Por redação - 28/06/2015
O Juiz Alexandre Morais da Rosa (aqui) rejeitou denúncia que imputava a conduta de "mexer' nos órgãos genitais de maneira ostensiva em local público. Invocou o excesso de proibição e a impossibilidade de verificação do ato obsceno, tipo penal moralista e sem conduta. Confira o inteiro teor da decisão abaixo:
Autos n. 0004706-53.2013.8.24.0090 Ação: Ação Penal - Procedimento Ordinário/PROC
Vistos para decisão.
O membro do Ministério Público em exercício nesta unidade jurisdicional ofereceu denúncia contra A. T. S., já qualificado nos autos, dando-o como incurso nas sanções do art. 233, do Código Penal, tendo em vista os atos delituosos assim narrados na peça acusatória (fls. 72-73):
Em 05.09.2013 e ao longo dos meses de setembro de 2013 e outubro de 2013, na S. O. P. F. , bairro B. L., o ora denunciado praticou ato obsceno em lugar público, ao "mexer" em seu órgão genital de maneira ostensiva e com finalidade libidinosa, explicitamente diante de diversas pessoas, inclusive de crianças que jogavam futebol na servidão citada.
Certificados os antecedentes criminais do acusado (fls. 28, 38 e 55).Inicialmente distribuído o Termo Circunstado que instrui a presente denúncia ao Juizado Especial Cível e Criminal da Trindade, houve declinação de competência ao juízo comum, tendo em vista que, em uma primeira análise dos fatos, imputava-se ao acusado a prática do crime previsto no art. 218-A do Código Penal, cuja pena máxima supera dois anos (fl. 32).
Recebidos os autos no juízo comum, manifestou-se o órgão ministerial pelo arquivamento do inquérito no que toca ao crime previsto no art. 218-A do Código Penal, remanescendo, tão somente, a possível prática do crime previsto no art. 233 (fls. 42-45), tendo o juízo remetido os autos novamente ao Juizado Especial (fl. 46).
Seguiu-se ao processamento do feito, com a designação de audiência para o oferecimento de proposta de transação penal, a qual não se realizou, em virtude da não localização do acusado (fls. 61, 64 e 66).
Oferecida a denúncia (fls. 70-73), houve designação de data para audiência de suspensão condicional do processo (fl. 74), sendo que mais uma vez não houve a possibilidade da localização do acusado (fls. 80 e 85).
Em seguida, o Ministério Público manifestou-se pela citação editalícia do acusado, com a consequente declinação da competência para julgamento do feito ao juízo comum, na forma do art. 66, parágrafo único, da Lei nº 9.099 de 1995.
Por fim, os autos vieram conclusos.
É o breve relatório.
Decido.
Trata-se de Ação Penal na qual se imputa ao acusado A. T. S. a prática do crime de ato obsceno, disposto no art. 233 do Código Penal, cujo tipo penal tem como preceito primário "praticar ato obsceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao público", cuidando-se, por conseguinte, como anota Bitencourt, de crime comum, de perigo, doloso e formal.
Cumpre frisar inicialmente que, em que pese a reforma penal empreendida pela Lei nº 12.015 de 2009 ter, entre outras alterações, abolido a denominação, de conteúdo essencialmente moralista, dos então chamados "Crimes contra os Costumes", – atualmente definidos como "Crimes contra a Dignidade Sexual" –, ainda remanesce presente na legislação penal pátria a indevida interferência estatal nos espaços reservados à liberdade individual dos cidadãos (exercendo, portanto, o desarrazoado múnus de fiscal dos "bons costumes"). É precisamente o caso do delito ora em apreço, cujos bens jurídicos tutelados, nos dizeres da doutrina, traduzem-se, de forma pouco precisa, na "moralidade" e no "pudor público", sendo oportuno ressaltar que a previsão legal em comento constitui-se em disposição originária do Código Penal de 1940.
Importa consignar que, se numa conjuntura social e política delineada, de um lado, pelo regime jurídico autoritário definido a partir Carta Constitucional de 1937 (a "Polaca") e, de outro, pelas convicções morais culturalmente cultivadas especificamente naquele momento histórico, a tutela da moralidade pública demonstrava-se como papel a ser legitimamente exercido pelo ente estatal (inclusive por meio do Direito Penal), é de se reconhecer, por outro lado, que, no panorama jurídico-social dos dias de hoje, o "policiamento dos costumes" demonstra-se atividade estatal claramente autoritarista e despropositada, sobretudo quando levado a efeito por meio da tutela penal.
A Constituição de 1988, consagra como pilares essenciais, dentre outros, a liberdade individual e a laicidade da atuação dos agentes do Estado, impondo, ainda, no âmbito jurídico-penal, a intervenção mínima, sendo necessário repensar se a mobilização do aparato criminal com o fito de proteção dos bens jurídicos anteriormente referidos – a "moralidade" e o "pudor público" – como impõe o crime do art. 233 do Código Penal, encontra-se em consonância com a principiologia constitucional atual.
A respeito do tema, trago à baila as observações de Luana Gusso:
Esses são crimes [ato obsceno e escrito ou objeto obsceno] cuja intenção e razão da criminalização só fazem sentido diante desse poder de controle do "viver" populacional pelo Estado, mas com hora e lugar para ser suspenso: afinal, no Carnaval (de rua ou de clubes) a tolerância do Estado é grande, mas sua repressão é forte àqueles considerados impróprios à política dos costumes. Como uma espécie de grande censura criminal, tais delitos figuram como um excelente instrumento de culpabilização de qualquer corpo, ideia, ato, escrito, objeto, representação teatral, exibição cinematográfica ou espetáculo, considerados impróprios ao poder. [...] A própria tipologia penal desenhada pelo Código demonstra o firme propósito do nosso legislador de expandir o poder penal às esferas da vida humana não criminalizáveis. Eis o aparecimento de novas demandas de criminalização e novos sujeitos culpáveis concatenados com a forte política punitiva do Estado, destacadas pelas disposições gerais do Código Penal.
À parte tais considerações relacionadas ao bem jurídico tutelado pelo crime em comento, faz-se necessário ressaltar, de outro lado, que a referida previsão normativa enfrenta grave vício de inconstitucionalidade no que toca à tipificação do delito, considerando que o princípio constitucional da legalidade (art. 5º, inc. XXXIX, CR) não impõe tão somente que a conduta criminosa esteja prevista abstratamente em lei, defluindo igualmente do mencionado preceito a exigência de que a lei penal seja suficientemente taxativa na construção do tipo penal. Exige-se, pois, que o tipo preveja em termos claros e objetivos os elementos que definem a conduta delitiva, restringindo, na medida do possível, o arbítrio do julgador na definição normativa da conduta criminosa.
A respeito da função exercida pelo denominado princípio da taxatividade penal (corolário da legalidade), colhe-se das lições de Yuri Coêlho:
Taxatividade, em sentido jurídico penal, quer dizer: clareza, precisão, uma expressão determinada, que seja compreendida pelo seu receptor de forma que não reste dúvida quanto ao seu sentido e nem permita um plexo de compreensões tão diversificado que a torne sem sentido. Dessa forma, o que o princípio da taxatividade determina é que as expressões utilizadas nos tipos penais, que formam, portanto, a tipologia do delito, sejam claras, precisas e determinadas, incluindo aí, sem dúvida, o conteúdo da sanção moral. O princípio visa proibir a utilização excessiva de elementos normativos, de casuísmos, cláusulas gerais e de conceitos indeterminados, e tem seu fundamento no princípio da legalidade.[...] a utilização de expressões que sejam demasiado vagas ou polissêmicas, por vezes, desprovidas de sentido, leva à insegurança jurídico-penal. Entretanto, é necessário observar-se que nem sempre é possível ofertar-se o conteúdo de precisão que uma expressão deva ter em determinado tipo penal, não significando isso que as referências a expressões imprecisas devam ser admitidas de forma absoluta, post que o sistema estaria com uma abertura injustificável. Os tipos penais, ao fazer referência a expressões abertas, constituem-se no que se denomina "tipo penal aberto", que usualmente reproduz conceitos jurídicos indeterminados, conceitos que possuem uma fluidez de sentido, variando constantemente no contexto sociocultural em que se inserem, o que, em matéria penal, termina por violar a taxatividade, pois perde a condição de limitar a atividade punitiva do Estado. [...] Ferrajoli ainda entende que é questionável a taxatividade de expressões como bom, mau, feio, obsceno, pudico, perigoso e similares. Para o autor, sua extensão é, além de indeterminada, indeterminável, na medida em que elas não conotam propriedades objetivas. [...] Igualmente, o Direito Penal brasileiro possui diversas normas que claramente violam o princípio da taxatividade, e que, por conseguinte, deveriam ter sua inconstitucionalidade declarada, na medida em que ofendem com isso o princípio da legalidade insculpido no art. 5º, inciso XXXIX da Constituição Federal.
No mesmo sentido, preleciona Paulo Queiróz:
Não basta que a lei defina o crime e comine a respectiva pena, porque o Estado sempre poderá iludir semelhante garantia de legalidade de seus atos por meio da edição de leis penais de conteúdo excessivamente impreciso ou vago, como ocorreu na Alemanha nazista, em que determinada lei previa a punição de "quem atente contra a ordem jurídica ou atue contra o interesse das Forças Aliadas", bem assim diversas das disposições da Lei de Crimes Ambientais (nº 9.605/98), por exemplo. Por isso, o princípio implica a máxima determinação e taxatividade dos tipos penais, impondo-se ao Poder Legislativo na elaboração das leis que formule tipos penais com a máxima precisão de seus elementos e ao Judiciário que os interprete adequadamente.
Observe-se, nesse sentido, que o tipo penal em análise sem qualquer dúvida carece da previsão suficientemente determinante de qual seja a conduta que se pretende(ria) criminalizar. Ao contrário disso, compõe-se, basicamente, de um elemento normativo – o adjetivo obsceno –, de conteúdo densamente subjetivo, o que acaba por conferir, consequentemente, ao próprio intérprete da lei o poder de definir o que é crime e o que não o é. Aceita a criminalização teríamos puro decisionismo, consoante aponta Lenio Streck. Ademais, processual não há conduta a ser comprovada, mas apenas o moralismo desejante do julgador.
Ainda no que toca à tipificação do crime em análise, inarredável a menção a considerações tecidas no Supremo Tribunal Federal quando da apreciação do caso Gerald Thomas (HC 83.996/RJ), julgado em 17 de agosto de 2004. Do julgado em comento faço referência à motivação tecida pelo Min. Gilmar Mendes, ao votar pela concessão da ordem, asseverando que cabe ao julgador "cautela para não tentar criminalizar as condutas ou solver, mediante o direito penal, conflitos que podem ser resolvidos de outra maneira por uma sociedade madura. Daí ter colocado no meu voto a possibilidade de que a repulsa, a reprovação à semelhante atitude se traduza também por mecanismo sociais outros que não aqueles decorrentes da aplicação do direito penal".
Há, na hipótese, o que Fernanda Mambrini Rudulfo denomina de excesso de proibição, com base na doutrina alemã (Alexy, Dieter Grimm, etc.), é aplicável ao caso: "O primeiro desses elementos é conhecido como adequação, pertinência, aptidão, idoneidade ou utilidade. Ou seja, deve-se verificar se o meio utilizado é apto à obtenção do resultado almejado. No caso do direito penal, em que o que se deseja é a preservação de um bem jurídico, deve-se verificar a utilidade de se impor uma pena em razão da prática de determinado comportamento. Nesse sentido: A doutrina costuma apontar o pensamento de Von Liszt e de Mayer como a origem do princípio da idoneidade ou utilidade. De acordo com essa máxima, nem todos os bens jurídicos seriam dignos de tutela penal. Esta só se justificaria para aqueles bens jurídicos “merecedores”, “necessitados” e “capazes” deste tipo de proteção.[xxv] A medida estatal desencadeada (meio) há de ser idônea para atingir a finalidade perseguida (fim): a realização do interesse público. Em tal contexto, um meio é idôneo se com sua intervenção o êxito desejado pode, efetivamente, ser alcançado. Trata-se, pois, de controlar a relação de adequação medida-fim. Conduzindo o raciocínio ao plano do controle de normas penais, haveremos de identificar, em primeira análise, qual o bem jurídico protegido pela norma questionada, ou, mais precisamente, quais os fins imediatos e mediatos de proteção da mesma. Essa constatação constitui um prius lógico para a determinação se o legislador incorreu em um excesso manifesto no rigor das penas [STC 55/96]. Nesse sentido, para afirmar-se o juízo de adequação, há se verificar, sobretudo, se a tutela jurídico-penal não é constitucionalmente ilegítima, o que demanda uma investigação de dupla perspectiva: ao tempo em que os bens ou interesses que se trata de preservar não devem estar constitucionalmente proscritos, igualmente não devem ser socialmente irrelevantes [STC 111/93] se desejarem despertar a atenção do Direito Penal. Acaso constatada a ilegitimidade da tutela penal sob os pressupostos recém visitados, desde logo a norma incriminadora será inadequada e, portanto, ofensiva ao princípio da proporcionalidade. Por outro lado, nas hipóteses em que a tutela penal é constitucionalmente exigida, por meio de mandados (explícitos ou implícitos) de penalização, a adequação da medida já vem previamente afirmada pela Constituição. [xxvi] Quanto à necessidade, vê-se diretamente ligada aos princípios de direito penal da fragmentariedade e da subsidiariedade, ou seja, o direito penal deve proteger exclusivamente bens jurídicos (de relevância jurídica), sendo a ultima ratio do direito. A pena só deve ser prevista e aplicada (salientem-se os dois momentos mencionados) diante da impossibilidade de se alcançar a proteção do bem visado por outra forma. A propósito: Na esfera penal, o princípio da necessidade, também chamado de princípio da exigibilidade, foi inserido já nas primeiras Declarações de Direitos. […] condiciona o emprego da pena à impossibilidade de fins preventivos serem alcançados através de outros menos alternativos menos gravosos."
Nesse contexto, cabe reconhecer que, por mais que possa ser reprovável a conduta do agente, para fins penais exige-se mais. A conduta não gerou maiores efeitos e não se justifica nem sequer a instauração da ação penal. Gabriel Antinolfi Divan afirma que: "Podemos arriscar dizer que a demonização, em se tratando de casos de crimes contra a liberdade sexual é expediente de fácil e corriqueira verificação: seja, de fato, culpado ou inocente, o acusado traz consigo uma imensa propensão que age como o gancho projetivo. A ele vão imputadas condutas que causam repúdio e ódio na mesma proporção que excitação e fascínio. O ser humano possui um lado escuro e destrutivo que é muitas vezes espelhado pela sua sexualidade (...) O “homem-médio” é um parâmetro de “normalidade” inteiramente ilusório e de frágil alicerce teórico: é tido como ferramenta de avaliação de conduta, servindo, basicamente, de chave de comparação entre as condições em que se deu o fato típico posto em prática e a expectativa de ação/volição que seria tolerável para a situação, como parâmetro de imputação ou não de resultado criminoso (...)".
Oportuno, portanto, ressaltar a função da tutela penal (ao menos, do ponto de vista propalado pelo seu discurso oficial), qual seja a de último recurso na afirmação da imperatividade da ordem jurídica e, sobretudo, na garantia dos bens jurídicos de maior indispensabilidade social (cuja proteção, frise-se, não se possa dar, de modo satisfatório, por meio de outros recursos jurídicos). Nesse sentido, considerando desaguarem diariamente nas varas criminais conflitos sociais de toda a sorte e dos mais variados níveis de gravidade, impõe-se ao julgador que efetue o necessário juízo quanto ao cabimento da intervenção do Direito Penal nos fatos tratados (considerando sobretudo os princípios jurídico-penais da fragmentariedade, da lesividade e da alteridade). Até porque, como é sabido de todos, todo processo demanda recursos econômicos e humanos, os quais, uma vez direcionados a questões irrelevantes ou moralistas, caracterizam notório desperdício de investimento público, além de repercutir negativamente no tratamento a ser dispensado às condutas de efetiva gravidade e reprovabilidade, as quais dependeriam verdadeiramente da intervenção da tutela criminal do Estado.
Por tais razões, REJEITO A DENÚNCIA de fls. 72-73, com base no art. 395, incisos I e III, do Código de Processo Penal.
Publique-se. Registre-se. Intime-se.
Transitada em julgado, arquivem-se.
Florianópolis (SC), 26 de junho de 2015.
Alexandre Morais da Rosa Juiz de Direito
Imagem Ilustrativa do Post: Death of a Gladiator LACMA M.83.169 // Foto de: Ashley Van Haeften // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/wikimediacommons/16402986692/ Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode