Atahualpa, fale sobre você, sobre sua trajetória profissional.
Antes de enfrentar-me às perguntas, duas advertências que o amável leitor (a) deve ter em conta. A primeira, que considero a memória minha amiga mais desleal. A segunda, que sempre evito dar entrevistas, principalmente quando as perguntas se aproximam demasiado à esfera do pessoal. E não se trata de nenhum arrebato de arrogância ou medo existencial profundo gerado por possíveis raízes (ou traumas) de minha infância. Não! Simplesmente comparto da opinião de Ana María Matute quando disse que “si alguien quería encontrarla, estaba en sus libros”. Nada obstante, em se tratando do Empório, faço esta exceção.
Dito isto, resumo brevemente alguns aspectos de minha trajetória profissional.
Ingressei na faculdade de direito, literalmente, por imposição paterna, uma imposição do mesmo pai (1933-1985; de profissão dentista) que nunca se cansou de inculcar-me o valor do conhecimento. Terminada a graduação, ingressei na primeira turma do primeiro Mestrado em Direito da UFPa. (área: Direito Constitucional e Administrativo). Simultaneamente ao mestrado em direito frequentava, também como aluno, o Curso Internacional de Mestrado em Planejamento do Desenvolvimento/PLADES, promovido pelo Núcleo de Altos Estudos Amazônicos /NAEA, da mesma universidade (UFPa.).
Na época em que escrevia as respectivas dissertações, contudo, fui selecionado para uma vaga no Mestrado em Direito (área: Ciências jurídico-civilísticas) da Universidade de Coimbra, onde tive a fortuna de ter como professores J. J. Gomes Canotilho, Francisco Manuel Pereira Coelho, A. Castanheira Neves, Diogo Leite de Campos, Jorge de Figueiredo Dias, entre outros. Uma vez concluído o mestrado em Coimbra iniciei minhas atividades acadêmicas e, depois de alguns anos atuando como advogado, decidi fazer concurso para procurador do MPU/MPT.
Recordo que os motivos que me levaram a tomar esta decisão foram dois: necessidade e oportunidade. Necessidade, porque necessitava de um “emprego” para seguir adiante, quero dizer, que me permitisse fazer um doutorado. Oportunidade, porque foi o primeiro concurso que surgiu na ocasião, porque era um “emprego” que me permitia certa autonomia profissional e liberdade para continuar estudando e lecionando, e em que não dependeria dos caprichos de algum chefe desequilibrado e/ou autoritário (devo admitir que tenho um problema de intolerância crônica com a autoridade, a ignorância deliberada, o sofrimento inútil, qualquer tipo de “pensamento mágico” ou dogmático... e os doces).
Após ingressar no MPU/MPT como Procurador do Trabalho, fui selecionado para os cursos de doutorado da PUC/SP e da UFSC. Optei pela UFSC, onde cheguei a cursar algumas disciplinas. E foi precisamente por intermédio do que então era meu orientador no doutorado (Edmundo Lima de Arruda Jr.) que surgiu a oportunidade de fazer um doutorado em Barcelona (área: Filosofia Jurídica, Moral e Política). Assim, com uma licença por estudos, seguimos para Barcelona, onde realizei meu doutorado e a preparação da tese baixo a direção de Antoni Domènech (https://es.wikipedia.org/wiki/Antoni_Domènech).
Concluído o doutorado, retornei para o MPU/MPT. Algum tempo depois de meu regresso ao Brasil, me aposentei devido a duas enfermidades graves. O curioso é que durante esse período (entre o retorno e os tratamentos), justamente quando escrevia meu primeiro livro, conheci, por um artigo, a Camilo Cela Conde (hoje, um muito bom amigo), que me convidou para um período de estudo e investigação na Universidad de las Islas Baleares - UIB (https://es.wikipedia.org/wiki/Camilo_José_Cela_Conde).
E assim, já aposentado, seguimos para Palma de Mallorca. A ideia inicial era passar dois anos apenas, mas, uma vez designado Professor Colaborar Honorífico da UIB, aqui estamos há mais de 10 anos (http://evocog.org/es/).
Em suma: Creio que fui bastante afortunado por haver tropeçado pelo caminho com algumas pessoas de boa vontade, uma espécie de boa vontade que levaria o próprio Kant a emocionar-se ao comprovar sua teoria (“Nem no mundo, nem, em geral, tampouco fora dele, é possível pensar qualquer coisa que possa ser considerada como boa sem nenhuma restrição, a não ser a vontade boa”). Sobra dizer que em todo esse percurso (desde o final da faculdade) sempre estive acompanhado da pessoa que melhor me conhece, que comparte sua vida comigo e que me concede a honra de viver (e trabalhar) comigo todos os dias: Marly Fernandez.
Como surgiu a ideia de escrever para o Empório.
Por pura e dura casualidade. Escrevi um artigo sobre “A ética cristã”. Uma Juíza de Direito no Pará (hoje uma boa amiga e também colunista do Empório, Andreia Ferreira Bispo) leu o artigo na internet e entrou em contato. Entre conversas (por e-mail) me comentou de um amigo seu (Alexandre Morais da Rosa) que estava criando uma página web jurídica (Empório) e que talvez lhe interessasse publicar alguns de meus artigos. Um dia qualquer do mês de janeiro/2015 Andreia enviou um e-mail conjunto apresentando-nos. O resto é história.
Quais temas são abordados em sua coluna?
Para ser sincero, não saberia como definir ou classificar os temas de minha coluna. O que sim posso dizer é que, em conjunto, meus artigos tratam de explicar que (ainda) existe uma evidente paisagem teoricamente anfibológica, hermeticamente cerrada e cognitivamente hostil à realidade por parte da cultura jurídica em que alguns juristas, fiéis à “pureza do direito”, parecem estar sempre imunes a toda argumentação que não se ajuste ao seu intransigente e quase místico sistema de crenças. Uma classe de resistência construída durante anos de condicionamento e «domesticação» (essa constelação de todos os prejuízos e ideias preconcebidas que vamos acumulando ao longo da existência), e cujo resultado é a incapacidade de ver o que não estão acostumados a ver ou que não têm de antemão na cabeça, isto é, de recordar, insistir e atentar somente aos fatos que confirmam suas respectivas crenças e olvidar aqueles que as desafiam. Por isso que, direta ou indiretamente, explícita ou implicitamente, intento, com meus artigos, entender ou encontrar algum sentido (ainda que aproximado) às seguintes perguntas: O que significa para o animal humano “atuar como um agente moral”? Por que fazemos o que fazemos? De onde vem nossa predisposição para produzir juízos morais? Quais são as estruturas cerebrais que se ativam quando tomamos decisões morais e jurídicas? Avizinha-se uma nova forma de pensar e conceber a conduta e a natureza humana? Que códigos possuem o cérebro que modelam a ética, o sentido da justiça, os vínculos sociais relacionais, as transações sociais, econômicas e jurídicas, a arte, o sagrado e até mesmo a “arte” de interpretar? Que tem que ver as ciências do comportamento e da cognição humana com a Filosofia, o Direito e a Jurisprudência? Como afeta o isolamento teórico-dogmático do conhecimento jurídico a estrutura e a função do direito? Em que medida o frenesi endêmico da ciência jurídica constitui um grave obstáculo para averiguar o que podemos saber e, a partir daí, avaliar e decidir o que devemos e o que queremos fazer no âmbito do direito? Por que os juristas, “cientistas” e/ou filósofos do direito continuam ilhados das demais ciências e se resistem a evolucionar ou, se o fazem, seus câmbios não provêm de nenhuma investigação científica séria? Por que fogem dos fatos, rechaçam as evidências, ignoram as provas e descuidam dos melhores argumentos quando desafiam “paradigmas” e interesses estabelecidos? Por acaso não sabem que o retraimento disciplinar é um indicador fiável da falta de cientificidade e honradez intelectual? Quanto tempo os juristas tardarão para perceber que não podem existir pensamentos (ou sorrisos) sem cabeça? Até quando seguirão banhando-se nas águas estancadas dos labirintos de uma erudição acadêmica que não conta com o certificado de legitimidade das ciências dedicadas a aportar uma explicação científica da mente, do cérebro e da natureza humana?
Para dizê-lo de alguma maneira, concordo com Jesús Mosterín quando diz que «una filosofía [inclusive a jurídica] al margen de la ciencia es la cosa más aburrida y menos sexy que uno pueda imaginar».
Quais as motivações para escrever sobre estes temas?
O esforço por pensar, por desejar pensar melhor e intentar viver de maneira um pouco menos estúpida. De fato, como costumo dizer às pessoas com quem «comparto a vida» (aos que Aristóteles circunscrevia sua definição de «amizade»), minhas pretensões quando escrevo não são altas, não sonho com cambiar o mundo, com adornar meu currículo ou incrementar minha carreira acadêmica, nem sequer influir ou convencer a algum amigo. Em absoluto. Simplesmente me encontro mais cômodo estudando e escrevendo sobre questões que despertam minha curiosidade e que desejo desentranhar e compreender (ao menos em parte), esperando que estes mesmos assuntos sejam tema de novas conversações por parte dos amáveis leitores (as).
Como está sendo a experiência de fazer parte do time de colunistas do Empório do Direito?
Estou convencido de que «com quem» (quero dizer, ao lado de quem) se escreve é tão importante como «para quem» se escreve. E dado que tenho uma profunda admiração intelectual por todos os demais colunistas do Empório, fazer parte desse time é todo um privilégio. E devo esta oportunidade, de escrever e aprender, à boa vontade do meu bom amigo Alexandre Morais da Rosa, da Aline Gostinski e da equipe do Empório.