O Juiz Marcos Augusto Ramos Peixoto proferiu decisão na 43a Vara Criminal da Comarca da Capital do Rio de Janeiro (TJRJ), na data de hoje (Processo nº 0017476-58.2014.8.19.0001), em que reconhece as contradições dos depoimentos policiais, incapazes de sustentar um decreto condenatório. A decisão não trata como melhor ou pior o depoimento policial a priori, aliás, erro reiterado. A coerência do depoimento somente se sustenta no contexto dos autos. E no caso redundou em absolvição. Vale conferir abaixo.
Segue a decisão na íntegra:SENTENÇA
O Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro ofertou denúncia em face de XXX imputando-lhe a prática da conduta tipificada no artigo 33 da Lei 11343/2006, narrando os fatos contidos na petição inicial de fs. 02/02A, que veio instruída pelos autos de Inquérito Policial instaurado por força de prisão flagrancial acostado às fls. 02/26.
Admitido o prosseguimento da denúncia às fls. 31/32, mesma oportunidade em que foi deferida liberdade provisória ao denunciado.
“Defesa prévia” apresentada à fl. 48.
Laudo de Exame de Corpo de Delito à fl. 51.
Citação regular à fl. 57.
Recebimento da denúncia à fls. 58/59.
Laudo de Exame em Material à fl. 79.
Audiência de Instrução e Julgamento às fls. 87/88, oportunidade em que foi colhido o depoimento de uma testemunha arrolada pela acusação (fl. 89) por registro audiovisual digital.
Folhas de Antecedentes Criminais às fls. 93/96 e 101/103.
Nova Audiência de Instrução e Julgamento às fls. 109/110, quando foi decretada a revelia do acusado e ouvida outra testemunha arrolada pelo Ministério Público (fl. 111).
Laudo de Exame de Material Entorpecente às fls. 119/120.
Alegações finais pelo Ministério Público às fls. 122/126 requerendo a condenação do réu nos termos da denúncia.
Alegações finais pela Defensoria Pública em prol do acusado às fls. 129/132 requerendo sua absolvição.
É, em síntese, o relatório. DECIDO.
Conferindo análise às provas contidas no feito, e iniciando pela apreciação dos testemunhos colhidos, temos o que segue:
YYY – que estavam de serviço fazendo um patrulhamento quando receberam “uma denúncia de um baile funk”; que adentraram a comunidade após pedirem autorização à supervisão; que ao adentrarem “houve aquela correria normal, de sempre” e, num dos becos da comunidade abordaram esse rapaz de nome XXX, que depois ficaram sabendo possuir o vulgo “olho de gato”; que ele estava com uma pochete à tiracolo, estando a bolsa embaixo do braço; que com ele estava uma quantidade de cocaína e maconha, pelo que se recorda; que acha que era maconha e cocaína; que ele nada disse ao ser preso; que naquele local atua o Comando Vermelho; que aquele local é conhecido como boca de fumo; que ele não poderia estar naquele local sem fazer parte do Comando Vermelho.
ZZZ – que os fatos são verdadeiros; que é policial militar; que estavam em patrulhamento quando viram um movimento de um baile funk; que entraram na favela e constataram um elemento com uma bolsa pendurada ao pescoço; que abordado constataram que se tratava de drogas, e encaminharam à Delegacia; que ele estava no interior da favela, em local tido como ponto de venda de drogas; que não viu ato de mercancia; que chamou a atenção o ato do rapaz vindo rápido de bicicleta na direção da viatura; que salvo equivoco era uma bolsa feminina pendurada ao pescoço; que não se lembra quais as drogas; que não havia arma; que não se recorda da versão apresentada pelo detido face ao tempo decorrido; que apresentada a foto de fl. 19, o depoente o reconhece como o cidadão detido.
A materialidade do delito imputado ao acusado encontra-se cabalmente demonstrada pelo Laudo de fls. 119/120, não havendo controvérsia a este respeito.
Não obstante isto, impõe-se o decreto absolutório.
Primeiramente é importante ressaltar que os depoimentos unicamente de policiais militares devem ser apreciados e considerados com redobrada cautela face ao concreto risco sempre existente no sentido de que estejam a tentar encobrir eventuais irregularidades com o objetivo de legitimar suas atuações.
Não há dúvida que não se pode inquinar os depoimentos de policiais de forma apriorística como insinceros, maliciosos, mentirosos (ou coisas piores...), mas em cada caso concreto há de se aplicar detida, meticulosa análise de seus depoimentos a fim de evitar que o Poder Judiciário corrobore atitudes ilegais dando ensejo à condenações espúrias.
Cumpre salientar que este magistrado comunga do entendimento no sentido de que “o depoimento de policial é válido como qualquer outro, podendo servir de base para sentença condenatória, mormente quando a Defesa não apresenta no curso da instrução qualquer tipo de prova que possa levar o julgador a desconsiderá-lo” (7ª CCrimTJERJ, Ap.Crim.2575/2007, ac.unân., 27/09/2007, Rel. Des. Geraldo Prado). Entrementes – sobretudo depois de inúmeras e lamentáveis notícias de operações policiais flagrantemente inconstitucionais pelas mais variadas razões – impõe-se a aplicação deste entendimento cum grano salis, i.e., com um grão de sal, cuidadosamente, meticulosamente.
Pois bem: sabemos que indícios e presunções, se dispõem de força na esfera cível onde vigora o princípio da verdade formal, não têm o mesmo vigor no âmbito criminal que, se imiscuindo com direito primordial do ser humano - qual seja, a liberdade – é instruído essencialmente pelo princípio in dubio pro reo, corolário direto do princípio constitucional da presunção de inocência, que há de ser cabalmente desconstituída pela acusação de modo a alcançar a almejada condenação.
Como sustenta Natalie Ribeiro Pletsch, na excelente monografia Formação da Prova no Jogo Processual Penal – o atuar dos sujeitos e a construção da sentença, via de regra “não é preciso trazer aos autos elementos de prova para atestar que o acusado é inocente, já que esta presunção deve ser destruída pela prova – e não construída –, conforme orientação imposta pela Constituição da República”.[1]
De outro lado, não são suficientes para ensejar a condenação exclusivamente as provas coletadas na fase de inquérito policial; estas, muito embora possam ser tomadas como indícios, devem ser corroboradas pela prova produzida em Juízo, esta sim realizada sob o crivo do contraditório, do devido processo legal e da ampla defesa, isto sob pena de não restarem demonstradas a contento as imputações iniciais, implicando na absolvição. É o que ensina André Nicolitt: “Como registramos, o devido processo legal é um conjunto de princípios, como o contraditório, a ampla defesa, a presunção de inocência, a motivação etc. Aqui isto fica muito evidente, pois temos que trabalhar também com o princípio da presunção de inocência, o que impõe à acusação o ônus da prova e ainda como regra de julgamento o in dubio pro reo. Destarte, se a prova produzida sob o crivo do contraditório, por si só, é incapaz de possibilitar a formação de um juízo condenatório, está evidenciada insuficiência de prova, impondo-se a absolvição do réu”.[2]
Ademais, como já lembrado, o ônus da prova no que tange às imputações contidas na denúncia compete à acusação, não cabendo aos réus, a princípio, fazer prova negativa. Neste sentido o posicionamento adotado por Aury Lopes Júnior:
“A partir do momento em que o imputado é presumidamente inocente, não lhe incumbe provar absolutamente nada. Existe uma presunção que deve ser destruída pelo acusador, sem que o réu (e muito menos o juiz) tenha qualquer dever de contribuir nessa desconstrução (direito de silêncio - nemo tenetur se detegere).
FERRAJOLI esclarece que a acusação tem a carga de descobrir hipóteses e provas, e a defesa tem o direito (não dever) de contradizer com contra-hipóteses e contraprovas. O juiz, que deve ter por hábito profissional a imparcialidade e a dúvida, tem a tarefa de analisar todas as hipóteses, aceitando a acusatória somente se estiver provada e, não a aceitando, se desmentida ou, ainda que não desmentida, não restar suficientemente provada.
É importante recordar que, no processo penal, não há distribuição de cargas probatórias: a carga da prova está inteiramente nas mãos do acusador, não só porque a primeira afirmação é feita por ele na peça acusatória (denúncia ou queixa), mas também porque o réu está protegido pela presunção de inocência”. [3]
Ora, no feito em exame, as contradições encontradas nos depoimentos dos policiais militares ouvidos em Juízo são tantas e tamanhas que aparentam, os dois, terem participado de operações diversas! Vejamos: um menciona que o réu estava numa bicicleta (aliás, se havia mesmo bicicleta, onde está o bem? Não foi apreendido... Foi abandonado no local pelos policiais?), enquanto o outro nada diz; um menciona correria, e o outro nada fala; um diz que o acusado trazia uma bolsa tipo feminina ao pescoço, enquanto outro afirma que o denunciado estava com uma pochete à tiracolo embaixo do braço; para um, foram à favela investigar uma “denúncia de baile funk” (como se se tratasse de algo ilegal...) pedindo antes autorização à supervisão, enquanto outro diz que já estavam em patrulhamento quando avistaram o tal baile funk e acorreram ao local. Para coroar o festival de contradições: os dois não se lembram com precisão sequer da natureza das drogas apreendidas.
Impossível fundamentar legitimamente uma condenação em prova desta natureza.
Em suma, se alguns parcos fatores levam a suspeitar que o réu estaria envolvido com o crime ora apreciado, não há certeza, não há prova, enfim, por ausência de respaldo probatório idôneo não foi formado pelo Juízo o convencimento indispensável ao decreto condenatório.
Assim é que na esfera penal, diante da dúvida, há que se absolver: in dubio pro reo. Adequa-se com perfeição à hipótese em análise a precisa lição do ilustre Des. Álvaro Mayrink da Costa, verbis (grifei):
Prova. Dúvidas. “In dubio pro reo”. Absolvição.
Se diante do fato há duas versões, uma fornecida pela declarada vítima e outra pelo acusado, não se trata de questionar o velho adágio testius unus, testius nullus, mas de constatar dentro do conjunto probatório na variante de possibilidades a versão cabal, firme e inconteste da dinâmica do acontecer, caso contrário, diante da intranqüilidade da dúvida, o único caminho que resta ao julgador sereno e imparcial é a aplicação do consagrado princípio in dubio pro reo ínsito no artigo 386, VI, do Código de Processo Penal. Recurso do órgão do Ministério Público improvido. [4]
No mesmo sentido a lição de outros Tribunais da Federação (grifei):
APELAÇÃO CRIMINAL - ART. 33, CAPUT, DA LEI 11.343/06 (DOIS DENUNCIADOS), ART. 180, CAPUT, DO CÓDIGO PENAL (UM DENUNCIADO) E ART. 155, CAPUT, DO CÓDIGO PENAL (UM DENUNCIADO) - EXARADO DECRETO CONDENATÓRIO NO JUÍZO SINGULAR - RECURSO DA DEFESA DOS CONDENADOS PELO ART. 33, CAPUT, DA LEI DE TÓXICOS - ARGUIÇÃO DE CARÊNCIA DE PROVAS PARA ESTEAR A CONDENAÇÃO - PROCEDÊNCIA ARGUMENTATIVA RECURSAL - MATERIALIDADE E AUTORIA INDEMONSTRADAS - AUTORIAS, PELOS RECORRENTES, SINALIZADA COMO MERA POSSIBILIDADE - INEXISTÊNCIA DE PROVA CABAL - APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO - RECURSOS PROVIDOS. "A condenação criminal, com todos os seus gravames e consequências, só pode apoiar-se em prova cabal e estreme de dúvidas, pois presunções e meros indícios não ostentam aquelas qualidades de segurança e certeza, pelo que não servem para fundamentar um decreto condenatório." (ex-TACRIM - SP - Rel. Pires Neto - RJD 13/145) "É preferível a absolvição de culpado, por deficiência de provas, à condenação de inocente com provas deficientes." (ex-TACRIM/SP - Rel. Geraldo Ferrari - JUTACRIM 55/417).
(6247561 PR 0624756-1, Relator: Eduardo Fagundes, Data de Julgamento: 06/05/2010, 5ª Câmara Criminal, Data de Publicação: DJ: 392)
TRÁFICO - PROVA INSUFICIENTE - ABSOLVIÇÃO MANTIDA. Inexistindo prova segura de que a substância entorpecente apreendida era também comercializada pelos acusados, em obediência ao velho brocardo do 'in dúbio pro reo', impõe-se manter a absolvição, pois é preferível absolver um culpado que condenar um inocente, vez que para se absolver não é necessário a certeza da inocência, bastando somente a dúvida quanto à culpa. Recurso improvido.
(101450419244010011 MG 1.0145.04.192440-1/001(1), Relator: ANTÔNIO ARMANDO DOS ANJOS, Data de Julgamento: 12/09/2006, Data de Publicação: 27/09/2006)
APELAÇÃO CRIMINAL - CRIME CONTRA OS COSTUMES - VÍTIMA MENOR - TESTEMUNHOS PRESENTES NOS AUTOS FIRMES E COERENTES QUE BENEFICIAM O RÉU - MATERIALIDADE E AUTORIA DÚBIAS - PRINCÍPIO DO IN DUBIO PRO REO - DECISUM ABSOLUTÓRIO MANTIDO - RECURSO DESPROVIDO É sabido que em crimes contra a liberdade sexual, geralmente praticados na clandestinidade, as declarações da vítima são de forte valor probante, desde que não desmentidas ou não se revelem ostensivamente mentirosas ou contrárias aos demais elementos das provas existentes nos autos. Havendo um mínimo de incerteza quanto às declarações, torna-se preferível absolver mil culpados do que condenar um inocente.
(274440 SC 2002.027444-0, Relator: Solon d´Eça Neves, Data de Julgamento: 03/06/2003, Primeira Câmara Criminal, Data de Publicação: Apelação Criminal n. 2002.027444-0, de Criciúma.)
Pelo que foi exposto e devidamente fundamentado, julgo totalmente improcedente o pedido formulado na denúncia para absolver, como de fato absolvo XXX, da acusação de prática do delito tipificado no artigo 33 da Lei 11343/2006, com fulcro no inciso VII do artigo 386 do Código de Processo Penal. Sem custas.
Vista ao Ministério Público
Intime-se o acusado revel por edital com prazo de trinta dias para ciência da sentença e do prazo recursal, bem como para comparecer à Defensoria Pública com urgência, devendo, outrossim, informar se pretende recorrer e, após, transcorrido o prazo, dê-se vista à Defensoria.
Transitada em julgado, proceda-se às comunicações e anotações devidas, oficie-se determinando a inutilização dos entorpecentes apreendidos, expeça-se Alvará para devolução ao réu da pochete apreendida, dê-se baixa e arquive-se.
Rio de Janeiro, 6 de março de 2015.
Marcos Augusto Ramos Peixoto
Juiz de Direito
[1] Pletsch, Natalie Ribeiro, Formação da Prova no Jogo Processual Penal, IBCCRIM, 1ª edição, 2007, pág. 71.
[2] Nicolitt, André; Manual de Processo Penal, Ed. Campus Jurídico, 1ª edição, 2009, pág. 358;
[3] Lopes Jr., Aury; Direito Processual Penal, Ed. Saraiva, 11ª edição, 2014, pág. 562;
[4] Costa, Álvaro Mayrink da; Casos em Matéria Criminal, Ed. Forense, 3a edição, 1995, pág. 613.