais, ter presente que a ausência eventual de moradores não caracteriza casa desabitada ou abandonada (op. cit., p. 613-614 e 617).

Damásio de Jesus: “Tutela-se o direito ao sossego, no local de habitação, seja permanente, transitório ou eventual. Assim, a expressão ‘casa’ não tem as dimensões da expressão ‘domicílio’ contida no Direito Civil” (Direito penal. 17. ed., São Paulo: Saraiva, 1995. p. 234, sem grifo no original).

Rogério Greco:

Situação completamente diversa é a da casa que, embora normalmente habitada, seus moradores dela se encontram afastados quando do ingresso do agente. Aqui, existe bem jurídico a ser protegido pelo Direito Penal, razão pela qual a prática da violação de domicílio é perfeitamente admissível.

Conforme esclarece Aníbal Bruno,

a entrada em casa vazia, ou construção em ruína, desabitada, não constitui violação de domicílio. Mas se a casa está ocupada, não é necessário para que se formalize o crime que o morador esteja presente no momento da violação.

Caso contrário, não fosse esse o raciocínio dominante, sempre que viajássemos, por exemplo, esse fato seria como que uma “permissão tácita” para que outras pessoas utilizassem nossa casa, o que não pode ser considerado um raciocínio razoável. (Curso de direito penal. 2. ed. Niterói: Ímpetus, 2006. p. 624-625, sem grifo no original).

Por fim, especificamente sobre a casa de veraneio, mais uma vez invocam-se as lições de Julio Fabbrini Mirabete:

É preciso que a casa seja habitada (RT 396/368, 469/411), mas isso não quer dizer que seja necessário para a caracterização do crime que os moradores estejam presentes no momento do fato. Como bem esclarece Costa e Silva, “é ocupada (habitada) a casa que alguém possui em uma estação balneária e que a maior parte do ano fica sem moradores” (RT 557/353) (Manual de direito penal. 24. ed. São Paulo: Atlas, 2006. v. 2, p. 178, sem grifo no original).

Logo, não se pode negar que a casa de praia constitui “casa habitada”, merecendo, portanto, a total proteção do legislador que, para tanto, penalizou o ingresso sem o consentimento de quem de direito.

E ainda que assim não fosse, não se pode esquecer que o réu foi surpreendido pelo dono da casa no momento em que usava a piscina. Ou seja, a casa, naquele dia, estava habitada.

E nem se sustente que permanência do réu apenas em área externa, sem ingresso nos cômodos da casa da vítima, afastaria a tipicidade do delito, uma vez que o objeto protegido alcança toda a estrutura que compõe a habitação, nela incluídos o jardim, o quintal, a garagem e, logicamente, a piscina:

Refere-se a lei, também, às dependências da casa, ou seja, aos lugares que complementam a moradia como terraço (RT 467/385), quintal (RT 544/385, RJDTACRIM 9/160), telhado (RJDTACRIM 8/167), garagem, pátrio, adega, etc. São os locais e construções que se incorporam funcionalmente à casa (JTACrSP 57/316). Exige-se, porém, que haja um visível obstáculo à passagem (cercas, telas, correntes etc.), não ocorrendo o ilícito quando, p. ex., o agente transita por um gramado não cercado. Embora não seja necessário que a dependência esteja ligada materialmente à casa, exige-se que esteja ela em conexidade com a moradia, numa “certa relação de necessidade com a vida doméstica ou atividade privada” (MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal. 24. ed., São Paulo: Atlas, 2006. v. 2, p. 177-178).

O tipo penal do art. 150 do Código Penal prevê, ainda, como elemento do tipo, o ingresso em casa alheia “contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito”. A respeito, não se pode cogitar que o réu desconhecia a proibição de entrar na residência da vítima. Ora, a par de constituir regra de conhecimento geral, o ofendido informou em juízo que a residência é protegida por um muro de aproximadamente três metros de altura, sobre o qual existe uma cerca de três ou quatro fios de arame. Além disso, a inviolabilidade do domicílio é tutelada pela Constituição e pelo Código Penal e, destaque-se, o desconhecimento da lei é inescusável.

Assim, no caso dos autos, sendo a casa habitada e tendo o acusado ingressando no local sem consentimento da vítima, como revelou o conjunto probatório, a aplicação da lei penal é inafastável.

Relativamente à despenalização da conduta operada pelo juiz sentenciante, que apontou para a sua resolução na esfera cível, há de se registrar que as jurisdições cível e penal são independentes. Tal operação somente seria possível em havendo previsão legal para tanto, o que não é o caso dos autos.

O ato praticado pelo agente encontra exata tipificação na lei penal, nada justificando sua absolvição, sob pena de restar autorizado por decisão judicial o ingresso de qualquer pessoa em residência alheia, o que, convenhamos, se revela absolutamente inadequado e configura evidente desprezo da lei penal em vigor.

E embora não se negue que o uso dos costumes acabou por afastar algumas condutas típicas, não nos parece que seja o caso do delito previsto no art. 150 do Código Penal, sendo evidente que ingressar em casa alheia sem a autorização de quem de direito não constitui conduta aceita legal ou socialmente.

Em consonância com o caso dos autos, decidiu o Egrégio Tribunal de Justiça Catarinense, mutatis mutandis:

APELAÇÃO CRIMINAL. CRIME CONTRA A INVIOLABILIDADE DO DOMICÍLIO E CRIME PRATICADO POR PARTICULAR CONTRA A ADMINISTRAÇÃO EM GERAL. VIOLAÇÃO DE DOMICÍLIO (ART. 150, § 1º, DO CP) E RESISTÊNCIA (ART. 329, CAPUT, DO CP). SENTENÇA CONDENATÓRIA. PLEITO DEFENSIVO. ALMEJADA ABSOLVIÇÃO POR AUSÊNCIA DE PROVAS. VIOLAÇÃO DE DOMICÍLIO. DELITO CUJA MATERIALIDADE MUITO NÃO SE PODE EXIGIR. AUTORIA COMPROVADA. PALAVRAS DA VÍTIMA, EX-COMPANHEIRA, E DO FILHO DO CASAL QUE CONFIRMARAM TER O RÉU ADENTRADO À MORADA. ACUSADO ENCONTRADO DENTRO DA RESIDÊNCIA DA VÍTIMA PELOS POLICIAIS MILITARES. CONDUTA TÍPICA. TESE DEFENSIVA RECHAÇADA. CONDENAÇÃO MANTIDA (Apelação Criminal n. 2011.072286-3, de Itapiranga, rel. Des. Leopoldo Augusto Brüggemann).

No mais, tendo o ingresso na piscina ocorrido no período noturno, resta configurada a qualificadora do § 1º do art. 150 do Código Penal.

Necessário, então, proceder à dosimetria da pena.

A culpabilidade, entendida aqui como o grau de reprovabilidade da conduta, é própria ao tipo penal descrito. O réu não ostenta condições pessoais que imponham o acréscimo da pena em razão desta circunstância; tinha 18 anos na data dos fatos e era padeiro. Ou seja, não se trata de pessoa que reúna atributos acima da média a ponto de se lhe impor uma maior reprovação do que aquela atinente ao homem médio. Outrossim, não há nos autos provas no sentido de que o delito cometido tinha uma motivação mais leviana do que o simples dolo de violar domicílio alheio para tomar um banho de piscina.

Não registra antecedentes criminais (certidão de fl. 5).

Com relação à conduta social, nada foi apurado que desabone sua vida, na família ou no trabalho.

Sobre a personalidade, não há nos autos nenhum dado científico a respeito.

O motivo, as circunstâncias e as consequências foram normais à espécie.

Por sua vez, nada há que se referir sobre o comportamento da vítima.

Considerando, portanto, as circunstâncias do art. 59 do Código Penal, fixa-se a pena-base em seis meses de detenção.

Na segunda fase, as provas produzidas demonstram que o acusado recorrido praticou o fato acompanhado da menor P.R.S.F. (14 anos), o que caracterizaria a circunstância agravante do concurso de pessoas prevista no art. 62, inc. III, Código Penal, que dispõe: “A pena será ainda agravada em relação ao agente que [...] instiga ou determina a cometer o crime alguém sujeito à sua autoridade ou não-punível em virtude de condição ou qualidade pessoal” (sem grifo no original).

Ocorre que tal circunstância não restou descrita na acusação, devendo, portanto, ser ignorada, sobretudo porque “não se aplicam à segunda instância o art. 384 e parágrafo único do Código de Processo Penal, que possibilitam dar nova definição jurídica ao fato delituoso, em virtude de circunstância elementar não contida, explícita ou implicitamente, na denúncia ou queixa” (Súmula 453 do Supremo Tribunal Federal).

Ainda, está presente a atenuante da menoridade (art. 65, inc. I, do CP), que “prepondera sobre todas as circunstâncias legais ou judiciais desfavoráveis ao apenado, sobrepujando, inclusive, a agravante da reincidência” (Revisão Criminal n. 01.018089-8, de Joinville, rel. Des. Irineu João da Silva, Câmaras Criminais Reunidas).

A despeito de sua importância, tal circunstância em nada influenciará na dosimetria, uma vez que é impossível o abrandamento da pena aquém do mínimo legal nesta fase, consoante orienta a Súmula 231 do Superior Tribunal de Justiça: “A incidência da circunstância atenuante não pode conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal”.

O Supremo Tribunal Federal respalda essa tese: HC n. 94540/RS, rel. Min. Ellen Gracie.

Não havendo, portanto, outras causas modificadoras, torno definitiva a pena aplicada em seis meses de detenção, por infração ao disposto no art. 150, § 1º, do Código Penal.

A pena deverá ser cumprida em regime aberto, tendo em vista a primariedade e o quantum da reprimenda (art. 33, § 2º, alínea “c”, do Código Penal), aliados às circunstâncias judiciais antes examinadas (§ 3º).

Preenchidos os requisitos objetivos (arts. 44, inc. II, e 60, § 2º, ambos do Código Penal – primariedade e pena inferior a seis meses) e subjetivos (art. 44, inc. III, do Código Penal), substitui-se a pena ora aplicada por multa, no patamar de dez dias multa em razão da sanção aplicada (arts. 49 e 59 do Código Penal) e no valor unitário de 1/30 do salário mínimo vigente à época dos fatos, tendo em vista a situação econômica do recorrido, que à época dos fatos era padeiro – art. 60, § 1º, do Código Penal.

 O § 2º do art. 60 do Código Penal possibilita a conversão da pena privativa de liberdade em pena de multa, desde que a pena não seja superior a 6 (seis) meses e desde que ocorrentes os pressupostos ínsitos nos incisos II e III do art. 44 do mesmo Código. São, portanto, dois os requisitos a serem observados na substituição da pena privativa de liberdade pela de multa: o primeiro, de natureza objetiva: pena privativa de liberdade não superior a seis meses e ser o réu primário (CP, art. 60, § 2º e art. 44, II); o segundo, de índole subjetiva, inscrito no inc. III do art. 44 do Cód. Penal, quando a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e personalidade do condenado, bem como os motivos e as circunstâncias indicarem que a substituição da pena privativa de liberdade pela de multa seja suficiente (STF, HC n. 76294, rel. Min. Carlos Velloso).

Ante o exposto, por maioria de votos, dá-se provimento ao recurso interposto para reformar a sentença proferida e julgar procedente a acusação e, em consequência, condenar M. A. M. de O. J ao pagamento de dez dias multa, no valor unitário de 1/30 do salário mínimo vigente à época dos fatos, por infração ao disposto no art. 150, § 1º, do Código Penal.

É o voto.


VOTO VENCIDO

Apelação Criminal n. 2013.500668-1, de Barra Velha

Juiz: Fernando de Castro Faria

DECLARAÇÃO DE VOTO VENCIDO

Cuida-se de Apelação Criminal em Ação Penal movida pelo Ministério Público em face de M. A. M. O. J. por violação de domicílio (art. 150, § 1º, do CP – capitulação corrigida na sentença).

A denúncia, oferecida após o não cumprimento da transação penal (“revogada” pelo Ministério Público – fl. III), descreve a conduta da seguinte forma:

 No dia 16 de fevereiro de 2011, por volta das 20horas, na Rua xxx, nº xxx, Bairro xxxx, Município de Barra Velha, o denunciado M. A. M. de O. J, violou o domicílio de O. R. T., ocasião em que, durante o período noturno, entrou clandestinamente nas dependências de casa alheia, contra a vontade tácita de quem de direito.

Não houve o oferecimento da proposta de suspensão condicional do processo, sob o argumento de que “(...) restaram frustradas todas as tentativas de localizar o acusado para audiência de justificação. Assim, a realização de nova audiência instrutória, na qual o réu provavelmente não compareceria, somente serviria para adiar o trâmite do presente feito.” (Manifestação do Ministério Público – fl. III).

Eis a primeira divergência, pois entendi que a negativa de proposta da suspensão condicional do processo, pelo Ministério Público, violou direito subjetivo do denunciado, por ausência de fundamentação válida.

Não houve qualquer menção a qualquer impeditivo de ordem legal para tanto, apenas a situação supra relatada, com o que não concordo.

A suspensão condicional do processo, a meu ver, é direito subjetivo do réu e não pode deixar de ser feita com base na assertiva de que o réu “provavelmente” não compareceria.

É certo que após a citação e intimação para comparecimento, o acusado não se fez presente, mas tal fato (somente verificado posteriormente) não eximiria o representante do Ministério Público do poder-dever de formular a proposta.

Por isso, o processo deveria ser anulado para que a proposta fosse formulada ao acusado.

No mérito, divergi por entender que a conduta imputada ao réu é insignificante e desprovida de tipicidade material.

Ao tratar do tema, Luiz Flávio Gomes ensina que:

“(...) o primeiro juízo valorativo recai sobre a conduta (e isso é feito de acordo com o critério da imputação objetiva de Roxin: criação ou incremento de risco proibido relevante). O segundo juízo valorativo incide sobre a ofensa ao bem jurídico (que é o resultado jurídico), que deve ser: (a) concreto, (b) transcendental, (c) não insignificante, (d) intolerável, (e) objetivamente imputável ao risco criado e (f) que esteja no âmbito de proteção da norma.” (Tipicidade formal + material: onze requisitos (exigências). Disponível em http://atualidadesdodireito.com.br/lfg/2011/04/22/tipicidade-formal-material-onze-requisitos-exigencias/>. Acesso em 29.11.2013).

Ao afastar o dolo e a tipicidade material da conduta, o juiz sentenciante agiu com acerto.

Da sentença, que representa um momento de compreensão (Alexandre Morais da Rosa), extrai-se:

Dela, extrai-se:

“A dinâmica dos fatos, portanto, segundo se depreende dos autos, envolve um rapaz de 18 anos (acusado) e uma adolescente que adentraram no imóvel de propriedade da vítima (uma casa de praia não propriamente habitada no momento dos acontecimentos), ao que tudo indica, para namorarem dentro da piscina no calor do verão, ou seja, uma verdadeira molecagem que não se subsume em absoluto ao tipo penal da invasão de domicílio, estando ausente, portanto, o elemento subjetivo do tipo em questão.

De acordo com a doutrina não é o patrimônio que fundamenta a proteção penal específica na invasão de domicílio (tanto que o tipo em questão está capitulado na parte do Código Penal que cuida da Liberdade Individual enquanto bem jurídico), mas a intimidade e a privacidade, que são aspectos da liberdade individual, assumem dimensão superior no recesso do lar e aí, mas que em qualquer outro lugar, necessitam de irrestrita tutela legal (Cezar Roberto Bitencourt, Código Penal Comentado, Editora Saraiva, 3ª edição, p. 613).

Estamos tratando, portanto, de um jovem sem antecedentes penais que está sendo acusado de crime qualificado e, de outro lado, de uma casa de praia que sequer estava sendo usada no momento. Não há justifica bastante, penso, para o acionamento legítimo do Direito Penal (artigo 150 do Código Penal), haja vista que a questão pode ser resolvida com sucesso na esfera cível, mediante ação possessória.

O direito, por princípio, não pode ser manejado com abuso, sendo a esfera criminal, no dizer de juristas, ultima ratio. Logo, tenho que o Direito Penal deve ser utilizado como última medida e em conformidade com os vetores, dentre outros, da adequação social (FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO, em Princípios Básicos de Direito Penal, Saraiva, 5 edição, página 131), da materialidade da conduta (AMILTON BUENO DE CARVALHO e SALO DE CARVALHO, em Aplicação da Pena e Garantismo, 3 edição, Lumen Juris, páginas 28 a 29) e da lesividade a bem jurídico-penal (LUIZ RÉGIS PRADO, em Bem Jurídico-Penal e Constituição, Revista dos Tribunais, 2 edição, 1997).

Vamos condenar criminalmente um jovem por uma molecagem, havendo medidas específicas no cível para a justa solução da lide que sequer foram usadas pelo interessado- Eu não... por fundamentadamente não entrever presente o elemento subjetivo do tipo, a materialidade da conduta e a lesividade a bem jurídico-penal.”

Referidos fundamentos também foram encampados pelo representante do Ministério Público atuante junto a esta Turma de Recursos, valendo destacar:

“A conclusão do magistrado a quo de que o fato narrado não merece a glosa do Direito Penal é acertada, pois levou em conta não somente a letra pura e fria da Lei Penal, mas, muito mais do que isso, procurou resolver o mérito da questão sob o prisma da Justiça, sopesando as peculiaridades do caso concreto.” (fl. 63).

Ademais, no caso em apreço, a casa sequer estava habitada. Não houve qualquer violação à intimidade ou à privacidade do proprietário e familiares, posto que não se tratavam de moradores habituais.

Não ser verifica, a meu ver, qualquer lesividade na conduta a ponto de ser necessária a intervenção do Direito Penal, que deve ser a ultima ratio do sistema.

Como bem ressaltado na sentença, há instrumentos do Direito Civil suficientes a dar conta do caso, especificamente a utilização das ações possessórias (cito o interdito proibitório – art. 932 do CPC).

A mim, adepto que sou da concepção minimalista, preocupa a aplicação do Direito Penal como forma de resolução de conflitos com pouca relevância, até porque são conhecidos os nefastos efeitos do Processo Penal aos condenados, principalmente quando se trata de um jovem de apenas dezoito anos, sem qualquer antecedente, ainda que a pena não seja a de prisão.

Mesmo assim, carregará sobre seus ombros, por um bom tempo (art. 64, I, do CP – no tocante à reincidência; art. 94, CP, quanto à reabilitação), a condenação criminal, impossibilitando-o, por exemplo, de participar da vida política ou de prestar concurso público, dentre outras limitações.

A Criminologia Crítica de Alessandro Baratta bem expôs a questão, conforme demonstra Alexandre Morais da Rosa:

A Criminologia Crítica modificou o foco de abordagem. Ao invés de se centrar na figura/estereótipo do binômio do casal criminoso/crime, passou a olhar para aquém e além dele: percebeu que o indivíduo dito criminoso encontra-se necessariamente inserido a um contexto social, propenso portanto à estigmatização e etiquetamento. Observou o discurso da legitimação/exclusão dos indivíduos, percebendo a maneira pela qual o sistema penal é construído/forjado.

(...)

No Paradigma do labelling approach a realidade social passou a ter importância, abjurando a construção ideal dos sujeitos criminosos. Demonstrado ficou que todas as condutas são, em tese, passíveis de enquadramento penal, e o delinquente nada mais é do que o resultado desse processo de produção de tipos penais, acrescido da estigmatização”. (Sentença proferida nos autos n. 052.97.001299-5, da Comarca de Porto União – SC).

Retomando a tese da insignificância, a afastar a tipicidade material, observo que o próprio TJSC, com base em precedente do STF, já admitiu a sua aplicação para casos de pouca relevância:

"PROCESSUAL PENAL – DENÚNCIA REJEITADA – TENTATIVA DE FURTO – PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA – APLICABILIDADE – RECURSO DESPROVIDO – PRECEDENTES JURISPRUDENCIAIS.

"O sistema jurídico há de considerar a relevantíssima circunstância de que a privação da liberdade e a restrição de direitos do indivíduo somente se justificam quando estritamente necessárias à própria proteção das pessoas, da sociedade e de outros bens jurídicos que lhes sejam essenciais, notadamente naqueles casos em que os valores penalmente tutelados se exponham a dano, efetivo ou potencial, impregnado de significativa lesividade. O direito penal não se deve ocupar de condutas que produzam resultado, cujo desvalor - por não importar em lesão significativa a bens jurídicos relevantes - não represente, por isso mesmo, prejuízo importante, seja ao titular do bem jurídico tutelado, seja à integridade da própria ordem social" (STF – HC 84412/SP – rel. Min. Celso de Mello – j. 19.10.2004 – DJU 19.11.2004)." (Recurso Criminal n. 2004.037473-2, de Joinville. Relator: Des. Amaral e Silva.)

A intervenção do Direito Penal em casos como o que ora se apresenta não pode, pois, a meu ver, prosperar, por se tratar de ultima ratio do sistema. A conduta, ademais, é insignificante, afastando-se, assim, a tipicidade material.

Por fim, em que pese o contido na Súmula n. 231 do STJ, filio-me ao entendimento de que é possível a redução da pena aquém do mínimo legal quando presente alguma atenuante (no caso, a menoridade), pois de acordo com o artigo 65 do Código Penal, as circunstâncias ali arroladas sempre atenuam a pena.

O princípio constitucional da individualização da pena impõe essa conclusão (art. 5.º, XLVI, CR/88).

Neste sentido, colhe-se da jurisprudência:

"Atenuantes. Confissão espontânea e menoridade. Pena aquém do mínimo. Possibilidade. É imposição legal que as atenuantes da menoridade e da confissão espontânea sempre abrandem a pena. A dosimetria da pena pode ensejar pena inferior ao mínimo legal, em face do que dispõem os artigos 59 e 65 do CP, bem como da regra constitucional da individualização da pena. No caso, inexistente confissão espontânea, há o reconhecimento tão-só da atenuante da menoridade. Por maioria, deram parcial provimento ao apelo." (Apelação Criminal nº 70002973360, 8ª Câmara Criminal do TJRS, Rel. Des. Roque Miguel Fank. j. 27.02.2002)

De outro lado, não há previsão legal que impeça a redução abaixo do mínimo.

Eis o voto divergente.

Joinville, 30 de novembro de 2013.

Fernando de Castro Faria

Juiz


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