Por Redação- 12/12/2016
A juíza da Vara única do Município de Quebrangulo no Alagoas, absolveu um idoso acusado inicialmente de tráfico de drogas por ter sido encontrado em sua residência pés de maconha e maconha prensada que o idoso, diagnosticado com câncer de próstata, utilizava para reduzir as dores da doença, sem prescrição médica.
Ficou comprovado nos autos que a droga apreendida na residência do idoso, de 70 anos de idade, no total de 42 gramas de semestres de maconha, 42 gramas de maconha prensada e 128 gramas de folha seca da planta eram para consumo próprio.
Inicialmente a magistrada desclassificou o delito de tráfico para art. 28 ( consumo próprio) e absolveu o acusado com fundamento na atipicidade da conduta e sustentou que "Além de todos os fundamentos jurídicos acima expostos, importante destacar que, na visão desta magistrada, não parece nada justo condenar um senhor de quase 70 (setenta) anos de idade,que não possui qualquer antecedente criminal e que vem sofrendo com câncer de próstata, por ter usado a maconha acreditando que assim teria aliviados os sintomas desta grave doença".
Confira a decisão completa da magistrada:
Autos n° 0000101-82.2015.8.02.0033
Ação: Ação Penal - Procedimento Ordinário
Vítima: A Coletividade
Réu: F.P.S
SENTENÇA
O Ministério Público Estadual ofereceu denúncia contra Francisco Pedro da Silva, devidamente qualificado na exordial, como incurso nas sanções penais previstas no art. 33 da Lei nº 11.343/06.
A denúncia narra que no dia 18 de abril de 2015, por volta das 12h, a Polícia Militar desde Município recebeu denúncias de que existia plantação de pés de maconha na residência do denunciado. Realizada a busca e apreensão, foi encontrado 42 gramas de sementes de maconha, 42 gramas de maconha prensada e 128 gramas de folhas secas de maconha.
A denúncia foi recebida em 01 de julho de 2015, fl. 29.
Citado, o acusado apresentou, através de seu advogado, resposta escrita à acusação às fls. 35/43, requerendo a rejeição da denúncia, por ter desrespeitado o rito estabelecido na Lei de Drogas, bem como que inexiste exame toxicológico nos autos.
No mérito pugnou pela atipicidade da conduta, e, caso condenado, a aplicação de atenuantes.
Feitas as devidas notificações e intimações, fora realizada no dia 12 de maio de 2016, a Audiência de Instrução e Julgamento, sendo ouvidas um declarante, uma testemunha defesa, bem como colhido o interrogatório do réu, fls. 71/75.
Em sede de Alegações finais em audiência, o Ministério Público requereu a desclassificação do crime de tráfico de drogas para o crime descrito no artigo 28 da Lei º 11.343/06, qual seja, porte de drogas para consumo pessoal. Por sua vez, a defesa do acusado, em sede de alegações finais, pugnou pela absolvição do acusado, com fundamento no artigo 386, incisos VI e VII, do CPP.
É, em síntese, o relato.
Fundamento e decido.
Inicialmente, restou comprovado, durante a instrução criminal, que o acusado não incorreu nas penas do artigo 33 da Lei nº 11.343/06, mas sim, supostamente, no crime descrito no artigo 28 da referida Lei, qual seja, porte de drogas para consumo pessoal.
Neste sentido foi o parecer ministerial, visto que todas as provas colhidas no processo indicam que o acusado detinha a droga apreendida apenas para o consumo pessoal, como se reforça na fundamentação a seguir. Ressalta-se que não há nos autos qualquer elemento que indique que o réu produzia e guardava a droga com outra finalidade que não fosse o uso pessoal.
A denúncia recebida pela Polícia Militar que gerou a instauração do inquérito policial era de que existia na casa do acusado uma plantação de maconha, mas não houve notícia de que este oferecia, vendia ou distribuía gratuitamente a droga.
Além disso, as testemunhas e os documentos acostados aos autos demonstram que o réu consumia a droga acreditando nos efeitos medicinais.
Assim, acolho o parecer ministerial e DESCLASSIFICO o delito contido na Denúncia para o crime estatuído no artigo 28 da Lei nº 11.343/06.
Com efeito, passo a analisar o mérito da questão, o que faço nos seguintes termos:
O artigo 28, § 1º da Lei nº 11.343/06 tipifica o crime de posse de drogas para consumo pessoal, in verbis:
Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:
I - advertência sobre os efeitos das drogas;
II - prestação de serviços à comunidade;
III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.
§1ºÀs mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica.
É cediço que a tipicidade da conduta do usuário de drogas não cessa de gerar inúmeras discussões jurídicas, enquanto alguns insistem em penalizar a conduta, outros sustentam a sua atipicidade. Tamanha controvérsia existente no tema, que o STF reconheceu a repercussão geral da presente questão, sendo esta discutida a luz do inciso X do artigo 5º da Constituição Federal[1] , o qual prediz que são invioláveis a intimidade e a vida privada.
Entretanto, até o presente momento não houve julgamento do referido embate perante o Pretório Excelso. Pois bem. Inicialmente, por ser fato público e notório, considerando vários estudos científicos respeitáveis e prestigiados em todo o mundo[2] , cumpre esclarecer que a droga conhecida popularmente como maconha, a qual é ilegal em nosso país, segundo defendido por diversos estudiosos, possui um grau de nocividade muito mais baixo do que oálcool e a nicotina.
Ademais, estes mesmos estudos concluíram que o THC (tetrahidrocanabinol), princípio ativo da cannabis, causa menor dependência física (química) e psíquica, em relação as citadas drogas licitas comercializadas no Brasil (álcool e nicotina)[3].
Não parece que se possa extrair a conclusão de que que o uso abusivo da maconha pode ocasionar danos a saúde, como ocorre, aliás, com qualquer substância, e não apenas com os entorpecentes, como com o açucar. Além de disso, pesquisas tem revelado benefícios terapêuticos proporcionados pela planta aos pacientes portadores de câncer, aids, glaucoma, esclerose múltipla, epilepsia, entre outras doenças[4] . Tanto é, que inúmeros países do mundo, como é o caso de Portugal, Espanha, Canadá, Uruguai, Holanda, Israel, EUA (alguns estados)[5], etc., estão tornando legal o uso medicinal e até mesmo recreativo da maconha, uma vez que levam em consideração que os benefícios superam os malefícios e a sua proibição contribui para o aumento do tráfico de drogas.
Repensar sobre a questão das drogas em nosso país é um dever dos agentes públicos, uma vez que a nossa atual política criminalizadora não tem se mostrado eficiente, pois o tráfico de substâncias ilícitas, bem como dos crimes interligados, possui notório crescimento, estando as prisões saturadas de pessoas, em regra hipossuficentes economicamente, muitos deles apenas usuários de drogas ou pequenos traficantes que não tiveram acesso a políticas públicas de qualidade.
Nas palavras do Ministro Barroso, em seu voto oral no RE 635.659:
A segunda prioridade entre nós deve ser impedir que as cadeias fiquem entupidas de jovens pobres e primários, pequenos traficantes, que entram com baixa periculosidade e na prisão começam a cursar a escola do crime, unindo-se a quadrilhas e facções. Há um genocídio brasileiro de jovens pobres e negros, imersos na violência desse sistema[6] .
Saliente-se que uma conduta somente pode ser tipificada como crime quando, além de se ajustar ao tipo penal, sob o ponto de vista formal (adequação do fato à norma), é necessário que também demonstre uma relevância material, ou seja, é a conduta que provoca uma lesão ou ameaça de lesão intolerável ao bem jurídico tutelado, consagrando, assim, o princípio constitucional da lesividade ou ofensividade. O princípio da lesividade está intimamente ligado ao princípio da alteridade, o qual estabelece que só pode ser considerada criminosa, a conduta que lesiona ou ameaça bem jurídico pertencente a terceiro.
Portanto, se a conduta não extrapola o âmbito individual, o Estado não pode criminalizar a conduta. Por conta desse princípio que não existe punição para tentativa de suicídio ou autoflagelo. Outrossim, o princípio constitucional da intervenção mínima estabelece que o Direito Penal deve somente ser aplicado apenas como ultima ratio (quando houver extrema necessidade).
Assim sendo, observa-se que não existe lesão ou ameaça de lesão provocada à bens jurídicos alheios pelo crime de porte de drogas para consumo pessoal, mas apenas uma lesão a própria saúde individual do usuário, não havendo, portanto, tipicidade material no referido crime. Invocar a saúde pública como bem jurídico violado soa incoerente, uma vez que existem drogas lícitas que matam milhares por ano, sendo necessário um gasto enorme do dinheiro público por conta disso. Ademais, criminalizar o uso de drogas acaba por afastando os usuários do sistema de saúde, principalmente pelo estigma que carrega o usuário.
De outro turno, o artigo 5º, inciso X, da Carta Magna consagra o princípio da privacidade, o qual estabelece um espaço na vida de cada cidadão que deve ser inatingível por intervenções externas, quer seja do Estado, quer seja de outros cidadãos. Obviamente este direito se restringe quando afeta o direito de outrem. Importa trazer a baila outro trecho do voto oral feito pelo Ministro Luís Roberto Barroso no RE 635.659[7] , in verbis:
É preciso não confundir moral com direito. Há coisas que a sociedade pode achar ruins, mas que nem por isso são ilícitas. Se um indivíduo, na solidão das suas noites, bebe até cair desmaiado na cama, isso não parece bom, mas não é ilícito. Se ele fumar meia carteira de cigarros entre o jantar e a hora de ir dormir, tampouco parece bom, mas não é ilícito. Pois digo eu: o mesmo vale se, em lugar de beber ou consumir cigarros, ele fumar um baseado. É ruim, mas não é papel do Estado se imiscuir nessa área. Mencione-se, ainda, que o Supremo Tribunal Federal vem entendendo que onde a quantidade de drogas apreendidas é ínfima, o magistrado deve aplicar o princípio da insignificância e, consequentemente, absolver o réu por atipicidade da conduta.
Senão vejamos:
EMENTA PENAL. HABEAS CORPUS. ARTIGO 28 DA LEI 11.343/2006. PORTE ILEGAL DE SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE. ÍNFIMA QUANTIDADE. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. APLICABILIDADE. WRIT CONCEDIDO. 1. A aplicação do princípio da insignificância, de modo a tornar a conduta atípica, exige sejam preenchidos, de forma concomitante, os seguintes requisitos: (i) mínima ofensividade da conduta do agente; (ii) nenhuma periculosidade social da ação; (iii) reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; e (iv) relativa inexpressividade da lesão jurídica. 2. O sistema jurídico há de considerar a relevantíssima circunstância de que a privação da liberdade e a restrição de direitos do indivíduo somente se justificam quando estritamente necessárias à própria proteção das pessoas, da sociedade e de outros bens jurídicos que lhes sejam essenciais, notadamente naqueles casos em que os valores penalmente tutelados se exponham a dano, efetivo ou potencial, impregnado de significativa lesividade. O direito penal não se deve ocupar de condutas que produzam resultado cujo desvalor - por não importar em lesão significativa a bens jurídicos relevantes - não represente, por isso mesmo, prejuízo importante, seja ao titular do bem jurídico tutelado, seja à integridade da própria ordem social. 3. Ordem concedida. Decisão: A Turma concedeu a ordem de habeas corpus, nos termos do voto do Relator. Unânime. (HC 110475/SC - SANTA CATARINA - Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI - Julgamento: 14/02/2012 - Órgão Julgador: Primeira Turma – Publicação PROCESSO ELETRÔNICO DJe-054 DIVULG 14-03-2012 PUBLIC 15-03-2012).
Percebe-se, assim, diante dos princípios constitucionais da lesividade, alteridade, intervenção mínima, privacidade, e mesmo diante do princípio da insignificância, deve ser considerada atípica a conduta praticada pelo réu no presente caso.
Nesse sentido:
EMENTA: ART. 28 DA LEI 11.343/06 – APELAÇÃO - APREENSÃO DE QUANTIDADE ÍNFIMA DE SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE DESTINADA A CONSUMO PRÓPRIO DO RÉU - ATIPICIDADE DA CONDUTA DIANTE DA INCONSTITUCIONALIDADE DESSA NORMA INCRIMINADORA – CONDUTA GARANTIDA PELO DIREITO À VIDA PRIVADA E À INTIMIDADE (ART. 5º, X, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA) – AUSÊNCIA DE LESIVIDADE A BEM JURIDICO RELEVANTE – APLICABILIDADE TAMBÉM DOS PRINCÍPIOS DA INTERVENÇÃO MÍNIMA E DA INSIGNIFICÂNCIA. SENTENÇA DE ABSOLVIÇÃO QUE SE MANTÉM. (TJ-RJ - APELAÇÃO CRIMINAL : APR 00452641720128190066 RJ 0045264-17.2012.8.19.0066. Relator(a): CINTIA SANTAREM CARDINALI. Órgão Julgador: Segunda Turma Recursal Crimina Publicação: 26/01/2015)
Por fim além de todos os fundamentos jurídicos acima expostos, importante destacar que, na visão desta magistrada, não parece nada justo condenar um senhor de quase 70 (setenta) anos de idade,que não possui qualquer antecedente criminal e que vem sofrendo com câncer de próstata, por ter usado a maconha acreditando que assim teria aliviados os sintomas desta grave doença. Desta forma, diante de todo o exposto ABSOLVO O RÉU F P S, das imputações que lhe foram feitas na peça pórtica, no tocante ao crime previsto no art. 28 da Lei nº 11.343/06, diante da atipicidade da conduta praticada, com fulcro no art. 386, inciso III, do Código de Processo Penal.
Após o transito em julgado, arquive-se com as cautelas de estilo.
Sem custas e honorários. P.R.I.
Quebrangulo,01 de setembro de 2016.
Luana Cavalcante de Freitas Juiz(a) de Direito
Notas
[1] STF. RE 635659 RG / SP - SÃO PAULO. REPERCUSSÃO GERAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. Relator(a): Min. GILMAR MENDES. Julgamento: 08/12/2011
[2] Disponível em: http://exame.abril.com.br/tecnologia/noticias/maconha-e-menos-mortal-que-alcool-e-tabaco-afirma-estudo. Acesso em 30 de agosto de 2016, às 13h31min.
[3] Disponível em : http://brasil.elpais.com/brasil/2014/10/06/ciencia/1412618575_595889.Html. Acesso em 30 de agosto de 2016, às 13h50min.
[4] Disponível em: http://super.abril.com.br/ciencia/quando-a-maconha-cura. Acesso em 30 de agosto de 2016, às 13h55min.
[5] Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/asmais/2015/09/1671352-conheca-os-paises-onde-o-porte-de-drogas-e-liberado-para-usopessoal.Shtml. Acesso em 30 de agosto de 2016, às 14h30min.
[6] Disponível em: http://s.conjur.com.br/dl/leia-anotacoes-ministro-barroso-voto.Pdf. Acesso em 01 de setembro de 2016, às 13h.
[7] Disponível em: http://s.conjur.com.br/dl/leia-anotacoes-ministro-barroso-voto.Pdf. Acesso em 01 de setembro de 2016, às 13h.
Fonte: TJAL
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