Lembre o Caso Escher e a condenação do Brasil pela CIDH por interceptações telefônicas ilegais

18/04/2016

Por Redação - 18/04/2016

Em maio de 1999, um oficial da Polícia Militar do Paraná solicitou à juíza Elisabeth Khater a autorização para grampear linhas telefônicas de cooperativas de trabalhadores ligadas ao MST. A juíza autorizou a escuta imediatamente e durante 49 dias os telefonemas foram gravados, no entanto, a decisão foi realizada sem fundamentação e sem sequer notificar o Ministério Público sobre o referido requerimento. Por tais motivos a magistrada deixou de cumprir a Constituição Federal e a legislação brasileiras e ainda por ignorar a falta de competência da Polícia Militar para fazer investigação criminal contra civis. Durante 49 dias os telefonemas foram gravados.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA foi chamada a se manifestar sobre o caso das interceptações ilegais no caso que ficou conhecido como Escher e outros Vs Brasil, no qual condena o Brasil pelo uso de interceptações telefônicas ilegais em 1999 contra associações de trabalhadores rurais ligadas ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Paraná. Dessa forma, o Estado brasileiro foi considerado culpado pela instalação dos grampos, pela divulgação ilegal das gravações e pela impunidade dos responsáveis.

A partir das discussões recentes sobre interceptações telefônicas no Brasil, relembre o caso e confira a íntegra da decisão.

CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS CASO ESCHER E OUTROS VS. BRASIL SENTENÇA DE 20 DE NOVEMBRO DE 2009

(Interpretação da Sentença de Exceções Preliminares,Mérito, Reparações e Custas)

No caso Escher e outros, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (doravante “a Corte Interamericana”, “a Corte” ou “o Tribunal”), integrada pelos seguintes juízes:

Diego García-Sayán, Presidente em exercício; Sergio García Ramírez, Juiz; Manuel E. Ventura Robles, Juiz; Margarette May Macaulay, Juíza; e Rhadys Abreu Blondet, Juíza; presentes, ademais, Pablo Saavedra Alessandri, Secretário; e Emilia Segares Rodríguez, Secretária Adjunta;

conforme o artigo 67 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (doravante “a Convenção Americana” ou “a Convenção”) e o artigo 59 do Regulamento da Corte (doravante “o Regulamento”), resolve a demanda de interpretação da Sentença de exceções preliminares, mérito, reparações e custas proferida pelo Tribunal em 06 de julho de 2009 no presente caso (doravante “a Sentença”) interposta em 03 de novembro de 2009 pelos representantes das vítimas (doravante “os representantes”).

 I. INTRODUÇÃO DA DEMANDA DE INTERPRETAÇÃO E PROCEDIMENTO PERANTE A CORTE

1.Em 06 de julho de 2009, a Corte proferiu a Sentença, da qual foram notificadas as partes em 06 de agosto de 2009.

2.Em 03 de novembro de 2009, os representantes apresentaram uma demanda de interpretação, conforme os artigos 67 da Convenção e 59 do Regulamento, a qual “[se]refer[e] às violações aos artigos 8 e 25 da Convenção Americana” declaradas na Sentença. Solicitaram ao Tribunal que interpretasse o ponto resolutivo nono de tal Decisão e, especificamente, esclarecesse se o dever de investigar ali previsto se estendia: i) à investigação administrativa relativa à juíza que autorizou a interceptação telefônica; ii) à investigação administrativa referente aos policiais militares e ao ex-secretário de segurança pela interceptação e divulgação das conversas; e iii) ao processamento judicial dessas condutas, com a devida atribuição de responsabilidade penal.

3.Em 09 de novembro de 2009, conforme disposto no artigo 59.2 do Regulamento e seguindo instruções da Presidente do Tribunal, a Secretaria da Corte transmitiu uma cópia da demanda de interpretação à República Federativa do Brasil (doravante “o Estado” ou “o Brasil”) e à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (doravante “a Comissão Interamericana” ou “a Comissão”). Além disso, informou que, “devido à natureza e teor da demanda de interpretação”, a Comissão Interamericana e o Estado poderiam apresentar as alegações escritas que julgassem pertinentes até o dia 16 de novembro de 2009.

4.Em 16 de novembro de 2009, o Estado apresentou suas alegações escritas e solicitou ao Tribunal que declarasse inadmissível a demanda de interpretação. A seu juízo tratava-se de uma “tentativa [dos representantes] de obter alteração substancial do conteúdo da [S]entença [e] ampliar o escopo condenatório”. Subsidiariamente, o Brasil requereu que, se a demanda fosse admitida, o Tribunal a considerasse improcedente, uma vez que: i) não existia divergência alguma acerca do sentido ou alcance do ponto resolutivo nono da Sentença; e ii) a eventual alteração do conteúdo da Decisão implicaria a revisão dos fatos sobre os quais já existia coisa julgada material e a vulneração do princípio ne bis in idem.

5. Ainda em 16 de novembro de 2009, a Comissão apresentou suas alegações escritas sobre a demanda dos representantes e sustentou que a interpretação da Sentença era desnecessária, pois o alcance e o conteúdo da obrigação de investigar como medida de reparação estavam discriminados no parágrafo 247 da Sentença.

 II. COMPETÊNCIA E COMPOSIÇÃO DA CORTE

6. O artigo 67 da Convenção estabelece que:

“A sentença da Corte será definitiva e inapelável. Em caso de divergência sobre o sentido ou alcance da sentença, a Corte interpretá-la-á, a pedido de qualquer das partes, desde que o pedido seja apresentado dentro de noventa dias a partir da data da notificação da sentença.”

7.Consoante o artigo citado, a Corte é competente para interpretar suas decisões. Para realizar o exame da demanda de interpretação e resolver o que corresponda a esse respeito, o Tribunal deve conservar, se possível, a mesma composição que tinha ao ditar a Sentença respectiva, de acordo com o artigo 59.3 do Regulamento. Nesta ocasião, a Corte está integrada pelos juízes que ditaram a Sentença cuja interpretação foi solicitada pelos representantes, ressalvada a alteração mencionada.

III. ADMISSIBILIDADE

8. Cabe à Corte verificar se a demanda de interpretação cumpre os requisitos estabelecidos nas normas aplicáveis, a saber, o artigo 67 da Convenção, anteriormente citado, e o artigo 59 do Regulamento que dispõe, quanto à matéria em exame, que:

“1. O pedido de interpretação a que se refere o artigo 67 da Convenção poderá ser formulado em relação às sentenças de mérito ou de reparações e se apresentará na Secretaria da Corte, cabendo nela indicar com precisão as questões relativas ao sentido ou ao alcance da sentença cuja interpretação é solicitada. […] 4.O pedido de interpretação não exercerá efeito suspensivo sobre a execução da sentença. 5.A Corte determinará o procedimento a ser seguido e decidirá mediante sentença.”

9. Além disso, o artigo 29.3 do Regulamento estabelece que “[c]ontra as sentenças e resoluções da Corte não procede nenhum meio de impugnação”."

10. A Corte observa que os representantes interpuseram a demanda de interpretação no prazo estabelecido no artigo 67 da Convenção, uma vez que a mesma foi apresentada no dia 03 de novembro de 2009 e as partes foram notificadas da Sentença em 06 de agosto de 2009.

11. Ademais, tal como vem dispondo este Tribunal em sua jurisprudência constante, claramente fundada no ordenamento aplicável, uma demanda de interpretação de sentença não deve ser utilizada como meio de impugnação da decisão cuja interpretação se solicita.

Essa demanda tem como objeto, exclusivamente, deslindar o sentido de uma decisão quando alguma das partes sustenta que o texto de seus pontos resolutivos ou de suas considerações carece de claridade ou precisão, sempre e quando essas considerações incidam na mencionada parte resolutiva. Portanto, não se pode pedir a modificação ou anulação da sentença respectiva através de uma demanda de interpretação4. Da mesma maneira, por essa via, tampouco se pode intentar que se amplie o alcance de uma medida de reparação ordenada oportunamente.

12. Em razão disso, a Corte tem estabelecido que a demanda de interpretação de sentença não pode abordar questões de fato e de direito que já foram alegadas em sua oportunidade processual e sobre as quais o Tribunal tenha adotado uma decisão5.

13. A Corte procederá à análise da demanda de interpretação apresentada pelos representantes e, conforme o caso, ao esclarecimento do alcance do ponto resolutivo nono da Sentença. Para tanto, examinará as questões alegadas pelos representantes, bem como as observações da Comissão Interamericana e do Estado.

IV. ALCANCE DO PONTO RESOLUTIVO NONO DA SENTENÇA

14. Os representantes solicitaram à Corte Interamericana que interpretasse o ponto resolutivo nono da Sentença, o qual estabelece que “[o] Estado deve investigar os fatos que geraram as violações do [...] caso, nos termos do parágrafo 247 da [...] Sentença” com o fim de esclarecer o seguinte:

“a) Considerando que a Corte, nos parágrafos 208 e 209 [da Sentença], afirmou que o Estado descumpriu seu dever de motivar a decisão quanto à responsabilidade administrativa da juíza Eli[s]abeth Khater e por isso violou as garantias judiciais, se o determinado pelo Tribunal no [ponto resolutivo nono] da [S]entença aplica-se ao procedimento em questão; b) Considerando que a Corte, no parágrafo 210 [da Sentença], afirmou inexistirem procedimentos administrativos para analisar a responsabilidade administrativa dos policiais militares e [do] ex-secretário [de Segurança] pela interceptação e divulgação das conversas telefônicas; se o determinado pelo Tribunal no [ponto resolutivo nono] da [S]entença aplica-se aos procedimentos administrativos em questão; c) Por fim, se o determinado pela Corte no [ponto resolutivo nono] da [S]entença refere-se não somente às investigações mencionadas, mas também [a]o devido processamento no âmbito judicial, com as devidas responsabilizações penais.”

15. A Comissão afirmou que “os parágrafos [204, 205 e 247] estabelecem o alcance do ponto resolutivo no[no] no que se refere à falta de investigação penal pela divulgação das gravações que continham conversas telefônicas e que gerou a subsequente obrigação internacional de investigar como medida de reparação, apesar deste não ser o único fato que gerou violações no presente caso”. Manifestou que a referência explícita ao parágrafo 247 estabelece o alcance e o conteúdo da obrigação de investigar ordenada como medida de reparação, razão pela qual considerou desnecessária a interpretação da Sentença.

16. O Estado solicitou à Corte que declarasse inadmissível a demanda por não cumprir com os requisitos previstos nos artigos 67 da Convenção e 29.3 e 59.1 do Regulamento.

Afirmou que se trata de uma tentativa dos representantes de reformar o conteúdo da Sentença e a admissão da demanda poderia conduzir ao estabelecimento de três novas obrigações para o Estado. Adicionalmente, quanto ao mérito da demanda, afirmou que não há nenhuma imprecisão ou divergência na Decisão, haja visto que o ponto resolutivo nono não deixa dúvidas quanto ao sentido ou alcance da obrigação aí reconhecida. Alegou que dito ponto resolutivo relaciona o conteúdo da obrigação ao parágrafo 247, o qual estabelece os fatos que devem ser investigados e determina que, com relação às demais violações encontradas, a Sentença, sua publicação e a indenização pelos danos imateriais eram medidas suficientes de reparação. Adicionalmente, ressaltou que a eventual alteração do conteúdo da Sentença, no sentido de ordenar a investigação dos fatos mencionados em seus parágrafos 208, 209 e 210, levaria o Estado a incorrer em bis in idem. Isso em virtude de que “a juíza [...] que autorizou as gravações (referente aos parágrafos 208 e 209 da Sentença), o ex-Secretário de segurança e os policiais (referente ao parágrafo 210 da Sentença) foram devidamente processados judicialmente[, existindo] coisa julgada material” a seu respeito. Pelo anterior, concluiu que a demanda deve ser considerada improcedente pela Corte.

17. O Tribunal considera que o alcance e o conteúdo do ponto resolutivo nono da Sentença resultam evidentes. Inobstante, a fim de esclarecer qualquer dúvida que eventualmente possa existir a esse respeito, procederá a responder às perguntas formuladas pelos representantes e a realizar a interpretação solicitada do dito ponto resolutivo e dos parágrafos considerativos correspondentes, nos termos do artigo 67 da Convenção Americana e do artigo 59 do Regulamento.

18. Em primeiro lugar, a Corte Interamericana recorda que em sua decisão de 06 de julho de 2009 encontrou violações aos direitos às garantias e à proteção judiciais reconhecidos nos artigos 8.1 e 25.1 da Convenção Americana, “em relação aos processos e procedimentos penais e administrativos” indicados nos parágrafos 204, 205 e 209 da Sentença. Por conseguinte, no Capítulo XI da Decisão, correspondente às reparações, sob o título C)iii) “Dever de investigar, julgar e, se for o caso, sancionar os responsáveis pelas violações aos direitos humanos”, o Tribunal estabeleceu no parágrafo 247 a obrigação de investigar determinadas condutas, conclusão que se reflete na parte dispositiva da Sentença, em seu ponto resolutivo nono.

19. O ponto resolutivo nono da Sentença estabelece que o Estado “deve investigar os fatos que geraram as violações do [...] caso, nos termos do parágrafo 247 da [...]Sentença”. Da sua leitura, depreende-se que o Tribunal considerou que o dever de investigar resultava uma medida de reparação pertinente apenas para aquelas violações declaradas pelo Tribunal na Sentença e identificadas no parágrafo 247 da Decisão.

20. A seu turno, o parágrafo 247 da Sentença resolve que:

“No presente caso, a Corte entendeu como comprovada a violação aos artigos 8 e 25 no concernente à investigação penal quanto à divulgação das conversas telefônicas, movida contra o ex-secretário de segurança (supra par. 204). Da mesma maneira, o Tribunal entendeu estar provado que o Estado não investigou a entrega e divulgação das fitas com as conversas gravadas a um meio de comunicação, nem estabeleceu as responsabilidades penais por esse fato (supra par. 205). No tocante à entrega e divulgação das fitas com as conversas gravadas, em conformidade com os critérios estabelecidos na jurisprudência do Tribunal, o Estado deve investigar os fatos e atuar em consequência. Ademais, com relação às demais violações encontradas, a Corte considera que esta Sentença, sua publicação e a indenização por danos imateriais, são medidas suficientes de reparação."

21. Igualmente, da mera leitura desse parágrafo, depreendem-se claramente os fatos sobre os quais recai o dever de investigar do Estado. Em primeiro lugar, o parágrafo 247 da Sentença destaca expressamente as condutas que devem ser objeto de investigação e, se esta for sua consequência, da ação penal correspondente: a) “[a] divulgação das conversas telefônicas [...] contra o ex-secretário de segurança”, que consta na primeira oração do parágrafo; e b) “a entrega e divulgação das fitas com as conversas gravadas a um meio de comunicação”, que aparece em sua segunda oração. Ademais, a fim de não deixar margem a qualquer eventual interpretação errônea, nesse mesmo parágrafo faz-se remissão explícita aos parágrafos 204 e 205 da Sentença, nos quais constam com clareza aqueles fatos, os quais devem ser investigados. Além dessas precisões, o mesmo parágrafo 247 esclarece de forma manifesta que “com relação às demais violações encontradas”, as reparações que o Tribunal considerou pertinentes foram a emissão da própria Sentença, sua publicação e a indenização pelos danos imateriais. Ante o exposto, a Corte Interamericana considera que a mera interpretação literal do ponto resolutivo nono, lido em conjunto com o parágrafo aí indicado, permite determinar o conteúdo e o alcance do ponto resolutivo em comento e a consequente obrigação estatal.

V. PONTOS RESOLUTIVOS

22. Ante o exposto, A CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS conforme o artigo 67 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e os artigos 29.3 e 59 do Regulamento,

DECIDE:

Por unanimidade,

  1. Declarar admissível a demanda de interpretação da Sentença de exceções preliminares, mérito, reparações e custas no presente caso, interposta pelos representantes das vítimas nos termos do parágrafo 17 da presente Sentença de Interpretação.
  2. Determinar o sentido e o alcance do disposto na Sentença de exceções preliminares, mérito, reparações e custas, nos termos dos parágrafos 18 a 21 da presente Sentença de Interpretação.
  3. Requerer à Secretaria da Corte Interamericana de Direitos Humanos que notifique a presente Sentença de Interpretação ao Estado, aos representantes das vítimas e à Comissão Interamericana.

Redigida em espanhol, português e inglês, fazendo fé os textos em espanhol e em português, em São José, Costa Rica, em 20 de novembro de 2009.


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