Por Redação - 06/06/2017
O Juízo da Sexta Vara Cível e Empresarial de Belém (PA) autorizou a alteração do nome e do sexo no registro de nascimento de uma mulher transgênero que, embora não tivesse intenção de realizar a cirurgia de troca de sexo, sofria constrangimentos com o uso do nome atribuído a homens e com a anotação em seu registro de que seu sexo era masculino
Na decisão exarada nos autos do processo n. 0077118-02.2016.8.14.0301, o Juízo observou que "não é o registro, por si e em si, que deve ser preservado. O registro civil não é o plano de vida da pessoa registrada. O ser humano vale muito mais que uma folha do livro "A" de um Cartório. Os valores a serem preservados são a liberdade, a igualdade e a dignidade, o que se fará no caso em exame não se negando à autora o direito de viver o seu projeto individual de felicidade".
Leia a íntegra da sentença:
Vistos etc.
Versam os presentes autos sobre AÇÃO DE RETIFICAÇÃO DE REGISTRO CIVIL proposta por ____, brasileira, estudante, portadora do RG ____ e CPF ____, nascida no dia ____ em ____, filha de ____, residente e domiciliada ____.
A requerente informa que seus órgãos sexuais não condizem com a sua autoimagem, pois desde sua infância sempre se identificou com o gênero feminino e ao longo de sua vida tem agido a partir dessa identificação.
Por isso, o uso de nome atribuído a homens, mais a anotação em seu registro de nascimento de que seu sexo é masculino, lhe causa enorme sofrimento, especialmente pela perplexidade e preconceito com que as pessoas recebem essa informação, pois sua aparência é tipicamente feminina.
Informa também que “não tem intenção alguma de realizar cirurgia de troca de sexo, mas apenas e tão somente alterar seu prenome e sexo no registro civil”, fls. 04, e ao final pede a retificação de seu registro de nascimento para que passe a se chamar SUÉLLY... e seu sexo feminino.
Com a inicial apresentou os documentos de fls. 09/12 e, a pedido do Ministério Público, fls. 14, os documentos de fls. 17/24 e 27/29.
Em audiência de justificação, fls. 38/38 verso, a autora reafirmou o intento de retificar os dados relativos ao seu nome e sexo.
Indo os autos com vistas ao Ministério Público, este se manifestou às fls. 41/42 dizendo que:
“O MP requereu diligências às fls. 14, as quais foram devidamente cumpridas.
No entanto, a partir da análise da documentação requerida, foram constatadas duas pendências financeiras em nome do requerente, conforme demonstra o documento de fls. 22.
Logo, mostra-se temerário, ao menos no presente momento, o deferimento da pretensão autoral, uma vez que a alteração solicitada pode causar prejuízo a terceiro e à administração da justiça.
Ainda que seu número do Cadastro de Pessoas físicas se mantenha, a alteração do nome é excepcional, bem como do gênero, e poderá acarretar dificuldade de individualização do autor perante a Justiça, sociedade e credores, consideradas dívidas contraídas em seu nome.
Diante do exposto, o MP se manifesta no sentido de que o processo seja suspenso, com a devida aquiescência da parte autora, até que se resolva sua situação financeira, em homenagem ao princípio da segurança jurídica, com fulcro do art. 313, II, § 4º do CPC/15”.
Após a manifestação do Ministério Público, a mim vieram os autos conclusos para sentença.
RELATEI. DECIDO.
Inicialmente, quanto ao requerimento do Ministério Público, registro que o documento de fls. 22 refere-se a pendências financeiras, donde desde logo se pode dizer que a mudança de nome da autora não prejudica direitos de terceiros, uma vez que o que realmente importa para fins de cobrança de dívidas, especialmente as que são inscritas em cadastros de inadimplentes, é o número do CPF e não o nome do devedor.
Tanto é assim, que é perfeitamente possível a qualquer pessoa acrescentar ou suprimir apelidos de família do marido/mulher quando se casa ou se divorcia, independentemente de possuir dívidas com terceiros.
Ademais, o pedido da autora trata justamente da dificuldade que ela encontra para ser identificada perante toda sociedade, pois a divergência entre a identidade física e a identidade documental gera inúmeros incidentes (e quem a viu pode bem entender o motivo), os quais a mesma pretende eliminar, facilitando, assim, sua identificação social.
Por isso, indefiro o requerimento do Ministério Público.
Quanto ao mérito, a única dúvida que tive quanto ao pedido da autora é em relação ao nome que ela pretende adotar. Ao ler a inicial, entendi que ela queria se chamar Suelly (sueLLY), mas em audiência ela esclareceu que a sílaba tônica é a vogal “e” (suElly). Disso resulta um substantivo próprio parecido com Suelem, só que no final o som é da vogal "i" e não "em".
Somente os hiatos “i” e “u” são acentuados, por isso talvez estejamos diante de um “problema para a grafia” semelhante ao que Galvão, Pepeu Gomes e Moraes Moreira descreveram na música “Ao Poeta”[1], mas a autora informou que isso não era problema, porque “a forma como é chamada tanto faz, pois o que realmente importa é que não seja identificada com o gênero masculino”, fls. 38.
Essa afirmação, traduzindo o sentimento da autora, expõe exatamente o que se está discutindo nestes autos: de um lado, o “planejamento totalitário das sociedades, pela neutralização da diversidade, como decorrência de uma simplificação antropológica”[2] e de outro a necessidade de que se reconheça que os processos de subjetivação que associam o sexo biológico a gênero são instrumentos violadores de direitos sexuais e humanos.
De fato. A partir de Heidegger e Kant se pode dizer que o ôntico diz respeito ao ente, ao imanente, ao fenomênico, ou seja, às coisas que todo mundo vê.
O ontológico, dizendo respeito ao que está por trás e além do fenomênico, ultrapassa o ôntico, que é sempre constituído pelo senso comum.
Dito isso, registro que, segundo a certidão de nascimento de fls. 11, a autora é, como prefere João Ubaldo Ribeiro, um “homem macho”[3].
Porém, como todo documento ou texto, ou tese – ou seja o que for que pretenda definir uma pessoa –, a certidão de nascimento é incapaz de alcançar o que há de ontológico em um indivíduo. Registros de nascimento são ônticos.
E é a especificidade de cada pessoa, aquilo que torna alguém único e irrepetível, que é relevante para o direito. Aliás, nossa Constituição considera que a dignidade da pessoa humana é o valor máximo a ser tutelado, pois sem isso não seremos uma sociedade livre, justa e solidária e não há dignidade sem igualdade, nem igualdade sem liberdade, nem liberdade onde se tenta eliminar ou negar direitos às expressões sexuais e/ou de gênero que escapem do modelo de heteronormatividade.
Sob esse enfoque, qual é, então, a dignidade humana que a Constituição tutela? A ôntica ou a ontológica? Os dados que se encontram no art. 54 da Lei de Registros Públicos ou o ser humano que se pretendeu classificar através deles?
E essa tutela, diz respeito a que? Será uma tutela parnasiana, que reduz a “fôrmas a forma”[4]? Será o Direito apenas “a garantia do exercício da possibilidade”[5]?
Tenho muitas ressalvas em relação a decidir algo que não esteja previamente escrito em lei. Careço de bulas e precedentes para sentir que não retiro os fundamentos de uma sentença do meu achismo, ou do meu ponto de vista, ou da vista de um ponto.
Porém, embora a Lei de Registros Públicos não preveja expressamente a possibilidade de que os dados constantes do registro civil sejam alterados para contemplar questões de gênero, se quero falar em dignidade, tenho que reconhecer que o registro de nascimento da autora, por impingir a ela uma série de situações constrangedoras, tornou-se um instrumento de violação aos direitos humanos dos quais ela é titular. Isso tem que cessar.
Para tanto, o silêncio da norma não pode servir de escudo para o indeferimento do pedido. É que para a Lei de Registros Públicos a heterossexualidade é obrigatória, de modo que quem nasce com o sexo biológico macho deve se portar de acordo com os padrões socioculturais através dos quais definimos o que é coisa de homem, logo o gênero masculino. Idêntico é o tratamento dessa lei a quem nasce com o sexo biológico fêmea. Qualquer pessoa que escape dessa determinação não será reconhecida por ela. A Lei de Registros Públicos é ôntica.
No Poder Judiciário, com idas e voltas, se tem enxergado além da lógica legal ortodoxa, mas algumas decisões favoráveis à alteração se escoram em laudos médicos atestando disforia de gênero. Outras pretendem que somente nos casos em que é feita cirurgia de transgenitalização é possível determinar a alteração dos dados do registro de nascimento.
Os dois casos, no fundo, refletem a mesmíssima situação. Acredita-se que a ciência médica-biológica é capaz de legitimar as construções sócio-culturais de gênero a partir de um sistema que classifica, diagnostica e patologiza a sexualidade. Lombroso defendeu essa ideia na obra “A Mulher Delinquente, a Prostituta e a Mulher Normal”, de 1893. Hoje, rimos das ideias de Lombroso, talvez sem nos darmos conta do quanto reproduzimos as teorias dele.
Sei bem que a cada vez que alguém, olhando a certidão de nascimento da autora, a trata como homem-macho (para citar Ubaldo de novo), é como se fosse para fazê-la acreditar que ela não é uma mulher de verdade, ou seja, que ela não pode ser o que ela quer ser. Essas falas reproduzem o discurso da moralidade hegemônica, para a qual a sexualidade das pessoas é da conta de todo mundo e do Estado. O moralismo é lombrosiano e por isso requer que atestados e chancelas autentiquem, traduzam e sistematizem o mundo ao redor. O moralismo é ôntico.
Só que em um ambiente democrático, nas relações interpessoais, o tratamento que uma pessoa defere a outra não pode ser um recado da Idade Média, e isso simplesmente porque ninguém é obrigado a ouvir esses recados. Já passamos dessa fase. Talvez não tanto quanto deveríamos, mas ao menos exemplos não nos faltam para percebermos que fundamentalismo é uma péssima ideia como projeto de sociedade. Com ele “dá-se o mesmo que no caso conhecido: é certo que não haviam bruxas, mas as terríveis consequências da fé nas bruxas foram as mesmas que se verificariam se tivesse havido bruxas”[6].
Por isso, não é muito difícil também nos darmos conta de que o registro de nascimento não é um valor intrínseco do ser humano. Não é o registro, por si e em si, que deve ser preservado. O registro civil não é o plano de vida da pessoa registrada. O ser humano vale muito mais que uma folha do livro "A" de um Cartório.
Os valores a serem preservados são a liberdade, a igualdade e a dignidade, o que se fará no caso em exame não se negando à autora o direito de viver o seu projeto individual de felicidade.
Posto isso, JULGO PROCEDENTE O PEDIDO para determinar que se procedam as alterações pleiteadas.
Expeça-se mandado de averbação.
Sem custas.
Publique-se. Registre-se. Intimem-se. Cumpram-se.
Belém, 27 de outubro de 2016.
Andrea Ferreira Bispo
Juíza de Direito Auxiliar da Comarca da Capital
(Em exercício na 6ª Vara Cível e Empresarial)
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Fonte: Tribunal de Justiça do Estado do Pará
Notas e Referências: [1] Letra da música disponível em https://www.letras.mus.br/os-novos-baianos/1169699/. Pesquisa realizada em 27 out. 2016. [2] SANTOS, André Leonardo Copetti, LUCAS, Douglas César. A (in)Diferença no Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015, p. 127. [3] RIBEIRO, João Ubaldo. A Casa dos Budas Ditosos. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999, p. 21. [4] Referência à poesia “Os Sapos”, de Manuel Bandeira. Disponível em http://www.casadobruxo.com.br/poesia/m/sapos.htm. Pesquisa realizada em 27 out. 2016. [5] Referência ao “Manifesto Antropófago”, de Oswald de Andrade. Disponível em http://www.google.com.br/urlsa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=2&sqi=2&ved=0ahUKEwiUuvjg4TQAhWDf5AKHaJ4AEsQFggiMAE&url=http%3A%2F%2Fwww.ufrgs.br%2Fcdrom%2Foandrade%2Foandrade.pdf&usg=AFQjCNFsPVkftpLZzTJlxelwz_BaXMNErQ&bvm=bv.136811127,d.Y2I. Pesquisa realizada em 27 out. 2016. [6] NIETZSCHE, Friederich. Humano Demasiado Humano – Um Livro Para Espíritos Livres (2º volume). São Paulo: Companhia das Letras, 2009. Aforismo 225. .
Imagem Ilustrativa do Post: PINT6741 // Foto de: Partido dos Trabalhadores // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/partidodostrabalhadores/32947791470/ Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode