Leve-me ao seu líder: Quem é a mão que comanda?

18/03/2019

Ela pegou um vaso para arremessar direto na cabeça dele. Um vaso que ganharam no casamento. Com assinatura de algum artista famoso, desses dinamarqueses que desenham luminárias. Era pesado. Devia ter quase 2 cm de espessura. Se o tivesse jogado, partiria a cabeça dele ao meio, sujaria seu tapete persa com o sangue de um momento desmedido, onde se tornaria uma assassina e ele, o bonzinho, nunca manipulador perverso das situações de estresse e discordância.

Devolveu as flores — com que ela mesma presenteava-se há anos — para o vaso, colocou-o delicadamente de volta sobre o aparador revestido de laca branca, que escolheram juntos quando pensavam em como seria a construção de um lar feliz. Voltou para o quarto, enquanto ele torcia o pescoço reajustando a gravata e batia a porta da frente a caminho do trabalho, como se nada tivesse acontecido. Ela, mais uma vez engoliu o choro, colocou a raiva repousada no leito, embaixo do edredom de plumas de ganso trazido das férias na Grécia e pensou que, por um triz, tudo aquilo não estaria manchado, todo o habitual silêncio do amanhecer, naquela casa de dois pavimentos com vista para o lago, não estaria invadido por gritos de dor e desespero. Uma manhã diferente, sem dúvidas. E como ela se sentiria? Melhor do que agora? Ou muito pior? Decerto que jamais feliz, como não poderia se sentir contendo todo aquele turbilhão dentro de si, virando bomba-relógio da própria saúde, vendo o Amor transmutar-se — que cruel! — em algo nada delicado, diferente de pacato, nada parecido com as fotos do ensaio pré-nupcial naquele campo toscano, cheio de girassóis e borboletas. Mudaram. Aqueles últimos anos teriam sido decisivos.

Ela, cada vez mais carente, dependente, diminuta, reduzida a uma presença um tanto incômoda, vagando de peignoir pela casa, por vezes embriagada de excelentes vinhos que já nem conseguia apreciar. Abria-os para matar a ansiedade e não depender de comprimidos para dormir. Ele, em casa apenas nos raros momentos de lazer, negociando a própria carne para manter o emprego, o status e o conforto nos tempos de crise. “Sem o dinheiro, não pagamos as contas”, repetia. “Sem meu esforço, você não passa férias na Europa”, aumentando a fúria da esposa e a inutilidade dela.

Ali, embaixo do caríssimo edredom de um branco impecável, adormeceu e teve sonhos confusos e desconexos. Sonhou com a própria perna quente, panturrilha vermelha, um princípio de trombose. Em meio à confusão, estava negociando valores de aulas de inglês, planos para começar a estudar a língua entediante e ter mais autonomia, viajar sozinha, fazer aquele curso de fotografia oferecido pela National Geographic, na África. Foi quando, na sala do curso de inglês dos sonhos desconexos, ele apareceu, sentado, folheando um jornal amassado. Era verde-merda, tinha olhos esbugalhados e um ar irritantemente superior. Exalava um cheiro de geladeira e, quando exitou aproximar-se, não tinha um tom amistoso. “Leve-me a seu líder”, disse arrogante. Despertou completamente suada. Tinha uma vaga lembrança da fisionomia pedante e burocrática da criatura. Ficou em dúvida se seria um ET. Boca seca, coração apertado. Estava prestes a entrar em pânico, conhecia os sintomas. Urgentemente, concentrou-se em sua respiração, a técnica era infalível para conter o ataque. 1,2,3 inspira. 4,5,6 expira. Repete, repete, repete. Cada vez mais pausadamente. Até desacelerar. Ela conhecia aquele ET! Aquela ordem, quase uma chacota. “Leve-me a seu líder”.

Desde que aquele ET entrara em sua vida, o líder era ele mesmo. Quem mandava. Quem ditava as ordens. Quem a comandava e reduzia suas vontades a sonhos e devaneios. Era ele quem trazia o dinheiro. Ela era apenas mais um vaso que entrou naquela casa no dia do casamento.

 

Karelayne de Assis Coelho Bezerra é Co-organizadora, co-autora do livro "Feminismos, Artes e Direitos das Humanas" - https://www.tirant.com/br/libro/feminismos-artes-e-direitos-das-humanas-aline-gostinski-9788594772541

  

 

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