MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DA BAHIA
PROCURADORIA DE JUSTIÇA CRIMINAL
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PROCESSO Nº 0015920-14.2014.8.05.0000 – HABEAS CORPUS
ORIGEM: BOM JESUS DA LAPA – BA
ÓRGÃO JULGADOR: PRIMEIRA CÂMARA CRIMINAL – PRIMEIRA TURMA
IMPETRADO: JUIZ DE DIREITO DE BOM JESUS DA LAPA – VARA CRIMINAL
RELATORA: DESª. IVONE RIBEIRO GONÇALVES BESSA RAMOS
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PARECER Nº. 9797/2014
EGRÉGIA CÂMARA
Tratam os presentes autos de um pedido de habeas corpus visando à soltura do paciente acima epigrafado, sob a alegação, em epítome, de ausência dos requisitos da prisão preventiva.
Negada a concessão da liminar requerida (fls. 36/39), o Magistrado prestou as informações de praxe (fl. 41).
Compulsando o processo, verifica-se que o paciente foi preso em flagrante em 10 de setembro de 2014, por suposta prática do delito previsto no art. 33 da Lei 11.343/06 (fl. 16).
Às fls. 29/30, consta o decretou prisional do paciente.
Eis um sucinto relatório.
Os autos foram encaminhados ao Ministério Público para o parecer.
Afere-se no decisum de fls. 29/30 que a prisão preventiva não foi devidamente fundamentada, aludindo tão somente à gravidade abstrata do crime e amparando-se na necessidade da garantia da ordem pública, requisito não observado in casu.
Como se sabe, a gravidade do crime não possui, por si só, o condão de autorizar a custódia preventiva. A propósito, vejamos as seguintes decisões do Pretório Excelso e do Superior Tribunal de Justiça pertinentes ao caso dos autos:
“No caso, o decreto que impôs a prisão preventiva ao recorrente não apresenta fundamentação concreta, eis que a invocação da gravidade genérica do delito não se revela suficiente para autorizar a segregação cautelar, com fundamento na garantia da ordem pública. Recurso ordinário provido, para revogar a prisão preventiva do recorrente, salvo se por outro motivo estiver preso.” (RHC 48.921/MG, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 23/09/2014, DJe 02/10/2014)
“No caso, evidente o constrangimento ilegal na manutenção da prisão cautelar, pois a decisão não se embasou em dados concretos constantes dos autos. A mera afirmação no sentido de que os delitos supostamente perpetrados são graves, mostra-se inidônea à sustentar o decreto prisional, medida excepcional. Constrangimento ilegal configurado. (...)” (RHC 44.436/SP, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, QUINTA TURMA, julgado em 01/04/2014, DJe 07/04/2014)
“O Plenário do Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento do HC n.º 84.078/MG, Rel. Min. EROS GRAU, concluiu, definitivamente, que a decretação ou a manutenção do encarceramento processual (entenda-se qualquer prisão antes de condenação transitada em julgado) depende da configuração objetiva de um ou mais dos requisitos do art. 312 do Código de Processo Penal. Para isso o Julgador deve consignar, expressamente, elementos substanciais indicadores de que o indiciado ou acusado, solto, colocará em risco a ordem pública ou econômica, a instrução criminal ou a aplicação da lei penal. "Sem o que se dá a inversão da lógica elementar da Constituição, segundo a qual a presunção de não-culpabilidade é de prevalecer até o momento do trânsito em julgado da sentença penal condenatória" (STF, HC 101.705/BA, 2.ª Turma, Rel. Min. AYRES BRITTO, DJe de 03/09/2010).Não tem base empírica idônea o decreto prisional em que o Magistrado limita-se tão somente a mencionar a gravidade abstrata do delito ou cuja fundamentação é dissociada de qualquer elemento concreto e individualizado, sem ressaltar a necessidade real da medida excepcional.(...)” (RHC 43.442/MG, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 03/04/2014, DJe 14/04/2014)
“A existência de indícios de autoria e prova da materialidade bem como o juízo valorativo sobre a gravidade genérica do delito não constituem fundamentação idônea a autorizar a prisão preventiva se desvinculados de elementos concretos do caso.” (AgRg no HC 233.103/SP, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 10/06/2014, DJe 01/07/2014)
“Em matéria de prisão processual, a garantia constitucional da fundamentação do provimento judicial importa o dever da real ou efetiva demonstração de que a segregação atende a pelo menos um dos requisitos do art. 312 do Código de Processo Penal. Sem o que se dá a inversão da lógica elementar da Constituição, segundo a qual a presunção de não-culpabilidade é de prevalecer até o momento do trânsito em julgado da sentença penal condenatória. A mera referência vernacular à garantia da ordem pública não tem a força de corresponder à teleologia do art. 312 do CPP. Até porque, no julgamento do HC 84.078, o Supremo Tribunal Federal, por maioria, entendeu inconstitucional a execução provisória da pena. Na oportunidade, assentou-se que o cumprimento antecipado da sanção penal ofende o direito constitucional à presunção de não-culpabilidade. Direito subjetivo do indivíduo que tem a sua força quebrantada numa única passagem da Constituição Federal. Leia-se: "ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei" (inciso LXI do art. 5º). Esta nossa Corte entende que a simples alusão à gravidade do delito ou a expressões de mero apelo retórico não valida a ordem de prisão cautelar. Isso porque o juízo de que determinada pessoa encarna verdadeiro risco à coletividade só é de ser feito com base no quadro fático da causa e, nele, fundamentado o respectivo decreto de prisão cautelar. Sem o que não se demonstra o necessário vínculo operacional entre a necessidade do confinamento cautelar do acusado e o efetivo acautelamento do meio social. Ordem concedida.” (grifo nosso) (HC 101705, Relator(a): Min. AYRES BRITTO, Primeira Turma, julgado em 29/06/2010, DJe-164 DIVULG 02-09-2010 PUBLIC 03-09-2010 EMENT VOL-02413-03 PP-00567)
Com efeito, impende transcrevermos excerto de nossa obra [1], consentâneo ao caso dos autos, in verbis:
“Lamentavelmente continuamos a ter como um dos requisitos para a decretação da prisão preventiva a “garantia da ordem pública”, conceito por demais genérico e, exatamente por isso, impróprio para autorizar uma custódia provisória que, como se sabe, somente se justifica no processo penal como um provimento de natureza cautelar (presentes o fumus commissi delicti e o periculum libertatis). Há mais de dois séculos Beccaria já preconizava que “o réu não deve ficar encarcerado senão na medida em que se considere necessário para o impedir de escapar-se ou de esconder as provas do crime”[2], o que coincide com dois outros requisitos da prisão preventiva em nosso País (conveniência da instrução criminal e asseguração da aplicação da lei penal). Decreta-se a prisão preventiva no Brasil, muitas vezes, sob o argumento de se estar resguardando a ordem pública, quando, por exemplo, quer-se evitar a prática de novos delitos pelo imputado ou aplacar o clamor público. Não raras vezes vê-se prisão preventiva decretada utilizando-se expressões como “alarma social causado pelo crime” ou para “aplacar a indignação da população”, e tantas outras frases (só) de efeito.
A respeito, veja-se a preocupação dos juristas espanhóis Gimeno Sendra, Moreno Catena e Cortés Dominguez:
“Tampoco puede atribuirse a la prisión provisional un fin de prevención especial: evitar la comisión de delitos por la persona a la que se priva de libertad. La propia terminología más frecuentemente empleada para expresar tal idea – probable comisión de ´otros´ o ´ulteriores´ delitos – deja entrever que esta concepción se asienta en una presunción de culpabilidad. (…) Por las mismas razones no es defendible que la prisión provisional deba cumplir la función de calmar la alarma social que haya podido producir el hecho delictivo, cuando aún no se ha determinado quién sea el responsable. Sólo razonando dentro del esquema lógico de la presunción de culpabilidad podría concebirse la privación en un establecimiento penitenciario, el encarcelamiento del imputado, como instrumento apaciguador de las ansias y temores suscitados por el delito. (…) La vía legítima para calmar la alarma social – esa especie de ´sed de venganza´ colectiva que algunos parecen alentar y por desgracia en ciertos casos aflora – no puede ser la prisión provisional, encarcelando sin más y al mayor número posible de los que prima facie aparezcan como autores de hechos delictivos, sino una rápida sentencia sobre el fondo, condenando o absolviendo, porque sólo la resolución judicial dictada en un proceso puede determinar la culpabilidad y la sanción penal.”[3]
Ressaltamos que o Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Nelson Jobim, deferiu em parte a liminar pedida no Habeas Corpus nº. 84548, pois considerou que o decreto de prisão preventiva do acusado teria se desviado dos requisitos do art. 312 do Código de Processo Penal, por lhe faltar as indicações do que consiste a periculosidade do paciente e a quais riscos a ordem pública estaria exposta se ele respondesse à ação penal em liberdade, salientando, outrossim, que o entendimento do STF não permite que clamor público sirva como fundamento para a prisão preventiva. Ele observou que o acusado sempre colaborou com a instrução criminal e as investigações. Assim, o Ministro deferiu a liminar para revogar a prisão preventiva, se por outro motivo o acusado não estiver preso.
Na Itália, o Juiz de Instrução Criminal do Tribunal de Pádua, Palombarini, assim decidiu acerca da prisão preventiva:
“Pena e prisão preventiva têm diversa natureza jurídica, diferentes objectivos, diversa função... Para decidir se uma certa garantia individual deve aplicar-se a um determinado instituto, é necessário atender, em primeiro lugar, à incidência do mesmo instituto sobre a esfera do indivíduo. Ora a prisão preventiva – embora diversa, como se disse, da pena – traduz-se para o indivíduo numa restrição total de sua liberdade. Diferentes os institutos, idênticos os valores em jogo e o perigo de lesão do fundamental direito da liberdade.” [4]
Em outra oportunidade, a 1ª. Turma do Supremo Tribunal Federal concedeu habeas corpus (Processo nº. 84778) a um servidor público que responde a processo pela prática de três crimes de concussão (art. 316 do Código Penal). O Ministro Sepúlveda Pertence, relator do processo, concedeu a ordem para revogar o decreto de prisão preventiva e permitir que o réu aguarde o julgamento da apelação em liberdade. Consoante Pertence, não há como falar em conveniência da instrução criminal se esta já terminou, nem invocar a garantia da ordem pública para não comprometer a imagem do Poder Judiciário. "Já repisei minha convicção acerca da ilegitimidade constitucional da prisão preventiva fundada na necessidade de satisfazer a ânsias populares de repressão imediata em nome da credibilidade das instituições públicas, dentre elas o Poder Judiciário", afirmou. Para o Ministro, tais considerações "desvelam o abuso da prisão processual para fins não cautelares, seja o de antecipação da pena, que aborrece a presunção da não-culpabilidade, seja a instrumentalização do encarceramento do acusado para a popularização do Judiciário, que repugna o princípio fundamental da dignidade humana". Por fim, sustentou o relator não ser motivo idôneo para a prisão preventiva a invocação da gravidade do crime ou o prestígio e a credibilidade do Judiciário. O voto do ministro-relator foi acompanhado pelos demais integrantes da Primeira Turma.
Em outro caso, um advogado acusado de participar da organização que operava fraudes fiscais no ramo do comércio de combustíveis respondeu às acusações em liberdade. A decisão foi tomada pela 1ª. Turma do Supremo Tribunal Federal. Nesta oportunidade, todos os Ministros da Turma seguiram o voto do relator, Ministro Sepúlveda Pertence, salientando “que o Supremo tem negado a manutenção de prisão preventiva quando o motivo é a invocação da gravidade do crime imputado.” O Ministro Marco Aurélio sustentou que “há de se aguardar a comprovação do fato criminoso a cargo do Ministério Público para posteriormente ter-se as conseqüências.” (HC nº. 85068).
Em outra decisão recente, o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio, concedeu duas liminares, em habeas corpus, a dois condenados por seqüestro, emasculação e assassinato de menores em Altamira, no Pará, entre 1989 e 1992. Nas decisões monocráticas, o Ministro Marco Aurélio destacou que os condenados são réus primários, têm bons antecedentes e estão presos há mais de um ano. Afirmou que a circunstância de os condenados viverem em unidades da Federação diversas daquela em que foram julgados não é motivo para ensejar, por si só, a custódia, “afigurando-se o recolhimento como execução precoce, açodada, temporã do título judicial, sujeito ainda a modificação, em face da recorribilidade ordinária”, observando, ainda, que “o barulho da turba, a repercussão dos acontecimentos na sociedade, na mídia, não podem servir à execução precoce da pena”. (HC-85223).
Também a 1ª. Turma do Supremo Tribunal Federal confirmou liminar do Ministro Eros Grau que concedeu liberdade provisória para um policial acusado de assassinar um Delegado da Polícia Civil em Minas Gerais. O Ministro Eros Grau, ao deferir o pedido de habeas corpus e libertar o acusado, afirmou que os fundamentos no clamor público e na repercussão do caso não são "idôneos" para a manutenção da prisão preventiva. Na decisão, ele relacionou julgamentos do Supremo nesse sentido. (HC-85046).
Ainda sobre este requisito da “ordem pública”, anota Bruno César Gonçalves da Silva (no artigo intitulado: “Uma vez mais: da ´Garantia da ordem pública` como fundamento de decretação da prisão preventiva”):
“Entre os juristas brasileiros que se insurgiram contra a prisão preventiva com fundamento na "garantia da ordem pública", destaca-se Gomes Filho (1991), que demonstrou-nos não possuir a idéia de "ordem pública" caráter instrumental relacionado com os meios e fins do processo, veja-se: À ordem pública relacionam-se todas aquelas finalidades do encarceramento provisório que não se enquadram nas exigências de caráter cautelar propriamente ditas, mas constituem formas de privação da liberdade adotadas como medidas de defesa social; fala-se, então, em "exemplaridade", no sentido de imediata reação ao delito, que teria como efeito satisfazer o sentimento de justiça da sociedade; ou, ainda, em prevenção especial, assim entendida a necessidade de se evitar novos crimes; uma primeira infração pode revelar que o acusado é acentuadamente propenso a práticas delituosas ou, ainda, indicar a possível ocorrência de outras, relacionadas à supressão de provas ou dirigidas contra a própria pessoa do acusado. (GOMES FILHO, 1991, p. 67-68). Delmanto Júnior (1998), comentando a decretação da prisão preventiva com base na garantia da ordem pública, considera ser indisfarçável que nesses termos a prisão preventiva se distancia de seu caráter instrumental - de tutela do bom andamento do processo e da eficácia de seu resultado - ínsito a toda e qualquer medida cautelar, servindo de instrumento de justiça sumária, vingança social etc. (DELMANTO JUNIOR, 1998, p.156). sim, dúvida não resta que falta à prisão preventiva decretada com base na "garantia da ordem pública" caráter instrumental inerente a toda medida cautelar, pois, esta visa assegurar os meios e os fins do processo, ao passo que na "ordem pública" não se vislumbra este caráter, não possuindo tal expressão limites rígidos para a sua definição, dando azo ao arbítrio e a casuísmos na restrição da liberdade. O apelo à forma genérica e retórica da "garantia da ordem pública" representa a possibilidade de superação dos limites impostos pelo princípio da legalidade estrita, propiciando um amplo poder discricionário ao juiz com "uma destinação bastante clara: a de fazer prevalecer o interesse da repressão em detrimento dos direitos e garantias individuais". (GOMES FILHO, 1991, p. 66).”
E conclui este autor:
'A garantia da ordem pública não possui caráter cautelar propriamente dito, tendo na verdade finalidades que ora são metaprocessuais, ora são exclusivas das penas. As interpretações dadas à expressão "garantia da ordem pública" são violadoras do princípio da presunção de inocência, pois, ou desconsideram a avaliação da necessidade da medida, ou se fundam em presunções e antecipações do juízo de culpabilidade. Devemos na interpretação e aplicação das medidas cautelares, nos libertarmos dos resquícios do autoritarismo e assimilarmos a nova orientação constitucional, lembrando-nos sempre que, dentro deste novo paradigma, os fins nunca podem justificar os meios.' ”
Em consonância com o entendimento doutrinário de escol, Diogo Mentor de Mattos Rocha, ao tratar da garantia da ordem pública no seu artigo [5] publicado no Boletim nº 256 do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM, leciona com proficiência:
“(...) A maior crítica da doutrina quanto ao fundamento da garantia da ordem pública diz respeito à imprecisão da dita expressão, que acaba por ensejar uma interpretação por demais extensiva quanto às situações fáticas que poderiam ser incluídas na sua hipótese de incidência, malferindo, por conseguinte, o princípio da legalidade estrita. Cita-se aqui, por todos, o professor Magalhães Gomes Filho, que afirma que a prisão para a garantia da ordem pública fere a garantia da legalidade estrita em termos de restrição da liberdade.
Entretanto, fazendo uma regressão histórica às origens do instituto ora em estudo conseguimos entender melhor a motivação da sua criação e a sua impertinência para o sistema acusatório com bases garantistas.
A prisão cautelar fundada na garantia da ordem pública tem sua gênese na Alemanha nazifascista da década de 1930, período histórico em que o que se buscava eram exatamente expressões abertas, vagas e imprecisas, que pudessem ser utilizadas como alicerce para a realização de prisões de pessoas que pudessem ser contrárias ao sistema; vale dizer, o intuito era exatamente o de se obter uma autorização geral e abstrata para prender.
Tomando-se por base seu sentido histórico conseguimos perceber que, ainda nos dias atuais, a prisão preventiva decretada com base na garantia da ordem pública consegue alcançar seus objetivos, visto que proporciona aos personagens do poder a manipulação das massas de acordo com os seus próprios alvedrios.
Isso é exatamente o que se extrai da obra do professor Aury Lopes Jr., senão vejamos: “Grave problema encerra ainda a prisão para a garantia da ordem pública, pois se trata de um conceito vago, impreciso, indeterminado e despido de qualquer referencial semântico. Sua origem remonta a Alemanha da década de 30, período em que o nazifascismo buscava exatamente isso: uma autorização geral e aberta para prender. Até hoje, ainda que de forma mais dissimulada, tem servido a diferentes senhores, adeptos dos discursos autoritários e utilitaristas, que tão ‘bem’ sabem utilizar dessas cláusulas genéricas e indeterminadas do Direito para fazer valer seus atos prepotentes”.
Veja que a arbitrariedade do fundamento da garantia da ordem pública para a decretação de prisões cautelares é ínsita ao próprio instituto. Vale dizer, justamente para se dar uma aparência de legitimidade às prisões efetuadas sob esse fundamento é que se utilizou dessa expressão, cuja imprecisão semântica acaba por permitir que as mais variadas situações sejam incluídas no seu conceito, abrindo a possibilidade de o encarceramento provisório não se enquadrar apenas e tão somente nas exigências de caráter cautelar propriamente dito.
Vejamos a lição do professor Gustavo Badaró, in expressis: “A expressão ‘ordem pública’ é vaga e de conteúdo indeterminado. A ausência de um referencial semântico seguro para a ‘garantia a ordem pública’ coloca em risco a liberdade individual. A jurisprudência tem se valido das mais diversas situações reconduzíveis à garantia da ordem pública: ‘comoção social’, ‘periculosidade do réu’, ‘perversão do crime’, ‘insensibilidade moral do acusado’, ‘credibilidade da justiça’, ‘clamor público’, ‘repercussão na mídia’, ‘preservação da integridade física do indiciado’... Tudo cabe na prisão para garantia da ordem pública”.
Vê-se, portanto, que a prisão cautelar com fundamento na garantia da ordem pública é utilizada, desde a sua origem, para fundamentar a atuação arbitrária do Estado que, com ela, passa a ter “carta branca” para prender, livrando-se das amarras que a fundamentação com base empírica e casuística lhe exigiria.
No Brasil, o fundamento da garantia da ordem pública foi inserido no sistema jurídico, não por acaso, ainda na redação original do nosso Código de Processo Penal, a qual remonta aos idos de 1941, época em que o nazifascismo ainda estava em alta e a Segunda Grande Guerra no auge de seus acontecimentos. (...)
Diversos são os fundamentos que conduzem à inconstitucionalidade da prisão cautelar decretada com base na garantia da ordem pública. Comecemos nossa análise a partir daquele mais evidente, que mais nos salta aos olhos: a violação dos princípios constitucionais da presunção de não culpabilidade e do devido processo legal. Já de há muito aprendemos, a partir das lições de Calamandrei, que a finalidade dos procedimentos cautelares é garantir a eficácia dos procedimentos definitivos, não se restringindo tão somente à aplicação do direito material.
É justamente a partir dessa construção de Calamandrei que a doutrina contemporânea conceitua as medidas cautelares como sendo dotadas de uma instrumentalidade qualificada; vale dizer, se o processo nada mais é do que o instrumento para o normal funcionamento da justiça, de modo que, por meio dele, alcancemos um provimento jurisdicional de mérito, a medida cautelar se traduz por um verdadeiro instrumento do instrumento, já que somente se presta a garantir a sua efetividade. Se a medida cautelar é utilizada para outro fim que não a garantia da efetividade do processo de conhecimento, então ela será inconstitucional por afrontar o due process of law.
Vejamos, nesse sentido, o magistério de Aury Lopes Jr., verbum et verbum: “É importante fixar este conceito de instrumentalidade qualificada, pois só é cautelar aquela medida que se destinar a esse fim (servir ao processo de conhecimento). E somente o que for verdadeiramente cautelar é constitucional” (ressaltos no original).
A seu turno, se a Constituição da República, em seu art. 5º, LVII, determina que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, é evidente que a utilização de uma medida cautelar divorciada da sua função precípua de garantir a efetividade do processo de conhecimento avilta o princípio da presunção de não culpabilidade, traduzindo-se por verdadeira antecipação de pena.
Concordamos, nesse sentido, com a posição de Delmanto Junior quando afirma, verbis: “acreditamos, igualmente, que a característica da instrumentalidade é ínsita à prisão cautelar na medida em que, para não se confundir com pena, só se justifica em função do bom andamento do processo penal e do resguardo da eficácia de eventual decreto condenatório” (original sem grifos).
Conforme as lições de Alexandra Vilela, o princípio da não culpabilidade funciona, aqui, como um limite teleológico da prisão cautelar: somente a prisão voltada à garantia da efetividade do processo poderá ser considerada cautelar; qualquer coisa diferente disso é inconstitucional.
Noutro diapasão, o requisito da garantia da ordem pública, quando invocado pelo magistrado ao decretar uma prisão preventiva, não raras vezes é confundido com o chamado “clamor público”, que surge em casos de grande repercussão nos quais há um grande apelo midiático em torno do fato que deu ensejo ao requerimento de segregação cautelar.
Com efeito, em situações que tais, em que a medida cautelar é decretada muito mais como uma resposta ao clamor social nascido em razão da exploração midiática do caso, do que propriamente pela necessidade de garantia da ordem pública, a prisão cautelar assume contornos de prevenção geral e especial, que são ínsitos à prisão penal.
Não se pode prender alguém preventivamente para que sirva de exemplo, tendo em vista que essa característica decorre da prisão penal, conforme já sustentavam Günther Jackobs e Claus Roxin quando da discussão acerca do funcionalismo penal.
Vejamos o que nos ensina o magistério do professor Aury Lopes Junior, in verbis: “O ‘clamor público’, tão usado para fundamentar a prisão preventiva, acaba se confundindo com a opinião pública, ou melhor, com a opinião ‘publicada’. Há que se atentar para uma interessante manobra feita rotineiramente: explora-se, midiaticamente, um determinado fato (uma das muitas ‘operações’ com nomes sedutores, o que não deixa de ser uma interessante manobra de marketing policial), muitas vezes com proposital vazamento de informações, gravações telefônicas e outras provas colhidas, para colocar o fato na pauta pública de discussão (a conhecida teoria do agendamento)”.
“Explorado midiaticamente, o pedido de prisão vem na continuação, sob o argumento de necessidade de tutela da ordem pública, pois existe um clamor social diante dos fatos... Ou seja, constrói-se midiaticamente o pressuposto da posterior prisão cautelar. Na verdade, a situação fática apontada nunca existiu; trata-se de argumento forjado.
Como aponta Sanguiné, ‘quando se argumenta com razões de exemplaridade, de eficácia da prisão preventiva na luta contra a delinquência e para restabelecer o sentimento de confiança dos cidadãos no ordenamento jurídico, aplacar o clamor público criado pelo delito etc. que evidentemente nada tem a ver com os fins puramente cautelares e processuais que oficialmente se atribuem à instituição, na realidade, se introduzem elementos estranhos à natureza cautelar e processual que oficialmente se atribuem à instituição, questionáveis tanto do ponto de vista jurídico-constitucional como da perspectiva político-criminal. Isso revela que a prisão preventiva cumpre funções reais (preventivas gerais e especiais) de pena antecipada incompatíveis com sua natureza.’
Assume contornos de verdadeira pena antecipada, violando o devido processo legal e a presunção de inocência”.[6]
O clamor social, em razão da efemeridade que lhe é ínsita, não pode ser arrimo de prisões cautelares, já que a construção desse clamor pela exploração midiática do fato pode esconder interesses outros na segregação de determinada pessoa, algo que nunca poderá ser avaliado de maneira isenta. (...)
Desta feita, a prisão preventiva decretada com base na garantia da ordem pública é absolutamente divorciada da necessária instrumentalidade que deve revestir todas as medidas cautelares; ela não é um instrumento que atende aos fins do processo, mas algo alheio a ele, que é a própria segurança pública, faltando-lhe, pois, cautelaridade.
Em sendo assim, não pode ser apta a fundamentar a segregação cautelar de alguém, visto que afronta princípios constitucionais consagrados e remonta a períodos históricos em que direitos fundamentais dos cidadãos foram absolutamente aniquilados pelo Estado.
Entendemos que a prisão cautelar somente deve ser utilizada como a ultima ratio para a garantia da efetividade do processo; somente em casos em que outras medidas cautelares pessoais não tenham sido aptas a garantir a sua finalidade e, ainda, fundamentada em circunstâncias concretas que denotem a sua efetiva necessidade. Essa é a ratio legislatoris da Lei 12.403/2011 e que deve ser observada pelo magistrado quando do exercício do seu mister.” (grifos nossos)
Nesse diapasão, acerca do tema vertente, Thiago M. Minagé e João Gabriel M. C. Melo, em artigo intitulado “Processo Penal Midiático e a subversão do garantismo”[7], ao comentar um caso concreto, esclarecem:
“Repassando algumas situações emblemáticas, o caso do cinegrafista Santiago Andrade e a fundamentação da prisão preventiva dos acusados pelo motivo de “garantia de ordem pública”, demonstra o motivo pelo qual a doutrina, quase que majoritariamente, critica esse requisito. Trata-se do requisito mais amplo, genérico e indeterminado de nosso ordenamento jurídico para decretação de prisão preventiva, gerando inevitável insegurança decorrente da análise da conveniência ou não da adoção da medida constritiva cautelar. Tendo em vista tamanha brecha legislativa, a jurisprudência vem dando inúmeras interpretações, ora por “comoção social”, “periculosidade do réu”, “para preservar sua integridade” do autor do delito, até “perversão do crime”, “clamor público”, “repercussão midiática” e “tudo que não serve como base ou requisito para decretação de prisão preventiva é utilizado como sinônimo de “ordem pública”, a fim de validar e justificar o decreto prisional provisório”.
Seguindo a mesma linha de raciocínio Eugênio Pacelli diz que a “garantia de ordem pública” é “o calcanhar de Aquiles do processo penal brasileiro”. E no caso do cinegrafista não foi diferente. Na falta de outra fundamentação, diante de tamanha pressão midiática e enorme apelo popular pela prisão dos acusados, o magistrado se valeu do grande “coringa” para fundamentar sua decisão e converter a prisão temporária em preventiva. Todavia, como dito anteriormente, o juiz se valeu de uma longa retórica alegando que os direitos individuais elencados na Carta Magna não podem superar os direitos coletivos, justificando, desta forma, a prisão. Preciso o ensinamento de Aury Lopes Jr. ao afirmar que o argumento “recorrente em matéria penal é o de que direitos individuais devem ceder (e, portanto, serem sacrificados) frente à “supremacia” do interesse público. É uma manipulação discursiva que faz um maniqueísmo grosseiro (senão interesseiro) para legitimar e pretender justificar o abuso de poder”.
Destarte, constata-se que não restou concretamente demonstrada a pertinência, in casu, da necessidade da custódia preventiva para garantir a ordem pública. Com efeito, mostra-se inteiramente desfundamentada a decisão de fls. 29/30, em nítida mácula aos artigos 282, 310, II, e 315 do Código de Processo Penal, bem como do artigo 93, IX, da Constituição Federal. Além disso, o Magistrado a quo não examinou a possibilidade de aplicação da medidas cautelares diversas da prisão, nos termos do art. 319 do Código de Processo Penal.
Ademais, vejamos esta reflexão de Afrânio Silva Jardim, um dos maiores processualistas penais de sua geração:
"Ainda gosto de viver, embora pela vida já não seja mais um apaixonado como outrora. Não sou melhor ou pior do que a média das pessoas. Entretanto, aqui me manifesto "imunizado" pelo maravilhoso ato de escrever e tomado de emoção. Minha querida filha Eliete morreu prematuramente há menos de três meses. Importante ressaltar que toda esta emoção não poderá justificar ou me isentar de censura pelo que irei dizer, pois tal emoção apenas me motivou a desabafar o que, de há muito, tenho pensado e racionalizado. Sempre demonstrei não gostar deste tipo de sociedade em que vivo. Cada vez mais me sinto fora de sintonia com a realidade que me cerca. Nunca me agradou viver em um tipo de sociedade onde seus valores fundantes são a competição, a concorrência, o lucro e a ambição. As pessoas se mostram cada vez mais egoístas e individualistas. Certo que tudo já foi pior, bastando constatar que fomos o último país a abolir a escravidão. De qualquer sorte, quero reiterar que este modelo de sociedade me deixa amargurado. Sou mesmo um inadaptado. (...) Também não quero deixar incólume o nosso sistema judiciário, já que toda a minha vida esteve com ele relacionada. Hoje tudo não passa de um "faz de conta". Ministros e desembargadores fingem que redigiram seus votos, na verdade, elaborados por seus assessores ... Novamente temos aqui que reconhecer a existência de algumas importantes exceções. Continuando, juízes assinam sentenças redigidas pelos seus secretários. Membros do Ministério Público e da Defensoria Pública também se utilizam de assessores e estagiários para fazerem suas peças. Tudo vem assinado como se a autoria fosse dos titulares dos respectivos cargos públicos. Fingem que redigiram as peças processuais e nós fingimos que não sabemos destas simulações... A vaidade de alguns titulares de tribunais superiores ficou ainda mais aguçada pelas transmissões da televisão. Quando o processo tem repercussão na opinião pública, a leitura dos votos leva horas (estes votos talvez eles mesmos tenham redigido), não importando se o resultado do julgamento já esteja alcançado. O importante é mostrar trabalho e cultura (por vezes, superficial...). Quando não aparecem advogados para usar da tribuna e o processo não tem repercussão na opinião pública, os julgamentos são realizados "por listas", vale dizer, o relator diz qual é o seu voto e todos acompanham sem saber do que se trata, o que os advogados das partes sustentaram em suas razões. Julgamentos deste tipo duram cerca de quinze segundos ... Por fim, casos há em que o relator pede vista do processo quando a maioria já está formada, evitando o desfecho do julgamento. Anos se passam e o tal relator não traz o seu voto, nada obstante o prazo regimental expresso... Algum motivo deve tentar justificar este comportamento irregular ... (...) Tormentosa é a celeridade ou rapidez que os dias atuais a tudo imprime. Não há mais tempo. Não temos mais tempo para ler obras relevantes, não temos mais tempo para refletir sobre a nossa vida e a sociedade em que vivemos. Não podemos ter mais tempo, porque o tempo é perigoso para o sistema social moderno. Não temos tempo para visitar e conversar com nossos amigos. Não temos tempo para fazer amigos. As relações humanas que hoje são travadas já surgem com a marca da precariedade e são efêmeras, superficiais. Não temos tempo para questionar sobre uma tal de felicidade construída pelo ato de comprar e consumir compulsivamente. Pensar hoje é mais subversivo do que nunca. Quantos dias o homem das cidades passam sem um olhar atento e deslumbrante para o céu, para o cosmo, para o universo? ... Pobre ser humano de século XXI, rico em iphones e pobre em sentimentos. Termino mais ou menos como comecei: ainda gosto da vida, mas a morte que se avizinha é uma demonstração da "sabedoria" da natureza: este novo mundo já não é o meu mundo … Rio de Janeiro, primavera de 2014". [8] (grifo nosso).
Por fim, atente-se não caber a esse Tribunal fundamentar, em sede de Habeas Corpus não originário, a decretação da prisão preventiva, mas sim analisar, tão somente, se houve ou não a devida fundamentação na decisão proferida pelo Juízo a quo, sob pena de odiosa supressão de instância.
Esta ressalva, faz-se necessária, pois não é incomum, muito pelo contrário, encontrarmos em processos como tais, verdadeiras decisões que, a propósito de denegarem a ordem, substituem o Juízo de 1º. grau, decretando fundamentadamente a prisão preventiva, subvertendo de forma absurda uma garantia constitucional da liberdade de locomoção.
Em outras palavras: o Habeas Corpus passa a ser uma garantia constitucional para se prender (!) e não para se analisar a constitucionalidade de uma decisão de 1º. grau não fundamentada.
Ante o exposto, somos pela concessão da ordem de habeas corpus requerida, in casu, em razão da desnecessidade da custódia preventiva para a garantia da ordem pública.
Salvador, 21 de maio de 2015.
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RÔMULO DE ANDRADE MOREIRA
Procurador de Justiça
Notas e Referências:
[1] MOREIRA, Rômulo de Andrade. A prisão processual, a fiança, a liberdade provisória e as demais medidas cautelares, Porto Alegre: Editora Lex Magister, 2011, p. 48/52.
[2] Dos Delitos e das Penas, São Paulo: Hemus, 1983, p. 55 (tradução de Torrieri Guimarães).
[3] Derecho Procesal Penal, Madrid: Colex, 3ª. ed., 1999, pp. 522/523.
[4] Apud Américo Taipa de Carvalho, Sucessão de Leis Penais, Coimbra Editora, 1990, p. 251.
[5] (Re)pensando a garantia da ordem pública como fundamento idôneo para a decretação de prisões cautelares. http://www.ibccrim.org.br/boletim_artigo/5067-(Re)pensando-a-garantia-da-ordem-pública-como-fundamento-idôneo-para-a-decretação-de-prisões-cautelares. Acesso em 05 de agosto de 2014. Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - Boletim nº 256 – Março de 2014.
[6] In Lopes Júnior, Aury. O novo regime jurídico da prisão processual, liberdade provisória e medidas cautelares diversas: Lei 12.403/2011. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 92.
[7] Processo Penal Midiático e a subversão do garantismo. http://justificando.com/2014/08/07/processo-penal-midiatico-e-subversao-garantismo/. Acesso em 08 de agosto de 2014.
[8] "Ácidas Reflexões", artigo acessado no blog: http://andrenicolitt.blogspot.com.br/2014/11/afranio-silva-jardim-um-homem-que.html?showComment=1415334481862#c5471036928104367854 (acesso em 08 de novembro de 2014).
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