Lançamento da 6ª edição do Manual de Processo Penal, de André Nicolitt

24/03/2016

Por Redação - 24/03/2016

O Juiz de Direito André Nicolitt lançou recentemente a 6ª edição do Manual de Processo Penal, o qual possui novidades de conteúdos. Entre as inclusões realizadas na obra, o autor prestigia o seu leitor com seção específica para delação premiada.

Confira fragmento da crítica realizada à delação premiada.

Colaboração Premiada pode ser tortura.

Já dedicamos alguma consideração ao instituto quando tratamos da delação premiada na lei de lavagem de dinheiro em nosso Manual de Processo Penal, (8.2.2.2.4)[1]. No domínio da Lei 12.850/2013, que padece das mesmas críticas já lançadas anteriormente, ganhou detalhamento significativo, comparado as previsões anteriores, como veremos.

Antes, porém, há que se destacar que o instituto vem ganhando destaque na mídia, como técnica investigatória, mormente diante de espetáculos investigatórios como a famosa “operação lava jato”. Diante de tal cenário, impõem-se algumas reflexões éticas e históricas sobre o instituto.

Primeiramente, as notícias remotas que temos sobre delação premiada estão ligadas à história do cristianismo, quando Judas delatou Cristo por algumas moedas. Na história do Brasil, a inconfidência mineira é outro exemplo da delação premiada, quando Tiradentes foi investigado e processado a partir da delação premiada de Sivério dos Reis. A legislação da época, as Ordenações Filipinas, davam tom ao instituto muito semelhante à legislação atual, vale transcrever:

Livro V, Título 6, Parágrafo 12, das Ordenações Filipinas,: “E quanto ao que fizer conselho e confederação contra o Rey, se logo sem algum spaço, e antes que per outrem seja descoberto, elle o descobrir, merece perdão. E ainda por isso lhe deve ser feita mercê, segundo o caso merecer, se elle não foi o principal tratador desseconselho e confederação. E não o descobrindo logo, se o descobrir depois per spaço de tempo, antes que o Rey seja disso sabedor, nem feita obra por isso, ainda deve ser perdoado, sem outra mercê. E em todo o caso que descobrir o tal conselho, sendo já per outrem descoberto, ou posto em ordem para se descobrir, será havido por commettedor do crime de Lesa Magestade, sem ser relevado da pena, que por isso merecer, pois o revelou em tempo, que o Rey já sabia, ou stava de maneira para o não poder deixar saber”

Nas Ordenações Filipinas também estava prevista e legalizada a prática de tortura em larga escala.

A delação foi muito utilizada também no período da ditatura militar no Brasil, não como instituto jurídico, mas como forma de se livrar da tortura comum aquele regime autoritário.

Vê-se desta maneira, que a delação premiada, assim como a tortura, é típica prática de Estados autoritários, de forma que não há como sustentar sua admissão em um molde de processo penal democrático.

Alerta o filósofo da USP, Rafael Queiroz[2] que os aspectos éticos da delação premiada estão na ordem do dia e dá conta que um integrante da Comissão de Direitos Humanos da OAB, a compara à tortura: “a prisão amolece o investigado e o faz falar”.

Élio Gaspari, em artigo de 01/03 na Folha de S. Paulo rejeita a comparação afirmando que tortura é ilegal enquanto a prisão preventiva seguida de delação, porque ambas previstas em lei, seria legal e, portanto, não pode ser tortura.

Rafael Queiroz assevera, a delação premiada está mesmo longe de ser a prática oculta e nefasta da ditadura, delação premiada não se confunde com “pau de arara”. Prossegue o filósofo, o depoente é filmado, toma água, vai ao banheiro, pausa para almoçar e vai embora inteiro. E o Brasil não é mais uma ditadura. Mas essas constatações não dispensam a polêmica. O debate sobre a tortura no mundo hoje se volta justamente àquelas práticas que, embora revestidas de legalidade e praticadas nas democracias, diferem da velha tortura não em substância mas apenas em grau, quando muito.[3]

Gaspari falha na sua análise. De fato, a delação por si só está prevista em lei, assim como a prisão preventiva. Ocorre que a associação dos dois institutos em tudo se equivale a tortura, vejamos.

A Lei 9455/1997 prevê o crime de tortura nos seguintes termos:

Art. 1.º Constitui crime de tortura:

I – constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental:

a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa;

A convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes, ratificada pelo Brasil em 28/09/1989, define tortura como:

(...) qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira pessoa, a informações ou confissões;

Nota-se, desta forma que a prisão preventiva, sem sombra de dúvida consiste em promover sofrimento físico e mental ao ser humano. Basta pensar na hipótese de se passar um dia em uma cela superlotada, infecta e insalubre como as que conhecemos no sistema penitenciário Brasileiro. Ainda que tivéssemos um sistema prisional bem estruturado, a clausura por si só já é um sofrimento físico e mental, com maior razão em um sistema marcado pela insalubridade, falta de higiene, superlotação, promiscuidade e toda sorte de abuso e ilegalidade que existe na realidade prisional brasileira.

Todavia, a prisão preventiva, por si só não pode ser considerada uma tortura quando tem por escopo, exclusivamente, a prevenção do processo, seja para garantir a instrução, seja para evitar o risco de fuga. No entanto, a associação prisão preventiva e delação, a transforma em verdadeira tortura, já que dá a ela a nítida função de extrair do investigado informações, subsumindo-se nas elementares do tipo de tortura, bem como na definição esculpida na Convenção Contra a Tortura.

Por outro lado, a lei ao prever a delação premiada estabelece como condição a voluntariedade (art. 4.º da Lei 12.850/2013), sendo esta condição incompatível com a prisão. A toda evidência, estando o investigado preso, a delação não será voluntária, será sim um ato de fuga de um sofrimento insuportável. A delação no contexto da prisão preventiva transforma esta em verdadeira tortura, sendo, portanto, invalida e inadmissível.

Com efeito, para nós, a delação premiada além de ser um instituto incompatível com o processo penal democrático, sendo ela precedida da prisão preventiva, não tem validade por não preencher a condição legal do art. 4.º da lei 12.850/2013, ou seja, não é voluntária. A delação precedida de prisão preventiva é prova ilícita, logo inadmissível por força da Constituição.

Por óbvio, em uma sociedade ávida por justiçamento, os resultados obtidos através da delação premiada faz reunir entorno do instituto, uma legião de admiradores e entusiastas. Porém, aquele que está efetivamente comprometido com a construção de um Estado Democrático de Direito não pode iludir-se com uma técnica através da qual os fins justificam os meios. O Estado não pode fazer pacto com criminosos sem se igualar a eles.

Após as premissas acima, cumpre elaborar breve análise sobre o detalhamento legal do instituto.

Dispõe o art. 4.º que o juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, desde que dessa colaboração advenha um ou mais resultados elencados, a saber: “I – a identificação de coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações penais por eles praticadas; II – a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa; III – a prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da organização criminosa; IV – a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização criminosa; V – a localização de eventual vítima com a sua integridade física preservada”.

Ao teor do § 1.º do art. 4.º da Lei, a decisão de concessão deve considerar, além da eficácia da colaboração, aspectos subjetivos e objetivos, como a personalidade do colaborador, a natureza, as circunstâncias, a gravidade e a repercussão social do fato criminoso. No que se refere aos aspectos subjetivos, lembramos sempre o risco de aproximação com um direito penal do autor, além das análises superficiais e estigmatizantes que podem decorrer desta expressão vaga e imprecisa.

No § 2.º do referido dispositivo, encontramos, talvez uma das maiores excrescências da Lei. Trata-se da previsão de aplicação do art. 28 do CPP para a hipótese de oferecimento do perdão judicial.

Na redação do dispositivo em comento diz-se que considerando a relevância da colaboração prestada, o Ministério Público, a qualquer tempo, e o delegado de polícia, nos autos do inquérito policial, com a manifestação do Ministério Público, poderão requerer ou representar ao juiz pela concessão de perdão judicial ao colaborador, ainda que esse benefício não tenha sido previsto na proposta inicial, prevendo, ao final, possibilidade da incidência do art. 28 do CPP que prevê, por sua vez, a remeça ao Procurador-Geral de Justiça diante da discordância do juiz em relação ao requerimento de arquivamento do inquérito policial.

Então se indaga: caso o Ministério Público não requeira o perdão o juiz poderia remeter os autos ao Procurador-Geral de Justiça na forma do art. 28 do CPP? Em tal hipótese, insistindo o Procurador-Geral de Justiça que não é caso de oferecimento, o indiciado ou acusado não teria a tutela de seu direito ao perdão judicial, pois tal decisão, nos termos do art. 28 do CPP ficaria exclusivamente no âmbito do Ministério Público?

Outra indagação: requerido o perdão pelo Ministério Público, discordando o juiz, seria hipótese de remeter ao Procurador-Geral de Justiça nos termos do art. 28 do CPP? E, caso insistindo o Procurador-Geral de Justiça na hipótese do perdão, o juiz estaria adstrito a aplicá-lo?

Em outros termos, quando poderia incidir o art. 28 do CPP? Na hipótese de não requerimento do perdão judicial ou na hipótese de requerimento do perdão? O fato é que em ambos os casos, o art. 28 do CPP seria inaplicável, por violar a regra do acesso à justiça (art. 5.º, XXXV, da CF/1988). A análise sobre a ocorrência de hipótese de incidência do perdão judicial será sempre do juiz. Este deve ter a ultima palavra sobre este tema, senão o perdão não seria judicial, pois a incidência do art. 28 do CPP o transformaria em um perdão ministerial, vez que a ultima palavra seria, não do juiz, mas do Ministério Público.

Com efeito, a parte final do referido parágrafo é inconstitucional, por violar o acesso à justiça e o monopólio da jurisdição.

Já o § 3.º dispõe, em redação confusa, que o prazo para oferecimento de denúncia (sic) relativos ao colaborador, poderá ser suspenso por até 6 (seis) meses, prorrogáveis por igual período, até que sejam cumpridas as medidas de colaboração. Igualmente, poderá ser suspenso o processo e, em ambos os casos, suspende-se o respectivo prazo prescricional.

Além do perdão, (§ 4.º), a colaboração poderá ser premiada através do não oferecimento da denúncia por parte do Ministério Público, desde que o colaborador não seja o líder da organização e de que seja o primeiro a prestar a colaboração.

Em caso de colaboração posterior a sentença (§ 5.º) a pena poderá ser reduzida até a metade ou será admitida a progressão de regime ainda que ausentes os requisitos objetivos.

Importante preocupação com o sistema acusatório demonstrou o § 6.º, dispondo que o juiz não participará das negociações realizadas entre as partes para a formalização do acordo de colaboração, o que será de atribuição do delegado de polícia, intervindo o investigado e o defensor, com a manifestação do Ministério Público, ou, conforme o caso, entre o Ministério Público e o investigado ou acusado e seu defensor.

O acordo será homologado pelo juiz (§ 7.º) e seu termo deve estar acompanhado das declarações do colaborador e de cópia da investigação. Na decisão, o juiz deverá verificar sua regularidade, legalidade e voluntariedade, podendo para este fim, sigilosamente, ouvir o colaborador, na presença de seu defensor. A não homologação deverá ser fundamentada (§ 8.º) no não atendimento aos requisitos legais, ou na inadequação ao caso concreto.

O § 10 do dispositivo em exame apresenta grave problema ao dispor que “as partes” podem retratar-se da proposta. Que o colaborador possa se retratar, não há dúvidas, mas poderia o Ministério Público ou o Delegado, se retratarem após obterem as informações? O pior é a nebulosidade no que se refere às consequências da retratação. Dispõe a lei que em tal caso as provas autoincriminatórias produzidas pelo colaborador não poderão ser utilizadas exclusivamente em seu desfavor. O que quer dizer isso? Se forem utilizadas em desfavor de outros, inclusivamente, poderiam lhe autoincriminar? Parece que o redator esqueceu-se que autoincriminatórias só podem se referir exclusivamente ao colaborador. Mas ainda persiste uma omissão. As informações ou provas oriundas da colaboração retratada por uma das partes não pode ser usada contra o colaborador, mas pode ser usada contra os outros agentes? Nos parece que não.

A colaboração não homologada ou retratada não pode surtir qualquer efeito, não pode ter valor probatório. Em outros termos, as informações prestadas anteriormente devem ser desconsideradas para todos os agentes, principalmente em razão da retratação não ser faculdade exclusiva do colaborador, mas também do próprio Estado, o que poderia gerar um verdadeiro calote processual do Estado.

No art. 5.º a lei prevê direitos do colaborador, como usufruir de medidas proteção, preservação do nome e da identidade, cumprir pena em estabelecimento diverso etc.

No termo do acordo (art. 6.º) deve constar o relato da colaboração e seus possíveis resultados; as condições da proposta, a declaração de aceite do colaborador e seu defensor; as assinaturas dos acordantes (Ministério Público, Delegado, colaborador e defensor) e a especificação das medidas de proteção.

Note-se que a ampla defesa, a nosso sentir exige intervenção da autodefesa e da defesa técnica.

A lei vela pelo sigilo, porém, em harmonia com a Súmula Vinculante 14 do STF, dispõe que o acesso aos autos será restrito ao juiz, ao Ministério Público e ao delegado de polícia, como forma de garantir o êxito das investigações, assegurando-se ao defensor, no interesse do representado, amplo acesso aos elementos de prova que digam respeito ao exercício do direito de defesa, devidamente precedido de autorização judicial, ressalvados os referentes às diligências em andamento. Em todo o caso, recebida a denúncia, o acordo de colaboração deixa de ser sigiloso (§ 3.º do art. 7.º).

Por fim, cabe dizer que embora este detalhamento procedimental seja previsto para os fatos que envolvam organização criminosa, nada impede que tais procedimentos possam ser aplicados para a delação premiada prevista em outros diplomas que carecem de regramento detalhado.


Notas e Referências:

[1] NICOLITT, André. Manual de Processo Penal, São Paulo: Revista dos Tribunais, 6ª edição, 20016.

[2]  QUEIROZ, Rafael Mafeil Rabelo. Delação premiada, tortura e legalidade. In: http://jota.info/delacao-premiada-tortura-e-legalidade, em 04.01.2016.

[3] Idem.


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André Nicolitt é Mestre, Doutor em Direito pela Universidade Católica Portuguesa, professor da Universidade Federal Fluminense e da EMERJ, Juiz de direito – TJRJ.      

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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