Por Redação
A apresentação intempestiva das razões recursais tem sido objeto de inúmeras discussões na atualidade, uma vez que o desrespeito ao limite imposto pela lei penal é hoje considerado pela maioria mera irregularidade, que não obsta o conhecimento recursal pelos Tribunais, especialmente quando a demora parte do órgão ministerial. Contudo, para que o princípio igualitário, bem como o da duração razoável do processo, sejam efetivamente respeitados, mudanças nesse cenário são cada vez mais necessárias.
Conforme bem salientado por Alexandre Morais da Rosa e Aury Lopes Jr., “precisamos levar a sério o devido processo legal e começar a reconhecer que os prazos para apresentação das razões recursais, complementares à manifestação do desejo recursal, constituem-se como instrumento de garantia do fair play. Não se pode pensar sequer em demora justificada, uma vez que os prazos são peremptórios e organizadores da dinâmica processual. Pensar o contrário é fazer letra morta às regras procedimentais que, no caso, não se constituem em privilégio do Ministério Público e do Juiz. Devem ser cumpridos.
Não apresentadas as razões no prazo de lei, portanto, o recurso não congrega a respectiva motivação e, por via de consequência, não deve ser conhecido por ser parcial na sua estrutura normativa. Cada vez mais precisamos levar o processo a sério”. (Confira aqui a íntegra do artigo no Conjur).
Nesse sentido, leia abaixo a íntegra da decisão proferida na Apelação Criminal n. 0000630-29.2014.8.06.0000, em que foi Relator o Desembargador Francisco Pedrosa Teixeira, da Primeira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, publicada em 10 de novembro de 2014. No caso em questão as razões de recurso foram apresentadas 02 anos (!) após a interposição do recurso.
Processo: 0000630-29.2014.8.06.0000 - Apelação
Apelante: Ministério Público do Estado do Ceará
Apelado: F.D.F. da S.
EMENTA: PENAL. PROCESSUAL PENAL. APELAÇÃO. HOMICÍDIO QUALIFICADO. LEGÍTIMA DEFESA PRÓPRIA. TESE ACATADA PELO COLEGIADO LEIGO. APELAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. PRELIMINAR DE INTEMPESTIVIDADE DO RECURSO. ACOLHIMENTO POR UNANIMIDADE. MÉRITO PREJUDICADO.
- Pacífica a jurisprudência, inclusive nos Tribunais Superiores, em regra, que a apresentação intempestiva das razões recursais constitui mera irregularidade, não obstando o conhecimento do inconformismo ministerial.
- Todavia, a Carta Magna/88 é de ser preservada, máxime no que tange à cláusula da razoabilidade de duração do processo. Na espécie, o Júri se realizou em 16/11/2011 (fls. 421/422), tendo o Parquet tomado ciência do veredicto absolutório em plenário, manifestando na sessão a intenção de recorrer, somente juntando as razões recursais em 25/11/2013 (fl.444), ou seja, mais de dois (02) anos depois.
- Portanto, admitida a mora procedimental, acolhendo-se, excepcionalmente, a preliminar de intempestividade, em face do desrespeito à razoável duração de processo, de feição constitucional (art. 5º, inciso LXXVIII da LEX MATER), daí não se conhecer da insurgência, dando-se como prejudicado o mérito recursal.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação nº 0000630-29.2014.8.06.0000, oriundos do Juízo da Vara Única da Comarca de Pedra Branca/CE, em que figuram como apelante e apelados, respectivamente, o Ministério Público e F.D.F. da S..
Acordam os Desembargadores integrantes da 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, por unanimidade, em acolher, excepcionalmente, a preliminar de intempestividade das razões recursais ministeriais, consequente prejudicialidade do mérito, em dissonância com o parecer da ilustrada Procuradoria Geral de Justiça.
Fortaleza, 7 de outubro de 2014.
FRANCISCO PEDROSA TEIXEIRA
Relator e Presidente do Órgão Julgador
RELATÓRIO
O Ministério Público oficiante na Vara Única da Comarca de Pedra Branca/CE denunciou (fls.03/07) F.D.F. da S., qualificado nos autos, como incurso nas sanções do artigo 121, parágrafo 2º incisos II e IV do CPB, atribuindo-lhe o assassinato de P. de M.C., fato ocorrido na noite de 17 de abril de 2009, no distrito de Cruzeta, naquela urbe.
Ultrapassada a instrução processual, com o resguardo do contraditório e da ampla defesa, o apelado restou pronunciado (fls.273/277), nos termos da vestibular acusatória.
Recurso em Sentido Estrito interposto (fls.290/298), findou inacolhido pela egrégia 1ª Câmara Criminal (fls.365/367).
Decisão de pronúncia transitada em julgado (fls.371), consequente submissão do réu a julgamento, ocasião em que o colegiado leigo rechaçou a tese ministerial, acolhendo a legítima defesa própria, absolvendo o indigitado da acusação (fls.421/422).
Recurso do Ministério Público, argüindo a nulidade do julgamento, com espeque no art. 593, III, 'd' do CPP (fls.433/444).
Contra-razões pugnando, inicialmente pelo não conhecimento do apelo, pela intempestividade das razões recursais, e, no mérito, pela manutenção da decisão dos juízes leigos, arrimando-se, basicamente, na soberania do Júri (fls.449/466).
Nesta Superior Instância, os autos foram com vista à ilustrada Procuradoria Geral de Justiça, que opinou pelo provimento do recurso (fls.479/483), entendendo que ao Júri incumbia reapreciar a matéria, já que a decisão objurgada se deu em desarmonia com a prova colacionada.
É o relatório.
VOTO
No apelatório, como se infere, o Parquet objetiva ver desconstituído o veredicto do Conselho de Sentença da Vara Única da Comarca de Pedra Branca/CE, que acatou a tese de legítima defesa própria, disso resultando a inocentação do réu.
Consta dos autos que, no dia 17 de abril de 2009, por volta das 22:00 horas da noite, no distrito de Cruzeta, município de Pedra Branca, o apelado F.D.F. da S., utilizando-se de instrumento pérfuro contundente (revólver) efetuou disparos que provocaram a morte da vítima.
Consoante a acusatória, a vítima estava sozinha, em seu veículo, nas proximidades do Bar da Í., momento em que o indigitado teria efetuado disparos, sem atingi-la.
Ato contínuo, a vítima fugiu do local, em direção à Cidade de Independência/CE, sendo perseguida pelo acusado que, ao alcançá-la, juntamente com seu primo J.D. (D.) teria disparado a arma, atingindo o antagonista na perna.
Em seguida, ainda conforme a exordial, o ferido teria recebido soco desferido pelo adolescente, momento em que caiu, sobrevindo outros disparos que lhe causaram a morte (laudo de exame cadavérico-fl.11).
Saliente-se que o móvel do crime teria sido dívida que possuía o acusado com a vítima, no valor de dois mil reais (R$2.000,00).
Aduz o órgão acusador que, acatando a tese de excludente da antijuridicidade na conduta do ora apelado, o tribunal laico teria contrariado a prova acostada aos autos.
Contraarrazoando o recurso a defesa, em sede de preliminar, suscitou intempestividade do apelo, no que lhe assiste razão, como demonstrarei.
Embora o Ministério Público haja manifestado em plenário o propósito de apelar, logo após a leitura da sentença (ata de fl.423/427), a tese de apresentação intempestiva das razões recursais, é de ser analisada, preliminarmente, mesmo porque levantada pela parte adversa, preliminarmente.
Não ignoro que a jurisprudência pátria tem tolerado algum atraso na oferta da peça recursal ministerial. Isso, no entanto, somente aconteceu quando a mora se restringiu à questão de dias. Na espécie, a tardança me parece demasiada, pois superior a dois (02) anos, se considerarmos que o Tribunal do Júri se reuniu em 16 de novembro de 2011. Atravessado o inconformismo no dia seguinte (fl.430), sendo protocolado, conforme carimbo aposto, aos 18 daquele mês (fl. 430), data subsequente ao termo recursal porém dentro do quinquídio legal.
Sequenciando, o então juiz do processo (fl.431), reprisando ordem ditada na reunião do Tribunal Popular, determinou intimação das partes para oferta dos respectivos arrazoados em oito (08) dias, isso aos 23 de novembro daquele ano, sendo aberto "vista" ao apelante em 28 do mesmo mês e ano (fl.432). Eis que o recorrente, a pretexto de "grande volume de trabalho nesta Comarca", só ofertou a peça recursal em 22 de novembro de 2013, escrito recebido em 25 de novembro desse ano, repita-se, após mais de dois (02) anos do julgamento popular.
Para mim, tudo tem limites! E indago? Essa letargia não terá efeito? Poderá o réu aguardar tamanha dilação? Promotor não tem prazo? E essa conduta não fere, alerto, o dogma da razoável duração do processo, de feição constitucional (art. 5º, inciso LXXVIII da Carta/88)?
A Carta Magna, núcleo axial de todo o ordenamento jurídico há de ser respeitada, especialmente pelo operadores do Direito. Mais de dois (02) anos de espera pelas razões apelatórias do órgão acusador, constitui um verdadeiro cutelo sobre a cabeça do incriminado, já absolvido. Isso, para mim, diante da igualdade das partes, preconizada no processo penal, é exagero. Pensar o contrário é, data máxima vênia, chancelar o abuso! Afinal, cadê a igualdade das partes? Promotor não possui tamanho privilégio! E onde fica a regra do caput do art. 600 do CPP.
Assim entendendo, acolho a preliminar, conseqüente trânsito em julgado do veredicto dos juízes leigos, não me cabendo definir a justiça ou injustiça do que decidido pelos juízes leigos, em respeito à soberania do Júri, obviamente. Precedentes do STF.
Eis o que decidiram, em casos análogos, outras Cortes de Justiça do país, sub oculis:
“PROCESSO PENAL. DEMORA INJUSTIFICADA E EXCESSIVA NO OFERECIMENTO DAS RAZÕES RECURSAIS PELO MPF. INTEMPESTIVIDADE. OFENSA AO PRINCÍPIO DA RAZOÁVEL DURAÇÃO DO PROCESSO. 1. É certo que venho acompanhando o entendimento dos Tribunais Superiores, no sentido de que a apresentação a destempo de razões recursais configura mera irregularidade. In casu, porém, a demora de quase dois anos para que o órgão Ministerial oferecesse suas razões ao presente recurso fere qualquer limite de razoabilidade, além do princípio constitucional da duração razoável do processo, deixando de consistir-se em mera irregularidade e passando a hipótese de intempestividade. 2. O lapso injustificado de 2 anos se deveu exclusivamente a fatores da acusação, a que nada contribuiu a ré, sendo que o MPF, em momento algum, buscou trazer aos autos explicações para sua desídia, não podendo o Judiciário compactuar com tais comportamentos. 3. O réu não pode permanecer indefinidamente sem um mínimo de prazo para saber se responderá ou não a uma ação penal, até mesmo porque nosso sistema processual penal trabalha com prazos curtos, justamente em respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana. 4. O próprio Juiz de piso reconheceu a intempestividade das razões de recurso, decisão esta que restou irrecorrida. 5. Recurso em sentido estrito não conhecido.” (Recurso em Sentido Estrito nº 201051060007683/RJ. TRF 2ª Região. Segunda Turma Especializada. Relator: Desembargadora Federal LILIANE RORIZ. Data Decisão: 13/09/2011. Documento: TRF-200262252. Fonte: E-DJF2R - Data: 21/09/2011. Página: 25) (grifei).
“(...) As razões recursais apresentadas após dois anos interposição do recurso caracteriza violação ao art. 600 do Código de Processo Penal, devendo ser reconhecida a intempestividade do recurso. Recurso interposto pelo Ministério Público não conhecido, em razão de sua intempestividade.” (Apelação Crime nº 10183081423471001, TJMG, Relator: Amauri Pinto Ferreira (JD CONVOCADO), Data de Julgamento: 29/01/2014, Câmaras Criminais/4ª CÂMARA CRIMINAL, Data de Publicação: 04/02/2014)
Em suma, farpeado, cristalinamente, o dogma da razoável duração de processo, abuso cometido pelo órgão ministerial ao apresentar razões recursais somente dois (02) anos após o estabelecido legalmente, o que me leva, de modo inusual, ao reconhecimento da intempestividade, o que obstaculiza seu exame meritório.
Isto posto, não se conhece do recurso apelatório, restando incólume a decisão vergastada, na íntegra.
É como voto.
Fortaleza, 07 de outubro de 2014.
FRANCISCO PEDROSA TEIXEIRA
Desembargador Relator
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