Ministério Público concorda com o recurso da defesa por violação do sistema acusatório

17/08/2015

Por redação- 16/08/2015

A Promotora de Justiça Ana Cláudia Bastos de Pinho, de Belém do Pará - PA, apresentou contrarrazões ao recurso de apelação formulado por C.A. de S., em face da sentença que o condenou para além do pedido formulado pelo Ministério Público em alegações finais. A manifestação busca recolocar o processo no ambiente acusatório, superando a visão autoritária em que o juiz pode condenar para além do pedido.

Segue na íntegra abaixo.
  PROMOTORIA DE JUSTIÇA CRIMINAL DE BELÉM

9º PROMOTOR DE JUSTIÇA

Excelentíssimo Senhor Juiz de Direito da 9ª Vara Penal da Comarca de Belém, PA

Contrarrazões em Apelação

Recorrente: C. A. de S.

Processo n. 0000121-81.2008-814.0401

O MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL, através da Promotora de Justiça, a final assinada, no uso de suas atribuições legais, vem, respeitosamente, perante Vossa Excelência, nos autos acima epigrafados, apresentar CONTRARRAZÕES AO RECURSO DE APELAÇÃO interposto pela Defesa, da decisão que condenou o apelante pela prática do crime descrito na Exordial Acusatória, requerendo seja a presente peça encaminhada à instância superior, para apreciação.

Deferimento.

Belém, 12 de agosto de 2015.

 

ANA CLAUDIA BASTOS DE PINHO

PROMOTORA DE JUSTIÇA

CONTRARRAZÕES AO RECURSO DE APELAÇÃO

Recorrente: C. A. de S.

Recorrido: Justiça Pública

Autos do Processo n. 0000121-81.2008-814.0401

9ª Vara Penal da Comarca de Belém-PA

EGRÉGIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO PARÁ

COLENDA CÂMARA

No dia 04 de julho de 2014, o réu C. A. de S., através de advogada habilitada, interpôs recurso de apelação contra sentença condenatória prolatada pelo juízo a quo, apresentando as respectivas razões, requerendo, em suma, a absolvição por insuficiência probatória ou a desclassificação da conduta para tentativa de furto.

O Ministério Público, mesmo discordando da fundamentação das razões recursais, entende que a Sentença merece ser modificada, alterando-se a imputação típica, conforme consta dos memoriais apresentados pelo Parquet, às fls. 287/290. Vejamos.

  • SÍNTESE DO PROCESSO

O réu C. A. de S. foi condenado pela prática do crime de roubo majorado pelo concurso de agentes e emprego de arma (art. 157, §2º, I e II do CP), cuja pena em concreto aplicada foi de 05 (cinco) anos de reclusão, conforme fls. 298-308.

O réu interpôs recurso de apelação contra a sentença condenatória, apresentando as respectivas razões, alegando os pontos acima já identificados.

2 - FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA

2.1. QUEBRA DO SISTEMA ACUSATÓRIO – VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DISPOSITIVO - O JUIZ NÃO PODE CONDENAR PARA ALÉM DA IMPUTAÇÃO DEDUZIDA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO

No caso vertente, o Ministério Público, por ocasião de seus memoriais apresentados às fls. 287/290, pediu a CONDENAÇÃO do recorrente pelo crime de ROUBO CIRCUNSTACIADO PELO CONCURSO DE PESSOAS, NA CONDIÇÃO DE PARTÍCIPE DE MENOR IMPORTÂNCIA.

Isto é, em relação à denúncia, os memoriais da Promotoria retiraram a causa de aumento de pena relativa ao emprego de arma (CP, art. 157, parágrafo segundo, inciso I) e adicionaram a causa de diminuição genérica de pena relativa à participação de menor importância (CP, art. 29, parágrafo primeiro).

A fundamentação de ambos os pedidos constam da peça ministerial de fls. 287/290.

Porém, o Magistrado, ao sentenciar, não se fixou na pretensão acusatória agora refinada pelos memoriais. Simplesmente condenou por imputação mais gravosa que aquela definida pelo Ministério Público, em suas alegações finais, depois de avaliar toda a instrução!

Dito de outra forma: a sentença foi além daquilo que definiu o Parquet, como pretensão acusatória! O juiz, portanto, acusou o Apelante por circunstâncias mais gravosas, as quais o próprio órgão de acusação entendeu não estarem presentes. E isso, definitivamente, não cabe, em um processo de garantias!

Como se sabe, o constituinte de 1988 fez uma clara opção pelo modelo de Estado Democrático de Direito e elevou, à categoria de fundamento da República Federativa do Brasil, a dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III).

A partir desse fundamento, a Carta Política posicionou-se ao lado dos direitos fundamentais, criando mecanismos de proteção dos direitos individuais e de realização dos direitos sociais, para garantir o cidadão contra o exercício irracional do poder do Estado e, mais ainda, para que fossem adotadas políticas públicas no sentido de minimizar as desigualdades sociais. Nesse sentido, é emblemático o vastíssimo rol constante do art. 5º, onde se encontram tutelados os direitos do homem, em todas as suas dimensões, inclusive na que tange à relação indivíduo x Estado, através do processo.

Pois bem. Diante desse perfil delineado pelo constituinte originário que, diga-se, não deflui somente do artigo 5º, mas permeia todo o texto constitucional, através da carga de valores que impregnam suas normas, força é convir que as regras que devem conduzir o processo penal precisam ser as mais democráticas possíveis, respeitando, em toda a sua inteireza, o pólo mais fraco dessa relação, qual seja, o acusado.

Assim, garantias como o contraditório, a ampla defesa, a presunção do estado de inocência, o favor rei, a inadmissibilidade de provas obtidas por meio ilícito, a titularidade da ação penal pública pelo Ministério Público, dentre outras, estão a demonstrar exatamente essa preocupação de que a extremidade mais frágil da corda, nessa tensão acusação (Estado)x defesa (réu), fique sempre protegida. Isto faz parte do princípio da isonomia: reconhecer as diferenças, para evitar as desigualdades. Ou seja, reconhecer que o réu é, de fato, o pólo mais fraco e garantir a ele mecanismos de equiparação e de possibilidade real de defesa. E foi exatamente isso que o constituinte fez.

O sistema acusatório – que delineia um modelo de processo penal garantista e democrático – é corolário desse sistema de valores acima exposto. Pelo princípio dispositivo (que funda o sistema acusatório), acusação, defesa e juiz possuem papéis definidos e inconfundíveis. Nesse jogo de equilíbrio, o Ministério Público é o titular exclusivo da pretensão acusatória (em casos de ação penal pública), a Defesa funciona dialeticamente como a antítese da acusação, sendo-lhe assegurados todos os mecanismos legítimos para fazer frente ao Ministério Público, e ao juiz é destinada a tarefa de decidir a causa, bem como as medidas cautelares, garantindo a regularidade do processo, respeitando sua maior característica, qual seja, a imparcialidade.

Em oposição ao modelo acusatório está o modelo inquisitivo (ou inquisitório), no qual o juiz possui o controle sobre a produção da prova, podendo determinar diligências, funcionando como um verdadeiro órgão de acusação. Não há, no modelo inquisitivo, garantia de imparcialidade do julgador nem eqüidistância em relação às partes.

Na precisa lição de LUIGI FERRAJOLI:

Pode-se chamar acusatório todo sistema processual que tem o juiz como um sujeito passivo rigidamente separado das partes e o julgamento como um debate paritário, iniciado pela acusação, à qual compete o ônus da prova, desenvolvida com a defesa mediante um contraditório público e oral e solucionado pelo juiz, com base em sua livre convicção (...) De todos os elementos constitutivos do modelo teórico acusatório, o mais importante, por ser estrutual e logicamente pressuposto de todos os outros, indubitavelmente é a separação entre juiz e acusação(...). Inversamente, chamarei inquisitório todo sistema processual em que o juiz procede de ofício à procura, à colheita e à avaliação das provas, produzindo um julgamento após uma instrução escrita e secreta, na qual são excluídos ou limitados o contraditório e os direitos da defesa” (In Direito e Razão – Teoria do garantismo penal. São Paulo: RT, 2002. P. 450 e ss.) (destaques nossos).

Apesar da Constituição Federal não fazer menção expressa à adoção do modelo acusatório de processo penal, essa conclusão deflui, necessariamente, da lógica dos valores traçados no texto fundamental, notadamente, da democracia e da dignidade da pessoa humana. A esse respeito, é de singular importância a conclusão do magistrado e professor GERALDO PRADO:

“Se aceitarmos que a norma constitucional que assegura ao Ministério Público a privatividade do exercício da ação penal pública, na forma da lei, a que garante a todos os acusados o devido processo legal, com ampla defesa e contraditório, além de lhes deferir, até o trânsito em julgado da sentença condenatória a presunção da inocência, e a que, aderindo a tudo, assegura o julgamento por juiz competente e imparcial, pois que se excluem as jurisdições de exceção, com a plenitude do que isso significa, são elementares do princípio acusatório, chegaremos à conclusão que, embora não o diga expressamente, a Constituição da República o adotou” (In Sistema acusatório – a conformidade constitucional das leis processuais penais. Rio deJaneiro: Lúmen Júris, 1999.P. 171) (destaques nossos).

Se a Constituição Federal, embora não de forma expressa, adotou o princípio acusatório e se a NÍTIDA SEPARAÇÃO ENTRE JUIZ E ACUSAÇÃO é característica primordial desse princípio, força é convir que NÃO PODERÁ O JUIZ CONDENAR O RÉU NA PENA MAIS GRAVOSA, QUANDO O PRÓPRIO MINISTÉRIO PÚBLICO PLEITEAR PENA MENOS GRAVOSA, pois, se assim o fizer, não estará o magistrado somente julgando, estará, indevidamente, acusando, o que é inadmissível num sistema constitucional que confere ao Ministério Público a titularidade exclusiva da ação penal pública (CR, art. 129, I).

Com efeito, é o Ministério Público quem, na ação penal pública, define o objeto da demanda, ao imputar ao acusado a prática de determinado injusto típico. Num processo acusatório, dialético, de partes, compete EXCLUSIVAMENTE ao Parquet formular a tese acusatória; à Defesa caberá refutar a tese, através da antítese; e, ao juiz, avaliar as duas posições e, de acordo com sua livre convicção, decidir por uma ou por outra (síntese). Cada qual possui o seu papel, devidamente traçado. Assim como o Ministério Público não pode julgar, o juiz não pode acusar. Essa é a lógica do sistema e a exigência constitucional de validade do processo.

Assim, não se pode olvidar da necessidade de correlação entre a peça acusatória e a sentença prolatada, fato que não ocorreu nos presentes autos, tendo em vista que o apelante foi denunciado por roubo majorado tentado e após foi condenado por roubo majorado consumado.

Em seu livro denominado Correlação entre acusação e sentença (Revista dos Tribunais, 2009), o Doutor em Direito Gustavo Badaró, assim se posiciona:

“A regra da correlação entre o fato imputado e o fato constante na sentença implica que o objeto do processo permaneça inalterado, durante todo o desenvolver do iter procedimental. Não pode haver alteração do objeto do processo, considerado em seus momentos extremos. Desde o momento inicial, com a acusação, até o seu término, com a sentença, o objeto do processo não pode, em regra, sofrer alterações.

O objeto do processo, veiculado já no momento inicial, com a acusação, deve estar presente de forma inalterada na sentença. Porém, se no curso do processo a instrução revelar a existência de fatos diversos, que alterem o objeto do processo, para que tais fatos possam ser considerados pelos juiz, é necessário respeitar determinadas regras que visam a evitar surpresas para a defesa, assegurar o respeito ao princípio do contraditório e, até mesmo, evitar que o juiz venha a julgar, quebrando o princípio da inércia da jurisdição.”

E conclui:

Em síntese, o juiz não pode condenar o acusado, mudando as circunstancias instrumentais, modais, temporais ou espaciais de execução do delito, sem dar-lhe a oportunidade de se defender da pratica de um delito diverso daquele imputado inicialmente, toda vez que tal mudança seja relevante em face da tese defensiva, causando surpresa ao imputado

Prossegue, ainda, o mesmo autor:

Toda violação da regra da correlação entre a acusação e sentença implica em um desrespeito ao princípio do contraditório. O desrespeito ao contraditório poderá trazer a violação do direito de defesa, quando prejudique as posições processuais do acusado, ou estará ferindo a inércia da jurisdição, com a correlativa exclusividade da ação penal conferida ao Ministério Público, quando o juiz age de ofício.

Em suma, sempre haverá violação ao contraditório, seja em suas implicações com a defesa ou com a acusação. O desrespeito a princípios tão fundamentais do direito processual, sem dúvida, implicará na ineficácia da sentença que violar a regra da correlação entre acusação e sentença.”

Assim, eventual manutenção da decisão a quo seria uma violação clara ao sistema acusatório de processo, definido pela Constituição da república. O juiz, insistindo, não pode condenar por fato mais grave do que aquele definido pela única instituição que – constitucionalmente - tem o dever de acusar: o Ministério Público.

2.2. PEDIDOS DA DEFESA DE ABSOLVIÇÃO POR INSUFICIÊNCIA PROBATÓRIA OU DESCLASSIFICAÇÃO PARA FURTO: DESCABIMENTO

O MP considera improcedentes esses pedidos da Defesa. Há provas suficientes da participação de menor importância do Apelante no crime de roubo. Tanto testemunhas, quanto a vítima viram o Acusado dirigir o veículo que deu fuga aos executores do roubo descrito nesses autos. Portanto, não há como sustentar insuficiência de provas, tampouco ocorrência apenas de furto.

      3 – PEDIDO Ante o exposto, o Ministério Público requer sejam acatadas, na íntegra, as presentes razões e, via de conseqüência, provido, PARCIALMENTE, o recurso de apelação interposto pela Defesa, para que seja fixada a imputação nos termos exatos descritos nos memoriais de fls. 287/290, isto é CONDENAÇÃO POR ROUBO MAJORADO PELO CONCURSO DE PESSOAS, NA CONDIÇÃO DE PARTÍCIPE DE MENOR IMPORTÂNCIA. Com isso, necessariamente, haverá alteração na quantidade de pena fixada. deferimento. Belém, PA, 12 de agosto de 2015.   ANA CLAUDIA BASTOS DE PINHO Promotora de Justiça
Imagem Ilustrativa do Post: No Evil To Be Seen// Foto de: David Goehring // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/carbonnyc/5186228351/ Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

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