Juiz rejeita acusação: denúncia anônima não configura fundadas razões para a vulneração da inviolabilidade de domicílio

17/11/2015

Por redação - 17/11/2015

O Juiz de Direito Marcos Peixoto da 37a  Vara Criminal da comarca da Capital, no Rio de Janeiro, rejeitou a denúncia formulada pelo Ministério Público baseada em denúncia anônima e invasão de domicílio. Na decisão o magistrado reconstrói as discussões recentes do Supremo Tribunal Federal e demonstra que as garantias constitucionais devem prevalecer em face do que denomina Estado Policialesco. O conteúdo é brilhante e merece ser lido. O magistrado finaliza: "Do contrário, estará definitivamente instaurada a chancela judicial ao arbítrio policial -  e o último a sair que apague a luz!"

Confira o conteúdo abaixo:


Processo nº 0084653-05.2015.8.19.0001

DECISÃO

Narram os policiais nos depoimentos colhidos em sede inquisitorial que foram checar disque-denúncia indicando determinada residência como envolvida com o tráfico de drogas, tendo toda a diligência, portanto, sido iniciada com base em um denúncia anônima, pelo que traz-se à colação inicialmente excerto da fundamentação de voto vencedor lavrado pelo Des. Geraldo Prado no Habeas Corpus 2009.059.01373, que analisa a questão:

A prévia colheita de indícios que tragam suspeitas do estado de flagrância, a seu turno, também deve seguir os ditames da legalidade. Aí reside a problemática concernente à “denúncia anônima”.

De fato, é preciso compreender o limite de sua aceitação – especialmente neste caso, em que a “denúncia anônima” foi recebida pelos policiais que efetuaram a prisão “via telefone” (fls. 25 e 27), e não pelos recursos estatais destinados à repressão da prática de crimes, a exemplo do conhecido “disque-denúncia” – como subsídio legítimo para a violação do direito fundamental à inviolabilidade do domicílio.

Não há como substituir a base fática exigida para a constrição de direitos fundamentais pela “denúncia anônima”.

É certo que a Constituição da República (artigo 5º, inciso IV) erigiu a livre manifestação de pensamento à categoria de direito fundamental, vedando, contudo, o anonimato.

Por conta disso, aquele que exerce a liberdade de pensamento deve assumir a identidade das posições externadas, haja vista a hipótese de responder por eventuais danos causados a terceiros. O veto constitucional, portanto, busca impedir abusos no exercício da liberdade de manifestação de pensamento, pois, ao se exigir a identidade de quem se vale desta prerrogativa político-jurídica, essencial à própria configuração do Estado Democrático de Direito, visa-se, em última análise, a possibilitar que eventuais excessos sejam passíveis de responsabilização.

Assim é que, na lição de José Frederico Marques11 “a lei penal considera crime a denunciação caluniosa e a comunicação falsa de crime (Código Penal artigos 339 e 340), o que implica na exclusão do anonimato na notitia criminis, uma vez que é corolário dos preceitos legais citados, a perfeita individualização de quem faz a comunicação de crime, a fim de que possa ser punido no caso de atuar abusiva e ilicitamente.”

Em que pese o anonimato ter sido repudiado pelo constituinte originário, a verdade é que, em virtude da necessidade de se coibir a prática de infrações penais, os Tribunais Superiores vem admitindo, com reservas, a instauração da persecução penal com base na denominada “denúncia anônima”.

Neste sentido, o Ministro Celso de Mello, julgando o Inquérito nº 1957/PR, em 11 de maio de 2005 destacou que: “Nada impede contudo que o Poder Público provocado por delação anônima (‘disque-denúncia’, p.ex) adote medidas informais destinadas a apurar, previamente, em averiguação sumária, ‘com prudência e descrição’, a possível ocorrência de eventual situação de ilicitude penal, desde que o faça com o objetivo de conferir a verossimilhança dos fatos nela denunciados, em ordem a promover, então, em caso positivo, a formal instauração da ‘persecutio criminis’, mantendo-se, assim, completa desvinculação desse procedimento estatal em relação às peças apócrifas.

Ocorre que, ainda que tolerável a “denúncia anônima” para a prática de atos iniciais de investigação pela autoridade policial, não deve ser admitida para embasar medidas limitadoras de direitos fundamentais.

Esta, portanto, a limitação da denúncia anônima, que estabelece, ao mesmo tempo, o estreito caminho para sua excepcional admissibilidade no direito pátrio em se tratando de repressão à criminalidade.

Partindo do pressuposto de que é um dos objetivos fundamentais da República “promover o bem de todos” (inciso IV do artigo 3º da Constituição Federal) aí incluída também a proteção ao patrimônio das pessoas erigido como direito fundamental (inciso XXII do artigo 5º da Constituição), bem como que a segurança pública dispõe de assento constitucional, e é “dever do Estado, direito e responsabilidade de todos”, sendo exercida “para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio” (artigo 144 da Constituição), é de ser admitida a denúncia anônima enquanto manifestação do pensamento fruto da liberdade de expressão (inciso IV do artigo 5º da Constituição), excepcionalmente, quando voltada à repressão da criminalidade e, aqui o principal, desde que não sirva, por si só e diretamente, à vulneração de direito e garantia fundamental.

Se a segurança pública é da “responsabilidade de todos” não se pode exigir que cidadãos de bem se transmudem em super-heróis ou mártires para colaborar com ela. Sob ótica inversa, não se pode aceitar que a criminalidade campeie livremente, sem empecilhos, e sem que se possa acionar os mecanismos de segurança e persecutórios a não ser colocando em risco a própria segurança, a própria vida e integridade física do “delator” ou de sua família. A denúncia anônima é, portanto, ao mesmo tempo uma realidade e uma necessidade, indispensável, nos tempos modernos, ao combate à criminalidade.

Não pode servir, entrementes, como já foi dito, por si só, para “legitimar” atos restritivos a preceitos fundamentais. Uma denúncia anônima não basta, v.g., para permitir a entrada da autoridade pública em um domicílio sem que estejam presentes as exceções constitucionais; como também não é suficiente para sustentar uma interceptação telefônica, ou a quebra de sigilo bancário ou fiscal de um cidadão; assim como não é suficiente para se excepcionar o sigilo de correspondências entre duas pessoas (os exemplos seriam inúmeros em sede constitucional), como não é, enfim, para gerar uma condenação criminal.

Pelos mesmos argumentos, uma denúncia anônima não seria suficiente para respaldar, de per si, a propositura de uma ação criminal, o que exige um fundamento qualificado – leia-se: justa causa.

Mas é razoável que se a admita para deflagrar atos investigatórios sem o desrespeito a garantias fundamentais.

Acórdão paradigmático sobre o tema, que contém magníficas lições partindo dos mais variados pontos de vista é aquele oriundo do Supremo Tribunal Federal, por sua 1ª Turma, relatado pelo Min. Marco Aurélio de Mello no HC 84827-3/TO, assim ementado:

Anonimato – Notícia de prática criminosa – Persecução criminal – Impropriedade. Não serve à persecução criminal notícia de prática criminosa sem identificação da autoria, consideradas a vedação constitucional do anonimato e a necessidade de haver parâmetros próprios à responsabilidade, nos campos cível e penal, de quem a implemente.

Naquele caso concreto, segundo o entendimento majoritário, concluiu-se que exclusivamente a partir de uma carta anônima o Ministério Público Federal, sem qualquer mínimo ato investigatório prévio visando respaldá-la (ou infirmá-la...), deflagrou a persecução criminal perante o colendo Superior Tribunal de Justiça (os denunciados tratavam-se de magistrados), o que levou o caso diretamente ao Supremo Tribunal Federal via Habeas Corpus.

Ocorre que a ementa do aresto pode induzir-nos a erro acaso não leiamos os fundamentos da tese vencedora, que contém uma frase lapidar, a esclarecer todo o embasamento do acórdão. Disse-a o Exmo. Min. Relator: “Faça-se a visita à casa para constatar a existência do cadáver”, i.e., havendo uma denúncia anônima, investigue-se, apure-se, não sendo cabível descartá-la de plano, sem utilizá-la para respaldar atos investigatórios preliminares. Esta a essência do julgado.

O que firmou, portanto, o Pretório Excelso foi a inadmissibilidade da persecução criminal em juízo com base em “notícia de prática criminosa sem identificação da autoria, consideradas a vedação constitucional do anonimato e a necessidade de haver parâmetros próprios à responsabilidade, nos campos cível e penal, de quem a implemente”, não a inadmissibilidade da persecução criminal enquanto investigação preliminar.

Não é viável a transcrição da íntegra dos (acalorados) debates naquele julgamento, abrangendo setenta e cinco páginas, contudo, nas mais variadas passagens vê-se claramente tal delimitação, acolhida no próprio voto vencedor, declarado ao longo das discussões travadas entre os eminentes Ministros. Vejamos algumas:

SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (RELATOR) – Faria uma pergunta: admitiríamos uma ação penal contra integrante do Supremo Tribunal Federal, tendo em conta uma carta anônima, contra o Presidente da República, contra Ministro de Estado?

O SENHOR MINISTRO EROS GRAU: - Não, mas aceitaria perfeitamente se o Ministério Público, tendo notícia de algum fato – seja pela imprensa, seja porque alguém declaradamente o afirmou, seja porque chegou ao seu conhecimento por uma outra via -, nas suas investigações, apurou. Se isso tivesse ocorrido, seria perfeitamente capaz de aceitar.

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (RELATOR) – Eu também admitiria, mas não com base única, como está na própria peça do Ministério Público – a carta anônima encaminhada, como disse, aos principais veículos de comunicação, visando ao escândalo, a denegrir imagens de homens que exercem a missão sublime de julgar. Daí a minha indignação até mesmo pela irresponsabilidade do autor dessa carta.

O SENHOR MINISTRO EROS GRAU: - Vossa Excelência me permite?

Queria chegar a outro ponto. A irresponsabilidade foi do Ministério Público, tão grave quanto a irresponsabilidade daquele que denunciou. Porque – agora ficou claro para mim – o Ministério Público não tomou nenhuma providência para, e em nome, sim, da moralidade, tentar investigar.

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (RELATOR) – Levantar até outros elementos antes de chegar ao Judiciário.

Outra passagem dos debates:

O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO – Vossa Excelência me permite?

Gostaria apenas de fazer algumas ponderações a propósito da intervenção do Ministro-Presidente.

A menos que o voto de Vossa Excelência me traga subsídios irrefutáveis, estou absolutamente convencido de que a proibição constitucional do anonimato significa que, como meio de expressão do pensamento no mundo jurídico, ela é inválida e ineficaz, qualquer que seja a modalidade usada e qualquer que seja o tipo de pensamento manifestado ou declarado. Portanto, isso abrange não apenas as manifestações de opinião, mas também as declarações de sentimentos, de ciência e de vontade. A razão, ao que me parece, não está apenas no aspecto censurável, do ponto de vista ético, de que se reveste o anonimato, mas é a circunstância de que o anonimato torna irresponsável, do ponto de vista penal e do ponto de vista civil, aquele que formulou eventualmente uma acusação.  Então, não se pode dar ao anonimato, sob forma de denúncia anônima, as consequências legais de uma declaração de ciência que atenda aos requisitos de validez e de eficácia dos outros casos.

A mim me parece que uma coisa é, diante de denúncia anônima, que pode ser veiculada até por telefone – e hoje as polícias estaduais costumam valer-se dessas informações -, permitir que, a partir dessa denúncia, a autoridade policial, antes de formalizar qualquer procedimento específico, realize investigação preliminar, para verificar se há base para instauração de procedimento específico. No caso, já foi iniciado, contra um ou dois magistrados, procedimento formal, que provavelmente já deve ter sido objeto de divulgação, sem nenhuma base.

Outra ainda, do voto (vencido) do Exmo. Min. Ayres Britto:

As denúncias anônimas bem podem cumprir o mister de assegurar aos cidadãos uma efetiva colaboração com os Poderes Públicos nas áreas administrativa e penal, operando o anonimato, então, como compreensível temor de vir o denunciante sofrer represálias do lado do denunciado; não necessariamente como um traço de covardia; ou, pior ainda, como um traça denotativo de mau-caráter por parte do denunciante. Então, inibir as denúncias apócrifas, pura e simplesmente, não me parece de bom alvitre.

 E mais uma, extraída dos debates que se seguiram ao voto cuja passagem encontra-se acima transcrita:

O SENHOR MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE – Mas não vamos ficar alegando falta de justa causa para abertura de investigação. A tese é exclusivamente isso: tudo começou com uma denúncia anônima.

O SR. MINISTRO CARLOS BRITTO – Isso. Tudo começou com a denúncia.

O SENHOR MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE – Então, é a notícia de um cadáver. Agora, se há ou não o cadáver, é outro problema.

 O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO – Mas é isso o que digo. Aliás, já o disse no voto anterior, que infelizmente não sei por que não foi juntado. O Ministro Carlos Britto certamente não se lembra. Eu disse exatamente, após a observação de Vossa Excelência, que, se o agente da polícia receber telefonema anônimo de que existe um cadáver em certo lugar, ele não vai abrir inquérito por causa disso; a primeira coisa que deve fazer e verificar. A partir daí, confirmando que há um cadáver, já não interessa o problema da denúncia anônima.

Dos debates, outro excerto:

O SENHOR MINISTRO CARLOS BRITTO – Bem, se Vossas Excelências entendem que não se pode descartar de todo como imprestável juridicamente a delação anônima, penso que já se conseguiu alguma coisa na discussão deste processo.  Porque, no início, não estava colocada a discussão nesse patamar.

O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO – Mas continuo a fazer a diferenciação entre a serventia prática e a jurídica. Penso que a denúncia anônima não tem serventia jurídica, tem apenas serventia prática, isto é, serve para orientar a autoridade, que a recebe, a verificar se existe algum fato a partir do qual possa ou deva instaurar procedimento específico. Agora, em termos jurídicos, não é nada. Não é declaração de ciência, porque não tem autor. Não é documento, porque não é nada.

O SENHOR MINISTRO CARLOS BRITTO – O jurídico, Excelência, nasce dos fatos.

O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO – É um pedaço de papel, assim como tantos outros que existem por aí. Agora, do ponto de vista prático, reconheço que, se houve denúncia anônima, deve a autoridade verificar se existiu o fato apontado.

E, afinal, magnífica passagem do voto do Exmo. Min. Sepúlveda Pertence em que, embora acompanhando o relator para conceder a ordem, sustenta com precisão:

Compartilho da preocupação em se evitar o que o Ministro Marco Aurélio denominou em seu voto de “denuncismo irresponsável”.

Não me comprometo, contudo, com a tese de imprestabilidade abstrata de toda e qualquer notícia-crime anônima.

Impressionam-me determinadas situações, em que o anonimato longe está de configurar um ato de covardia, mas, pelo contrário, um ato de boa-fé daqueles que, sabendo a respeito de determinado fato criminoso, o comunicam à autoridade competente com o único propósito de se evitar a impunidade, respaldando-se o anonimato, na verdade, no receio justificável de expor a risco a sua vida e a de sua família.

Em alguns casos, de outro lado, a notícia crime, além de conter uma narrativa séria e objetiva quanto a fatos determinados, vem acompanhada de base empírica substancial.

Por isso, tenderia a reconhecer, dependendo das circunstâncias do caso concreto, a validade da notícia anônima – ainda que tomada como espécie de “noticia criminis inqualificada”, conforme já defendia Frederico Marques – possibilitando-se, assim, a prática de atos iniciais de investigação.

De tudo isso, enfim, se extrai o que já acima se adiantou: a ementa é, data maxima venia, enganosa, já que da fundamentação dos votos proferidos e dos debates encetados perante o egrégio Supremo Tribunal Federal se extrai a verdadeira essência do julgado, que não proscreve a denúncia anônima do cenário jurídico, admitindo-a como deflagradora de atos investigatórios, como ocorreu in casu, mas desde que respeitados os direitos fundamentais dos cidadãos – o que não ocorreu.

Verifica-se claramente nos depoimentos dos policiais militares responsáveis pela prisão dos indiciados e apreensão do material ilícito (como já se adiantou desde a audiência de custódia em que foram relaxadas as prisões – v. fl. 55) que, em meio a diligência de repressão ao tráfico de drogas deflagrada por denúncia anônima, se dirigiram para o local nela indicado onde, percebendo uma movimentação em seu interior, nela adentraram, onde teriam encontrado os dois denunciados e os entorpecentes apreendidos, sendo dada voz de prisão aos mesmos.

Neste ponto as provas colhidas são uníssonasadentraram os policiais na referida residência desprovidos de mandado judicial, e sem autorização de seus moradores.

Cabe salientar: no momento em que adentraram na residência (ressalte-se mais uma vez: sem autorização judicial ou dos moradores/habitantes/ocupantes) os policiais militares não tinham ciência de que lá estaria sendo praticado algum delito, em situação de flagrância, somente constatando isto a posteriori, inexistindo, pois, naquele momento inicial, qualquer “fundada razão” (parágrafo 1º do artigo 240 do Código de Processo Penal) para legitimar uma busca domiciliar – já que não o é, por óbvio, uma denúncia anônima.

Portanto, para agirem regularmente, que deveriam ter feito os policiais? Cercar a residência apresentando o fato à autoridade policial para que esta, após a oitiva dos policiais, representasse pela expedição de mandado de busca e apreensão na casa onde estava o indiciado, a ser cumprido fora do horário noturno, após a oitiva do Ministério Público e o eventual deferimento por magistrado competente. Ou ainda: deflagrar, a partir de então, investigações prévias visando apurar entrada e saída de pessoas ou drogas do local, para então dispor de justa causa para o flagrante.

Assim se agiria num verdadeiro Estado Democrático de Direito, com a observância das normas constitucionais e legais aplicáveis, onde não imperasse – como no nosso – a cultura do Estado autoritário, ditatorial, do “pé na porta”, que pode “legitimamente” invadir domicílios como se fosse algo absolutamente normal, sobretudo legal – mesmo que lamentavelmente usual, corriqueiro em comunidades de baixa renda, posto que impraticável e incogitável, por exemplo, em residências de Ipanema ou Leblon.

Ora, é absolutamente inconcebível que o Estado compactue com tais práticas – ou, em última análise, o faça o Poder Judiciário.

A Constituição Federal – por mais incrível que possa parecer a alguns – não é válida somente na Zona Sul da Cidade do Rio de Janeiro. Também vigora na comunidade do Salgueiro o ditame contido na alínea XI do artigo 5º da Carta Maior, que estatui: “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”.

In casu, como visto, nenhuma das exceções se fazia presente quando os policiais adentraram, sem consentimento, na residência onde teriam sido apreendidas as drogas referidas na denúncia. Não havia desastre ocorrendo (salvo a desastratada diligência policial); não se tinha ciência ou quiçá fundada suspeita quanto a flagrante delito em prática; não houve consentimento do ocupante do imóvel para ingresso; enfim, não houve determinação judicial para tanto.

Na lição de Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho, “ao que tudo indica, o objetivo do constituinte foi proteger ao máximo a privacidade, só permitindo sua violação em casos excepcionais, que corresponde às exceções taxativamente previstas no dispositivo constitucional em exame: de dia, por mandado judicial; de noite, ou de dia, em caso de flagrante, desastre ou prestação de socorro, sem nadado judicial. Nesse contexto, depreende-se que o ingresso em domicílio é uma exceção ao direito à privacidade”.[1]

Como sustentam Luiz Flávio Gomes, Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto, “inúmeros exemplos podem ser citados de prova obtida ilicitamente: a confissão obtida mediante tortura; o ingresso no domicílio da pessoa à noite ou sem mandado judicial, não sendo o caso de flagrante, desastre ou prestação de socorro; a violação de correspondência, a gravação de conversa telefônica sem autorização legal e ignorada por ambos os interlocutores... etc.” (grifei)[2].

Portanto, fica evidenciado que os milicianos adentraram na residência ilegalmente, violando cláusula pétrea constitucional, sem fundada suspeita para tanto, inscientes de que no local encontrariam entorpecentes, do que decorre a total ilicitude das provas obtidas por tal meio (materialidade dos crimes – apreensão do material entorpecente), bem como daquelas daí diretamente decorrentes por derivação (os respectivos laudos periciais e depoimentos dos policiais acerca da diligência encetada), nos termos do artigo 157 e parágrafo 1º do Código de Processo Penal, com a redação que lhe conferiu a Lei 11690/08, o que ora declaro.

Não se diga que, mediante tal entendimento, se estaria deliberadamente dificultando a apuração e punição de graves delitos. Como sustenta Grandinetti, “reconheça-se que a falta de estrutura do sistema investigatório brasileiro, tornando inviável o contato próximo e a tempo com a autoridade judiciária, possa fazer com que o entendimento exposto se transforme em mais um entrave burocrático à persecução penal. Não é essa a intenção, mas não se pode aceitar que a doutrina fique à mercê da boa vontade dos governantes para dotarem a polícia os recursos técnicos e humanos necessários para o desempenho da função[3]; mais: não se pode cogitar que uma cláusula pétrea constitucional reste submissa a argumentos de ordem utilitária, de “Lei e Ordem”, que em nome do princípio da proporcionalidade, argumentando com um pretenso choque de princípios constitucionais – inviolabilidade do domicílio (dito “interesse privado”) x segurança pública (dito “interesse público”) – pretendam resolvê-lo sobrepondo aquele.

O perigo dessa teoria é imenso”, sustenta Aury Lopes Jr., “na medida em que o próprio conceito de proporcionalidade é constantemente manipulado e serve a qualquer senhor. Basta ver a quantidade imensa de decisões e até de juristas que ainda operam no reducionismo binário do interesse público x interesse privado para justificar a restrição de direitos fundamentais (e, no caso, até a condenação) a partir da “prevalência” do interesse público...

É um imenso perigo (grave retrocesso) lançar mão desse tipo de conceito jurídico indeterminado e, portanto, manipulável, para impor restrição de direitos fundamentais. Recordemos que o processo penal é democratizado por força da Constituição, e isso implica a revalorização do homem, en toda la complicada red de las instituciones procesales que solo tienen um significado si se entendien por su naturaleza y por su finalidad política y jurídica de garantía de aquel supremo valor que no puede venir sacrificado por razones de utilidad: el hombre.[4]

E mais, aqueles que ainda situam a discussão no campo público versus privado, além de ignorarem a inaplicabilidade de tais categorias quando estamos diante de direitos fundamentais, possuem uma visão autoritária do direito e equivocada do que seja sociedade (e das respectivas categorias de interesse público, coletivo, etc.).

Entendemos que a sociedade deve ser compreendida dentro da fenomenologia da coexistência, e não mais como um ente superior, de que dependem os homens que o integram. Inadmissível uma concepção antropomórfica, na qual a sociedade é concebida como um ente gigantesco, no qual os homens são meras células, que lhe devem cega obediência. Nossa atual constituição e, antes dela, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, consagram certas limitações necessárias para a coexistência e não toleram tal submissão do homem ao ente superior, essa visão antropomórfica que corresponde a um sistema penal autoritário. Em suma, no processo penal, há que se compreender o conteúdo de sua instrumentalidade, e recusar tais construções”. [5]

Neste mesmo sentido a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro:

RHC 90376 / RJ - RIO DE JANEIRO

RECURSO EM HABEAS CORPUS

Relator(a):  Min. CELSO DE MELLO

Julgamento: 03/04/2007

Órgão Julgador: Segunda Turma

PROVA PENAL - BANIMENTO CONSTITUCIONAL DAS PROVAS ILÍCITAS (CF, ART. 5º, LVI) - ILICITUDE (ORIGINÁRIA E POR DERIVAÇÃO) - INADMISSIBILIDADE - BUSCA E APREENSÃO DE MATERIAIS E EQUIPAMENTOS REALIZADA, SEM MANDADO JUDICIAL, EM QUARTO DE HOTEL AINDA OCUPADO - IMPOSSIBILIDADE - QUALIFICAÇÃO JURÍDICA DESSE ESPAÇO PRIVADO (QUARTO DE HOTEL, DESDE QUE OCUPADO) COMO "CASA", PARA EFEITO DA TUTELA CONSTITUCIONAL DA INVIOLABILIDADE DOMICILIAR - GARANTIA QUE TRADUZ LIMITAÇÃO CONSTITUCIONAL AO PODER DO ESTADO EM TEMA DE PERSECUÇÃO PENAL, MESMO EM SUA FASE PRÉ-PROCESSUAL - CONCEITO DE "CASA" PARA EFEITO DA PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL (CF, ART. 5º, XI E CP, ART. 150, § 4º, II) - AMPLITUDE DESSA NOÇÃO CONCEITUAL, QUE TAMBÉM COMPREENDE OS APOSENTOS DE HABITAÇÃO COLETIVA (COMO, POR EXEMPLO, OS QUARTOS DE HOTEL, PENSÃO, MOTEL E HOSPEDARIA, DESDE QUE OCUPADOS): NECESSIDADE, EM TAL HIPÓTESE, DE MANDADO JUDICIAL (CF, ART. 5º, XI). IMPOSSIBILIDADE DE UTILIZAÇÃO, PELO MINISTÉRIO PÚBLICO, DE PROVA OBTIDA COM TRANSGRESSÃO À GARANTIA DA INVIOLABILIDADE DOMICILIAR - PROVA ILÍCITA - INIDONEIDADE JURÍDICA - RECURSO ORDINÁRIO PROVIDO. BUSCA E APREENSÃO EM APOSENTOS OCUPADOS DE HABITAÇÃO COLETIVA (COMO QUARTOS DE HOTEL) - SUBSUNÇÃO DESSE ESPAÇO PRIVADO, DESDE QUE OCUPADO, AO CONCEITO DE "CASA" - CONSEQÜENTE NECESSIDADE, EM TAL HIPÓTESE, DE MANDADO JUDICIAL, RESSALVADAS AS EXCEÇÕES PREVISTAS NO PRÓPRIO TEXTO CONSTITUCIONAL. - Para os fins da proteção jurídica a que se refere o art. 5º, XI, da Constituição da República, o conceito normativo de "casa" revela-se abrangente e, por estender-se a qualquer aposento de habitação coletiva, desde que ocupado (CP, art. 150, § 4º, II), compreende, observada essa específica limitação espacial, os quartos de hotel. Doutrina. Precedentes. - Sem que ocorra qualquer das situações excepcionais taxativamente previstas no texto constitucional (art. 5º, XI), nenhum agente público poderá, contra a vontade de quem de direito ("invito domino"), ingressar, durante o dia, sem mandado judicial, em aposento ocupado de habitação coletiva, sob pena de a prova resultante dessa diligência de busca e apreensão reputar-se inadmissível, porque impregnada de ilicitude originária. Doutrina. Precedentes (STF). ILICITUDE DA PROVA - INADMISSIBILIDADE DE SUA PRODUÇÃO EM JUÍZO (OU PERANTE QUALQUER INSTÂNCIA DE PODER) - INIDONEIDADE JURÍDICA DA PROVA RESULTANTE DA TRANSGRESSÃO ESTATAL AO REGIME CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS. - A ação persecutória do Estado, qualquer que seja a instância de poder perante a qual se instaure, para revestir-se de legitimidade, não pode apoiar-se em elementos probatórios ilicitamente obtidos, sob pena de ofensa à garantia constitucional do "due process of law", que tem, no dogma da inadmissibilidade das provas ilícitas, uma de suas mais expressivas projeções concretizadoras no plano do nosso sistema de direito positivo. - A Constituição da República, em norma revestida de conteúdo vedatório (CF, art. 5º, LVI), desautoriza, por incompatível com os postulados que regem uma sociedade fundada em bases democráticas (CF, art. 1º), qualquer prova cuja obtenção, pelo Poder Público, derive de transgressão a cláusulas de ordem constitucional, repelindo, por isso mesmo, quaisquer elementos probatórios que resultem de violação do direito material (ou, até mesmo, do direito processual), não prevalecendo, em conseqüência, no ordenamento normativo brasileiro, em matéria de atividade probatória, a fórmula autoritária do "male captum, bene retentum". Doutrina. Precedentes. A QUESTÃO DA DOUTRINA DOS FRUTOS DA ÁRVORE ENVENENADA ("FRUITS OF THE POISONOUS TREE"): A QUESTÃO DA ILICITUDE POR DERIVAÇÃO. - Ninguém pode ser investigado, denunciado ou condenado com base, unicamente, em provas ilícitas, quer se trate de ilicitude originária, quer se cuide de ilicitude por derivação. Qualquer novo dado probatório, ainda que produzido, de modo válido, em momento subseqüente, não pode apoiar-se, não pode ter fundamento causal nem derivar de prova comprometida pela mácula da ilicitude originária. - A exclusão da prova originariamente ilícita - ou daquela afetada pelo vício da ilicitude por derivação - representa um dos meios mais expressivos destinados a conferir efetividade à garantia do "due process of law" e a tornar mais intensa, pelo banimento da prova ilicitamente obtida, a tutela constitucional que preserva os direitos e prerrogativas que assistem a qualquer acusado em sede processual penal. Doutrina. Precedentes. - A doutrina da ilicitude por derivação (teoria dos "frutos da árvore envenenada") repudia, por constitucionalmente inadmissíveis, os meios probatórios, que, não obstante produzidos, validamente, em momento ulterior, acham-se afetados, no entanto, pelo vício (gravíssimo) da ilicitude originária, que a eles se transmite, contaminando-os, por efeito de repercussão causal. Hipótese em que os novos dados probatórios somente foram conhecidos, pelo Poder Público, em razão de anterior transgressão praticada, originariamente, pelos agentes da persecução penal, que desrespeitaram a garantia constitucional da inviolabilidade domiciliar. - Revelam-se inadmissíveis, desse modo, em decorrência da ilicitude por derivação, os elementos probatórios a que os órgãos da persecução penal somente tiveram acesso em razão da prova originariamente ilícita, obtida como resultado da transgressão, por agentes estatais, de direitos e garantias constitucionais e legais, cuja eficácia condicionante, no plano do ordenamento positivo brasileiro, traduz significativa limitação de ordem jurídica ao poder do Estado em face dos cidadãos. - Se, no entanto, o órgão da persecução penal demonstrar que obteve, legitimamente, novos elementos de informação a partir de uma fonte autônoma de prova - que não guarde qualquer relação de dependência nem decorra da prova originariamente ilícita, com esta não mantendo vinculação causal -, tais dados probatórios revelar-se-ão plenamente admissíveis, porque não contaminados pela mácula da ilicitude originária.

Omissis...

2007.050.00381 - APELAÇÃO CRIMINAL

DES. GERALDO PRADO

Julgamento: 28/08/2007

TERCEIRA CÂMARA CRIMINAL

APELAÇÃO CRIMINAL. PENAL. TRÁFICO DE DROGAS E PORTE DE ARMA DE FOGO DE USO PERMITIDO. PROVA ILÍCITA. INDÍCIOS DA PRÁTICA DE TORTURA. AUSÊNCIA DE VEROSSIMILHANÇA NAS DECLARAÇÕES PRESTADAS PELOS POLICIAIS MILITARES. PROVA DA EXISTÊNCIA DE LESÃO CORPORAL. ARMA DESMUNICIADA. AUSÊNCIA DE OFENSIVIDADE AO BEM JURÍDICO TUTELADO PELA NORMA PENAL. ATIPICIDADE. Apelante processado, acusado da prática dos delitos descritos nos artigos 12 da Lei 6.368/76 e artigo 14 da Lei 10.826/03. Prisão em flagrante em 20 de dezembro de 2005. Policiais Militares que, após recebimento de denúncia anônima, encontraram a droga e arma enterrada no quintal do apelante. Apelante que se encontrava em casa alheia. Ausência de elementos concretos que permitam concluir a forma como o apelante foi efetivamente conduzido à sua residência e de modo espontâneo informou a localização da droga. Exame de corpo de delito realizado no apelante que comprova a existência de lesões a corroborar a tese de que o réu só poderia ter voltado para a sua casa coagido. Falta de consentimento para o ingresso na residência. Artigo 5o, inciso XI, da Constituição da República que assinala ser a casa é asilo inviolável e nestes termos limita, de modo significativo, os casos de restrição desta inviolabilidade. De fato, o domicílio não pode servir de porto seguro para a prática de delitos, de sorte que a Constituição da República, atenta ao dever do Estado de prover a segurança das pessoas, permite que haja ingresso não consentido em casa alheia, quando houver situação de flagrante delito. Daí é impossível deixar de considerar que a entrada na residência de alguém, sem expressa autorização do morador, depende da existência de justa causa, que na hipótese constitui-se de suspeita séria acerca do desenrolar atual de um delito, não constatada nos autos. Invasão de domicílio que não estava legalmente amparada em eventual prova colhida e nestes termos é ilícita. Inexistência de outras provas capazes de sustentar a pretensão acusatória. Absolvição que se impõe.

Omissis...

Em outro julgado, que ficou conhecido como “O Caso das Inglesas” (Apelação Criminal 0189866-10.2009.8.19.0001), em seu voto vencedor, o Des. Geraldo Prado nos brinda com a seguinte lição, em tudo aplicável ao caso concreto (grifei):

Igualmente, incabível a invocação do flagrante delito como legitimador do ingresso não autorizado no quarto das acusadas, pois não havia qualquer notícia prévia do estado de flagrância senão a simples suspeita do policial XXXXXXXXX, motivada pelo fato de as acusadas estarem na posse de seus passaportes.

Por isso não se legitima a ação policial, neste caso, pelo estado de flagrância. Para isso seria necessário que, antes, houvesse fundadas razões de que o quarto das rés funcionava como local de prática de crime(s).

O ingresso não pode decorrer de um estado de ânimo do agente estatal no exercício do poder de polícia. Ao revés, é necessário que fique demonstrada a fundada - e não simplesmente íntima - suspeita de que um crime esteja sendo praticado no interior da casa em que se pretende ingressar e que o ingresso tenha justamente o propósito de evitar que esse crime se consume.

Se assim não fosse, seria permitido ingressar nas casas alheias, de forma aleatória, até encontrar substrato fático consistente em flagrante delito, capaz de ensejar a formal instauração de procedimento investigatório criminal.

Mais que isso, seria incentivar que a autoridade policial assim fizesse e, com a intenção de se livrar de uma eventual imputação de abuso de autoridade, "encontrasse" à força o estado de flagrância no domicílio indevidamente violado.

Não foi esse, evidentemente, o escopo do constituinte. Pelo contrário, a norma constitucional que emerge do artigo 5º, inciso XI, da Constituição da República visa justamente coibir essas práticas.

Portanto, menos ainda se sustente que – ora bolas... – trata-se de crime permanente, logo, a diligência resta legitimada ao constatar a flagrância a posteriori já que, mesmo antes, já estava de fato a transcorrer.

Tal tipo de argumento é perfeitamente válido – para períodos ditatoriais!

Nestes, se ingressa em residências ao bel prazer do agente estatal, para se procurar provas de pretensos crimes. Achadas: perfeito, pois legitimada restaria a diligência ilegítima. Não encontradas, não há problema mesmo assim: planta-se algumas[6], e voilá! Afinal, os agentes estatais precisam legitimar sua diligência sob pena de responderem por abuso de autoridade... Ah! Esqueci-me: em tempos de ditadura não há abusos de autoridade...

O pequeno problema é que não estamos mais em uma ditadura. Infelizmente (para alguns...) há normas a serem cumpridas, uma Constituição, um Código de Processo Penal, enfim: há um Estado de Direito em vigor.

E neste, diligências como esta aqui verificada são inconcebíveis.

De pouco importa tratar-se de crimes permanentes. Não é disso que se trata aqui. O que estamos a analisar são os meios de prova utilizados para a demonstração daqueles crimes, e a busca e apreensão é um meio de prova (artigo 240 e seguintes do Código de Processo Penal) que, para ser reputada legal e legítima, há de observar a própria Lei e a Constituição Federal, o que não ocorreu no caso em exame, conforme demonstrado.

Ressalte-se que recentemente o Plenário do Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento do Recurso Extraordinário nº 603616, com repercussão geral reconhecida (tema 280) e, por maioria de votos, firmou a tese de que “a entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade dos atos praticados”.

Tal posicionamento em boa hora vem em respaldo do entendimento aqui adotado na medida em que, como visto e devidamente fundamentado, uma simples denúncia anônima não configura fundadas razões para a vulneração da inviolabilidade de domicílio. Do contrário, estará definitivamente instaurada a chancela judicial ao arbítrio policial -  e o último a sair que apague a luz!

Ingo Sarlet comunga do posicionamento aqui adotado, salientando que: “(...)a mera informação, de que o réu é traficante, situa-se na esfera das suposições. Da mesma forma, dizer que nos crimes de natureza permanente, tal qual o tráfico de drogas, o estado de flagrante se mantém, o que é dogmaticamente correto, não significa dizer que vaga suspeita de prática de crime de tráfico de entorpecentes coloca o suspeito em estado de flagrância e, assim, afasta o direito à inviolabilidade do domicílio. Diversamente, a situação de flagrante, mesmo de um crime permanente, é dinâmica, e demanda, para sua mínima caracterização, amparo em fatos concretos e atuais, que hão de ser, ao menos, passíveis de exteriorização e individuação”. [7]

De todo o exposto, preliminarmente declaro ilícitas as provas contidas nos autos (em específico a própria apreensão da materialidade do crime e, por derivação, o laudo prévio e definitivo, assim como os depoimentos dos policiais militares) e, por decorrência, ausente justa causa lícita, rejeito a denúncia ofertada em face de xxxxx e xxxxx na forma do inciso III do artigo 395 do Código de Processo Penal.

Vista ao Ministério Público.

Preclusa a presente decisão, oficie-se visando a destruição dos bens ilícito apreendidos, proceda-se na forma do artigo 123 do Código de Processo Penal quanto aos demais bens, comunique-se, anote-se, dê-se baixa e, tudo feito, arquive-se.

Rio de Janeiro, 16 de novembro de 2015.

Marcos Augusto Ramos Peixoto

Juiz de Direito

 

[1] Castanho de Carvalho, L.G. Grandinetti; Processo Penal e Constituição, Ed. Lumen Juris, 4ª edição, 2006, pág. 87;

[2] Gomes, Luiz Flávio, e outros; Comentários às Reformas do Código de Processo penal e da Lei de Trânsito, Ed. Revista dos Tribunais, 2008, pág. 281;

[3] Castanho de Carvalho, L.G. Grandinetti, op.cit., pág. 88;

[4] Em tradução livre: “isso implica a revalorização do homem, em toda a complicada rede de instituições processuais que só têm um significado se se entendem por sua natureza e por sua finalidade política e jurídica de garantia daquele supremo valor que não pode vir sacrificado por razões de utilidade: o homem”.

[5] Lopes Jr. Aury; Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional, Ed. Lumen Juris, 2008, pág. 550/51.

[6] Não se está aqui afirmando que assim procederam os policiais. O mero risco e possibilidade concreta de que tal ocorra é onde mora o problema.

[7] SARLET, Ingo Wolfgang, Decisão do STF sobre violação do domicílio indica posição prudencial, em http://www.conjur.com.br/2015-nov-13/direitos-fundamentais-decisao-stf-violacao-domicilio-indica-posicao-prudencial, consultado aos 16 de novembro de 2015.


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