Alexandre Morais da Rosa - 07/03/2017
Ano letivo começa e indico a leitura da Exposição de Motivos do Código de Processo Penal de 1941, elaborada pelo então Ministro da Justiça Francisco Campos. A ideia é a de situar os acadêmicos no "espírito autoritário" do CPP. A partir disso, compreender o pano de fundo da aplicação das regras do CPP, devidamente lidas pela Constituição e pelas Convenções de Direitos Humanos. De onde partimos:
EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E NEGÓCIOS INTERIORES
GABINETE DO MINISTRO, em 8 de setembro de 1941
Senhor Presidente:
Tenho a honra de passar às mãos de Vossa Excelência o projeto do Código de Processo Penal do Brasil.
Como sabe Vossa Excelência, ficara inicialmente resolvido que a elaboração do projeto de Código único para o processo penal não aguardasse a reforma, talvez demorada, do Código Penal de 90.
Havia um dispositivo constitucional a atender, e sua execução não devia ser indefinidamente retardada. Entre‐ tanto, logo após a entrega do primitivo projeto, organizado pela Comissão oficial e afeiçoado à legislação penal substantiva ainda em vigor, foi apresentado pelo Senhor Alcântara Machado, em desempenho da missão que lhe confiara o Governo, o seu anteprojeto de novo Código Penal. A presteza com que o insigne e pranteado professor da Faculdade de Direito de São Paulo deu conta de sua árdua tarefa fez com que se alterasse o plano traçado em relação ao futuro Código de Processo Penal. Desde que já se podia prever para breve tempo a efetiva remodelação da nossa antiquada lei penal material, deixava de ser aconselhado que se convertesse em lei o projeto acima alu‐ dido, pois estaria condenado a uma existência efêmera.
Decretado o novo Código Penal, foi então empreendida a elaboração do presente projeto, que resultou de um cuidadoso trabalho de revisão e adaptação do projeto anterior.
Se for convertido em lei, não estará apenas regulada a atuação da justiça penal em correspondência com o refe‐ rido novo Código e com a Lei de Contravenções (cujo projeto, nesta data, apresento igualmente à apreciação de Vossa Excelência): estará, no mesmo passo, finalmente realizada a homogeneidade do direito judiciário penal no Brasil, segundo reclamava, de há muito, o interesse da boa administração da justiça, aliado ao próprio interesse da unidade nacional.
A REFORMA DO PROCESSO PENAL VIGENTE
II – De par com a necessidade de coordenação sistemática das regras do processo penal num Código único para todo o Brasil, impunha‐se o seu ajustamento ao objetivo de maior eficiência e energia da ação repressiva do Es‐ tado contra os que delinquem. As nossas vigentes leis de processo penal asseguram aos réus, ainda que colhidos em flagrante ou confundidos pela evidencia das provas, um tão extenso catálogo de garantias e favores, que a repressão se torna, necessariamente, defeituosa e retardatária, decorrendo daí um indireto estímulo à expansão da criminalidade. Urge que seja abolida a injustificável primazia do interesse do indivíduo sobre o da tutela social. Não se pode continuar a contemporizar com pseudodireitos individuais em prejuízo do bem comum. O indivíduo, principalmente quando vem de se mostrar rebelde à disciplina jurídico‐penal da vida em sociedade, não pode invocar, em face do Estado, outras franquias ou imunidades além daquelas que o assegurem contra o exercício do poder público fora da medida reclamada pelo interesse social. Este o critério que presidiu à elaboração do presente projeto de Código. No seu texto, não são reproduzidas as fórmulas tradicionais de um mal‐avisado favorecimento legal aos criminosos. O processo penal é aliviado dos excessos de formalismo e joeirado de certos critérios norma‐ tivos com que, sob o influxo de um mal‐compreendido individualismo ou de um sentimentalismo mais ou menos equívoco, se transige com a necessidade de uma rigorosa e expedita aplicação da justiça penal.
As nulidades processuais, reduzidas ao mínimo, deixam de ser o que têm sido até agora, isto é, um meandro técnico por onde se escoa a substância do processo e se perdem o tempo e a gravidade da justiça. É coibido o êxito das fraudes, subterfúgios e alicantinas. É restringida a aplicação do in dubio pro reo. É ampliada a noção do flagrante delito, para o efeito da prisão provisória. A decretação da prisão preventiva, que, em certos casos, deixa de ser uma faculdade, para ser um dever imposto ao juiz, adquire a suficiente elasticidade para tornar‐se medida plenamente assecuratória da efetivação da justiça penal. Tratando‐se de crime inafiançável, a falta de exibição do mandato não obstará à prisão, desde que o preso seja imediatamente apresentado ao juiz que fez expedir o mandato. É revogado o formalismo complexo da extradição interestadual de criminosos. O prazo da formação da culpa é ampliado, para evitar o atropelo dos processos ou a intercorrente e prejudicial solução de continuidade da detenção provisória dos réus. Não é consagrada a irrestrita proibição do julgamento ultra petitum. Todo um capítulo é dedicado às medidas preventivas assecuratórias da reparação do dano ex delicto.
Quando da última reforma do processo penal na Itália, o Ministro Rocco, referindo‐se a algumas dessas medidas e outras análogas, introduzidas no projeto preliminar, advertia que elas certamente iriam provocar o desagrado
OS NOVOS INSTITUTOS DA LEI PENAL MATERIAL
XVI – O projeto consagra capítulos especiais à detalhada regulamentação dos institutos que, estranhos à lei penal ainda vigente, figuram no novo Código Penal, como sejam as medidas de segurança e a reabilitação, do mesmo modo que provê à disciplina da execução das penas principais e acessórias, dentro da sistemática do referido Código.
AS NULIDADES
XVII – Como já foi dito de início, o projeto é infenso ao excessivo rigorismo formal, que dá ensejo, atualmente, à infindável série das nulidades processuais. Segundo a justa advertência de ilustre processualista italiano, “um bom direito processual penal deve limitar as sanções de nulidade àquele estrito mínimo que não pode ser abstraído sem lesar legítimos e graves interesses do Estado e dos cidadãos”.
O projeto não deixa respiradouro para o frívolo curialismo, que se compraz em espiolhar nulidades. É consagrado o princípio geral de que nenhuma nulidade ocorre se não há prejuízo para a acusação ou a defesa.
Não será declarada a nulidade de nenhum ato processual, quando este não haja influído concretamente na decisão da causa ou na apuração da verdade substancial. Somente em casos excepcionais é declarada insanável a nulidade.
Fora desses casos, ninguém pode invocar direito à irredutível subsistência da nulidade.
Sempre que o juiz deparar com uma causa de nulidade, deve prover imediatamente à sua eliminação, renovando ou retificando o ato irregular, se possível; mas, ainda que o não faça, a nulidade considera‐se sanada:
a) pelo silêncio das partes; b) pela efetiva consecução do escopo visado pelo ato não obstante sua irregularidade; c) pela aceitação, ainda que tácita, dos efeitos do ato irregular.
Se a parte interessada não argui a irregularidade ou com esta implicitamente se conforma, aceitando‐lhe os efeitos, nada mais natural que se entenda haver renunciado ao direito de argui‐la. Se toda formalidade processual visa um determinado fim, e este fim é alcançado, apesar de sua irregularidade, evidentemente carece esta de importância. Decidir de outro modo será incidir no despropósito de considerar‐se a formalidade um fim em si mesma.
É igualmente firmado o princípio de que não pode arguir a nulidade quem lhe tenha dado causa ou não tenha in‐ teresse na sua declaração. Não se compreende que alguém provoque a irregularidade e seja admitido em seguida, a especular com ela; nem tampouco que, no silêncio da parte prejudicada, se permita à outra parte investir‐se no direito de pleitear a nulidade.
O ESPÍRITO DO CÓDIGO
XVIII – Do que vem de ser ressaltado, e de vários outros critérios adotados pelo projeto, se evidencia que este se norteou no sentido de obter equilíbrio entre o interesse social e o da defesa individual, entre o direito do Estado à punição dos criminosos e o direito do indivíduo às garantias e seguranças de sua liberdade. Se ele não transige com as sistemáticas restrições ao poder público, não o inspira, entretanto, o espírito de um incondicional autoritarismo do Estado ou de uma sistemática prevenção contra os direitos e garantias individuais.
É justo que, ao finalizar esta Exposição de Motivos, deixe aqui consignada a minha homenagem aos autores do projeto, Drs. Vieira Braga, Nelson Hungria, Narcélio de Queiroz, Roberto Lyra, Desembargador Florêncio de Abreu e o saudoso Professor Cândido Mendes de Almeida, que revelaram rara competência e a mais exata e larga com‐ preensão dos problemas de ordem teórica e de ordem prática que o Código se propõe resolver.
Na redação final do projeto contei com a valiosa colaboração do Dr. Abgar Renault. Aproveito a oportunidade para renovar a Vossa Excelência os protestos de meu mais profundo respeito.
Francisco Campos