Por Redação - 17/09/2015
Em acórdão proferido pela Primeira Turma de Recursos da Comarca da Capital (SC) quando do julgamento da Apelação Criminal n. 2012.101413-1, destacou-se a necessidade de comprovação de que o condutor tenha gerado perigo concreto de dano ao dirigir veículo automotor sem a carteira nacional de habilitação (CNH).
A decisão cita o ensinamento de Arnaldo Rizzardo (Comentários ao Código de Trânsito Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 796):
[...] Não há crime pela mera flagrância de dirigir veículo com o direito cassado. Importa que provoque ameaça de perigo de danos a pessoas ou à incolumidade de bens públicos ou privados. Esta a condição para admitir-se o crime. Insta que advenha perigo de prejuízos físicos ou materiais, perfeitamente constatável no excesso de velocidade, na marcha à ré desnecessária, nas manobras imprudentes de ultrapassagem, no desrespeito à sinalização, nas paradas repentinas em plenas vias públicas, dentre várias outras hipóteses.
Assim, caso a prova da efetiva existência de perigo concreto não venha a ser produzida sob o crivo do contraditório, subsiste mera infração administrativa, não havendo que se falar em infração penal.
Segue o acórdão na íntegra:
Apelação Criminal n. 2012.101413-1, da Capital
Relator: Alexandre Morais da Rosa.
Apelante: R.M.
Apelado: Ministério Público do Estado de Santa Catarina
.
CTB – ART. 309 – PERIGO CONCRETO NECESSÁRIO – INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA NÃO É SINÔNIMO DE INFRAÇÃO PENAL – INCOMPATÍVEL COM O DIREITO PENAL MÍNIMO A CRIMINALIZAÇÃO DA DIREÇÃO SEM CARTEIRA DE HABILITAÇÃO, AUSENTE PERIGO CONCRETO.
“Faz-se necessário que o condutor não tenha o direito de dirigir, seja porque não o adquiriu, seja porque não o possuiu mais. Ademais, imprescindível que de sua conduta resulte um perigo concreto ao objeto da ação. Do contrário haverá apenas infração administrativa” (Lição de Leonardo Schmitt de Bem).
.
Visto, relatado e discutido a presente Apelação Criminal n. 2012.101413-1, da Capital, interposta por R.M. em face de Ministério Público do Estado de Santa Catarina.
ACORDAM, em Primeira Turma de Recursos Cíveis e Criminais, por conhecer do recurso de apelação e, por maioria, dar-lhe provimento, para reformar a sentença proferida pelo juízo a quo e absolver o acusado por atipicidade da conduta, com base no art. 386, inciso III, do Código de Processo Penal.
.
Voto
1 – Trato de denúncia oferecida pelo representante do Ministério Público atuante no Juizado Especial Criminal da Comarca de São José contra R.M., atribuindo-lhe a prática do crime de condução de veículo sem habilitação, do art. 309 do Código de Trânsito Brasileiro.
A sentença proferida pelo juízo a quo julgou procedente a denúncia, condenando o acusado à pena de 07 (sete) meses de detenção, em regime semiaberto.
Irresignado com a condenação, o acusado interpôs Recurso de Apelação (fls. 75 - 79), requerendo o acolhimento da preliminar de nulidade por cerceamento de defesa e a absolvição por atipicidade da conduta ou insuficiência de provas, com base no art. 386, incisos III e VII, do Código de Processo Penal.
Sobrevieram contrarrazões Ministeriais pelo desprovimento do recurso (fls. 81 - 84).
É o breve relatório.
2 – Conheço do recurso por ser próprio e tempestivo.
3 – A distinção entre “atos de investigação” e “atos de prova” sublinhada por Aury Lopes Jr (Direito Processual Penal e sua conformidade constitucional. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 546 e sgts) é condição de possibilidade para se analisar o recurso, dado que é garantia do acusado o contraditório como requisito democrático de validade da prova testemunhal a ser valorada na decisão judicial. Logo, em atenção ao contraditório, publicidade, ampla defesa, reserva de jurisdição, somente os depoimentos produzidos em juízo serão valorados. O restante, atos de investigação, serviram para o recebimento da denúncia. Nada mais. Para sua consideração democrática imprescindível é que decorram do contraditório. Em suma: os elementos colhidos durante o inquérito policial se destinam apenas à formação da opinio delicti, devendo ser considerados pelo magistrado tão somente quando do recebimento da denúncia, pois não foram produzidas sob o crivo do contraditório. Quanto ao tema, já decidiu o Tribunal de Justiça Do Rio Grande do Sul[1]:
“1. Os elementos informativos colhidos no curso da investigação policial, porque não observam o contraditório e a ampla defesa, não são considerados provas propriamente ditas. São meros elementos de informação orientados especificamente fornecer subsídios para que o Ministério Público ofereça a denúncia. Recebida esta e iniciada a fase processual, é imprescindível sejam confirmados esses elementos indiciários, agora sob contraditório e observada a plenitude de defesa. Por isso, apenas os elementos informativos colhidos no inquérito policial e renovados sob contraditório podem ser considerados pelos jurados na formação do veredicto. Aqueles colhidos unicamente na investigação e não renovados em juízo, no curso da instrução criminal, não podem influir na formação do veredicto. Como consequência, também não podem os elementos informativos da investigação, quando não renovados sob contraditório, fundamentar a decisão de pronúncia. Precedentes da Câmara Criminal.
2.No caso, sendo a versão do acusado, que alegou ter agido em legítima defesa, a única nos autos, é impositiva a sua absolvição sumária, com base no artigo 415, IV, do Código de Processo Penal.
RECURSO PROVIDO.”
4 – Em que pese as razões e fundamentos da sentença condenatória, não vislumbro nos autos provas de que o acusado tenha gerado perigo concreto de dano, fator indispensável à configuração do crime conforme previsão legal.
A denúncia – peça que fixa o limite máximo da condenação e deve descrever perfeitamente a conduta tida com criminosa – assenta que a ação delituosa consistiria em dirigir veículo automotor sem carteira de habilitação, gerando perigo de dano consubstanciado em “manifesta imprudência e imperícia”, porquanto teria o acusado perdido o controle do veículo que trafegava e colidido com o canteiro que separa a via principal da marginal.
Todavia, durante a instrução nada foi provado neste sentido. A configuração do crime demandaria a plena demonstração dos atos que, conforme a denúncia, teriam, causado perigo de dano, destacando-se que a afirmação de mera imprudência e imperícia não se confundem com o perigo resultante do fato.
Com efeito, dos depoimentos não se pode extrair elementos que evidenciem a execução de manobras capazes de causar dano. Ao contrário, a testemunha K.F. (fl. 27), Policial Rodoviário Federal que prestou atendimento à ocorrência, sustentou em juízo que “do acidente não restaram danos à [sic] outras pessoas nem ao patrimônio público”, evidenciando ainda mais a insuficiência de elementos no sentido de que o evento tenha gerado risco à incolumidade pública.
5 – Segundo expõe Arnaldo Rizzardo (Comentários ao Código de Trânsito Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 796):
[...] Não há crime pela mera flagrância de dirigir veículo com o direito cassado. Importa que provoque ameaça de perigo de danos a pessoas ou à incolumidade de bens públicos ou privados. Esta a condição para admitir-se o crime. Insta que advenha perigo de prejuízos físicos ou materiais, perfeitamente constatável no excesso de velocidade, na marcha à ré desnecessária, nas manobras imprudentes de ultrapassagem, no desrespeito à sinalização, nas paradas repentinas em plenas vias públicas, dentre várias outras hipóteses. [...]
Nesse sentido, igualmente, destaca Leonardo Schmitt de Bem que “faz-se necessário que o condutor não tenha o direito de dirigir, seja porque não o adquiriu, seja porque não o possuiu mais. Ademais, imprescindível que de sua conduta resulte um perigo concreto ao objeto da ação. Do contrário haverá apenas infração administrativa” (Direito Penal de Trânsito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 212).
Assim já decidiu o Superior Tribunal de Justiça:
RECURSO ESPECIAL. CONDUZIR VEÍCULO AUTOMOTOR SEM HABILITAÇÃO. CONTRAVENÇÃO. ATIPICIDADE. INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA.
1. A partir da vigência do novo Código de Trânsito Brasileiro (Lei nº 9.503/97), o ato voluntário de dirigir veículo automotor sem possuir habilitação consubstancia fato de mera infração administrativa, sendo definido como crime somente se demonstrado o perigo de dano concreto, hipótese alheia à versada na espécie. Precedentes.
2. Recurso provido (Recurso Especial n. 331304/SP. Relator Min. Fernando Gonçalves. Julgado em 25.03.2002).
Colhe-se precedente do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, no mesmo sentido:
APELAÇÃO CRIMINAL. RECURSOS DEFENSIVOS.
[...]
RECURSO DO RÉU MOACIR. CRIME DE TRÂNSITO. DIRIGIR VEÍCULO SEM HABILITAÇÃO. AUSÊNCIA DE PERIGO CONCRETO. MERO ILÍCITO ADMINISTRATIVO. ABSOLVIÇÃO DECRETADA. RECURSO PROVIDO. (Apelação Criminal n. 2008.048640-0, de Balneário Camboriú. Relator: Des. Torres Marques. Julgado em 31.10.2008).
5 - Diante do exposto, a absolvição do acusado quanto ao delito do art. 309 da Lei n. 9.503/97 é a medida que se impõe.
DECISÃO
A Turma, por maioria, decidiu conhecer do recurso de apelação e dar-lhe provimento, para reformar a sentença proferida pelo juízo a quo e absolver o acusado por atipicidade da conduta, com base no art. 386, inciso III, do Código de Processo Penal.
Capital, 11 de julho de 2013.
Alexandre Morais da Rosa
Relator
Notas e Referências:
[1] Apelação Criminal n. 70045630134, da Comarca de Erechim. Relator Des. Nereu José Giacomolli. Julgado em 01/03/2012.
Imagem Ilustrativa do Post: Tail lights, lights, rain on my windshield, cool, wet, groovy, Seattle, Washington, USA // Foto de: Wonderlane // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/wonderlane/5180602734/
Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode