Juiz concede indulto a condenada por "tráfico privilegiado"

17/09/2016

Por Redação-17/09/2016

O juiz da Vara de Execuções Criminais de Manaus,  Luís Carlos Valois Coelho, concedeu, na última sexta-feira (16), indulto a uma condenada por crime de "tráfico privilegiado".

A decisão se fundamenta no entendimento do STF- HC 118.552, que retirou o caráter hediondo dos crimes de tráfico "privilegiado"- aquele em que o acusado é primário e praticou alguma das condutas do art. 33 da Lei de Drogas apenas de forma eventual- , na política de guerra às drogas e na redução de danos.

  Confira a decisão:   Autos n°: 0208398-05.2016.8.04.0001   Vistos,  

JBN[....], condenada pela prática do delito do art. 33, §4º, da Lei 11.343/2006, cumprindo pena privativa de liberdade devidamente executada nestes autos, teve incidente instaurado para a concessão de INDULTO com base no Decreto Presidencial n. 8.615/2015, havendo certidão nos autos informando  bom comportamento carcerário.

O Ministério Público, sucintamente, não se opôs ao pedido.

É o relatório. DECIDO.

O indulto é causa extintiva da punibilidade que está sob a discricionariedade do Presidente da República, cabendo a este juízo tão somente, e fundamentadamente, declarar a apenada como enquadrada nas hipóteses do ato presidencial.

Estabelece o referido decreto presidencial, no que é relevante para o presente incidente:

"Art. 1º  É concedido indulto às pessoas, nacionais e estrangeiras: (...)XVI - condenadas a pena privativa de liberdade, que estejam em livramento condicional ou cumprindo pena em regime aberto, cujas penas remanescentes, em 25 de dezembro de 2015, não sejam superiores a oito anos, se não reincidentes, e a seis anos, se reincidentes, desde que tenham cumprido um quarto da pena, se não reincidentes, ou um terço, se reincidentes ;"

A pena aplicada à sentenciada, de quatro anos, dez meses e dez dias de reclusão, com efeito, já está cumprida em fração superior a um quarto, estando a apenada em regime aberto, conforme se verifica na análise da guia de recolhimento, documento que instrumentaliza e serve de parâmetros para o processo de execução.

A pena aplicada e o período de pena cumprido, somados à ausência de infração disciplinar (requisito subjetivo disciplinado no art. 5º do mesmo decreto) indicam que realmente a apenada preenche os requisitos do decreto.

A pena ora executada foi alcançada pelo indulto graças à mudança de posicionamento do Supremo Tribunal Federal que, no HC 118.552, afastou a possibilidade de se considerar crime hediondo, ou assemelhado, o chamado tráfico privilegiado, aquele em que o acusado é primário e praticou alguma das condutas do art. 33 da Lei de Drogas apenas de forma eventual.

Embora a Constituição Federal não vede expressamente a concessão de indulto aos chamados crimes hediondos e assemelhados, a Lei 8.072/90, que relaciona os crimes com essa adjetivação, resolveu ampliar a proibição, conduta legislativa que acabou sendo incorporada nos próprios decretos de indulto, aceita na prática judicial, apesar da constitucionalidade duvidosa.

Há que ficar registrado que a apenada é a primeira pessoa, entre os mais de 12 mil processos desta Vara de Execuções Penais, condenada por tráfico privilegiado, que tem sua pena atingida pelo decreto de indulto, como também deve ficar registrado não ser surpresa ser essa pessoa uma mulher.

A guerra às drogas fez com que, em 15 anos, se aumentasse em 500% o número de mulheres encarceradas no Brasil (Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – Infopen), e a maioria dessas mulheres efetivamente foi condenada pelo mesmo crime, o do art. 33, §4º, da Lei de Drogas, ou seja, são pessoas envolvidas de forma esporádica com o comércio das substâncias tornadas ilícitas.

Tal fato não passou despercebido no voto do Min. Ricardo Lewandowski, relator do Habeas Corpus citado acima, de que, em se tratando de encarceramento de mulheres há "uma realidade ainda mais brutal: 68% das mulheres em privação de liberdade (e hoje já, lamentavelmente, somos a quinta maior população [carcerária] do planeta levado em conta o número de mulheres presas) estão envolvidas com tipos penais de tráfico de entorpecente"; isso enquanto a proporção geral, somados homens e mulheres, é de 28%.

Também foi objeto do mesmo voto o reconhecimento da vulnerabilidade da mulher nesses tipos de crime, seja em razão da submissão quase regra imposta às mulheres na sociedade brasileira, principalmente nas camadas mais pobres da população, seja por essas mulheres "estarem em lugares onde se produzia ou armazenava tais produtos ilícitos, o que as tornam cúmplices, digamos assim involuntárias, não obstante vinculadas à ação criminosa", nas palavras do próprio Ministro Relator.

As aspas acima são extremamente necessárias, porque é o próprio judiciário que tem permitido a prisão de mulheres cúmplices involuntárias no Brasil. É a jurisprudência brasileira, inclusive a do STF, que tem permitido milhares de invasões de domicílio sem mandado, com base na simples suspeita, relatada a posteriori, pela autoridade policial (RE 603616, Relator Min. Gilmar Mendes, j. 05.11.15).

Tudo a despeito da doutrina, que tem criticado severamente a interpretação de que a polícia pode invadir a casa de qualquer pessoa em razão da suspeita de lá existir substância proibida. Como afirma Alexandre Moraes da Rosa, "nem se diga que depois se verificou o flagrante porque quando ele se deu já havia contaminação pela entrada inconstitucional" (Guia compacto do processo penal conforme a teoria dos jogos, 2013, p. 124 – grifo no original).

Nessas situações, é a mulher, a que fica mais em casa, a primeira a ser presa, indiciada e condenada, não importando a sua consciência a respeito da substância que era mantida em sua residência. A mulher pobre, há que se ressaltar, porque a polícia não invade casas e apartamentos de luxo sem estar munida do devido mandado.

Em pesquisa realizada para tese de doutorado junto à Universidade de São Paulo, em quatro Estados da Federação mais o Distrito Federal, pudemos perceber que 57,57% das mulheres presas, foram presas em suas casas (O direito penal da guerra às drogas, 2016, p. 627).

Essa digressão toda se deve, apesar de a pena estar objetivamente enquadrada no decreto de indulto, ao fato de que é novo o posicionamento do judiciário brasileiro sobre a possibilidade dessa causa de extinção de punibilidade e, infelizmente, em casos de desencarceramento, a sociedade pede muito mais justificativas do judiciário.

A sociedade ainda não chegou à conclusão óbvia que o encarceramento, longe de diminuir a criminalidade, a tem agravado. Principalmente em casos como este em que a pessoa se envolve em uma relação comercial, um crime sem violência, e é obrigada a conviver em um estabelecimento penal com apenados por roubo, homicídio, latrocínio etc.

Por isso, a possibilidade de aplicação de indulto às pessoas que cometeram o delito de tráfico de drogas na forma privilegiadas, ou seja, sendo primárias e não estando envolvidas com o crime organizado, não ajudará muito nesse estado de coisas, posto que o indulto apenas abrevia parte da pena, normalmente em regime mais brando, como no caso em questão.

Acontece que o judiciário reconhece a desproporcionalidade da pena nesses casos, e até a injustiça da aplicação da própria sanção, como bem se observa no voto do ministro relator do HC 118.552 do STF, sendo o indulto ora concedido uma forma de "redução de danos" do dano maior em que se constitui o próprio encarceramento inicial.

ISTO POSTO, declaro a pena de JBN atingida pelo Decreto Presidencial n. 8.615/2012, de 23 de dezembro de 2015, o qual lhe concedeu INDULTO, e, em cumprimento à competência atribuída a este juízo pelo art. 66, II, da Lei de Execução Penal, julgando EXTINTA A PUNIBILIDADE relativamente à pena que lhe foi aplicada neste processo para, em consequência, determinar a expedição do competente Alvará de Soltura.

P.R.I.. Manaus, 16 de setembro de 2016   LUÍS CARLOS VALOIS COELHO Juiz da Vara de Execuções Penais   .      
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