Cônjuge separado de fato há mais de dois anos somente tem direito a herança se comprovar ausência de culpa na separação

14/01/2016

Por Patrícia Cordeiro - 14/01/2016

O cônjuge separado de fato, há mais de dois anos só terá direito a herança se nos termos do artigo 1.830 do Código Civil, comprovar que não teve culpa na separação, este foi o entendimento da 4º turma do Superior Tribunal de Justiça.

Foi dado provimento a um recurso especial que visava declarar que um cônjuge separado de fato há mais de dois anos, não deveria figurar na qualidade de herdeira do “de cujus”.

A relatora, ministra Isabel Gallotti, afirmou: “compete ao cônjuge sobrevivente separado de fato há mais de dois anos comprovar, nos termos do art. 1.830 do Código Civil, que a convivência se tornara impossível sem sua culpa, e consideradas as circunstâncias fáticas delineadas pelas instâncias ordinárias no sentido de ser a prova dos autos inconclusiva, de modo que não desincumbiu a recorrida de seu ônus probatório, entendo que a cônjuge sobrevivente não ostenta a qualidade de herdeira do “de cujus”.”

A ministra explicou que somente há o reconhecimento de direto sucessório, quando o cônjuge sobrevivente comprovar que não estava separado de fato, há mais de dois anos quando ocorreu a morte do outro. Entretanto, afirmou que a exceção ocorre quando o cônjuge sobrevivente comprove nos termos do artigo 1.830 do Código Civil, que a convivência havia se tornado impossível sem sua culpa.

Confira abaixo a decisão na íntegra (os nomes das partes foram substituídos pelas iniciais).

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

RECURSO ESPECIAL Nº 1.513.252 - SP (2011/0058878-5)

RELATÓRIO

MINISTRA MARIA ISABEL GALLOTTI: Trata-se de recurso especial interposto por A. E. e outros, com fundamento no artigo 105, III, alíneas “a” e “c”, da Constituição Federal, interposto em face de acórdão assim ementado (e-STJ fl. 605):

DIREITOS HEREDITÁRIOS. Exclusão de herdeira - Casamento pelo regime da separação total de bens - Morte de cônjuge, sem ascendentes ou descendentes, não havendo deixado testamento - Sucessão legítima deferida ao cônjuge sobrevivente (CC/02, art. 1829, III) - Da interpretação do art. 1830 do mesmo diploma legal, o direito sucessório do cônjuge sobrevivente só é reconhecido para os separados de fato há menos de dois anos, ou para os separados de fato há mais de dois anos, desde que não provada a culpa do cônjuge sobrevivente - Ônus da prova da culpa é dos terceiros interessados, na espécie os colaterais, irmãos do falecido, em ação própria - Casal separado há mais de dois anos quando o varão faleceu - Prova dos autos conflitante e inconclusiva, no sentido de demonstrar que a apelante fosse culpada da separação de fato do casal - Assim, os apelados não demonstraram o fato constitutivo de seu direito - Reforma da sentença, para julgar improcedente a ação, com inversão do ônus da sucumbência - Recurso provido.

Opostos embargos infringentes, foram rejeitados pelo seguinte acórdão (e-STJ fl. 742):

EXCLUSÃO DE HERDEIRO - Ônus da prova - Art. 1.830 do CC - Encargo de demonstrar que a ruptura da vida conjugal se deu por culpa do cônjuge sobrevivente dos autores - Testemunhas dos autores que não foram uníssonas - Declarações não corroboradas na fase judicial - Embargos rejeitados.

A parte recorrente alega violação aos artigos 1.829, III, e 1.830 do CC e 131 e 333, I, do CPC, a partir dos seguintes argumentos:

a) a discussão da culpa é impertinente e ilegal no direito sucessório, notadamente no caso em questão, em que é incontroversa a separação de fato entre os cônjuges há praticamente uma década, tendo em vista a violação aos princípios do contraditório e ampla defesa e da solidariedade e afetividade, porque a Documento: 45314929 - RELATÓRIO E VOTO - Site certificado Página 1 de 11 Superior Tribunal de Justiça simples separação de fato prolongada é suficiente para afastar o direito sucessório, pois cessados os efeitos do regime de bens;

b) considerada a culpa para fins de direito sucessório, conforme prevê o art. 1.830 do CC, o ônus da prova deve ser atribuído ao cônjuge sobrevivente e não aos interessados na sucessão, no caso, os colaterais, visto que o direito sucessório, após dois anos de separação de fato é excepcional, cabendo ao sobrevivente o ônus da prova de fato constitutivo de seu direito.

Afirma que a excepcionalidade do direito sucessório do cônjuge sobrevivente após os dois anos de separação de fato soa evidente: até dois anos de separação de fato, o direito sucessório está assegurado, independentemente da questão da culpa. Após dois anos de separação fática, não há direito sucessório, salvo, excepcionalmente, quando ele, cônjuge sobrevivente, comprovar inequivocamente que a convivência se tornara impossível sem a sua culpa.

c) ficou comprovado o fato constitutivo do direito sucessório dos agravantes, qual seja, que os cônjuges estão separados de fato há mais de dois anos, e que os colaterais, ora agravantes, figuram na ordem de vocação hereditária.

Aduz que a prova dos autos é inequívoca no sentido de que o casamento entre o “de cujus” e a agravada nunca se consumou efetivamente, não passando de um casamento de interesses em que ela pretendia obter cidadania italiana e ele a permanência definitiva no Brasil. Assevera que, quando do óbito do “de cujus”, o casal já estava separado de fato há nove anos e meio. Desse modo, alega que a prova documental produzida nos autos, que comprova a ausência de “affectio maritalis” entre as partes, foi mal valorada pelo acórdão recorrido, ocorrendo violação ao art. 131 do CPC.

É o relatório.

RECURSO ESPECIAL Nº 1.513.252 - SP (2011/0058878-5)

VOTO

MINISTRA MARIA ISABEL GALLOTTI (Relatora): Inicialmente, no que diz respeito ao direito sucessório do cônjuge sobrevivente, cumpre ressaltar que o atual Código Civil de 2002 trouxe expressivas inovações.

A mais expressiva consiste na inclusão do cônjuge como herdeiro necessário, passando a ter direito à legítima, figurando também entre as duas primeiras classes preferenciais, em concorrência, portanto, com descendentes e ascendentes, ou exclusivamente, caso não haja sucessor em linha reta. É o que prevê o art. 1.829 do Código Civil:

Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:

I - aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens; ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;

II - aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;

III - ao cônjuge sobrevivente;

IV - aos colaterais.

Segundo preceitua Paulo Lôbo, a promoção do cônjuge sobrevivente a herdeiro necessário representa forte alteração no modelo que antes privilegiava o parentesco derivado da consanguinidade (relação vertical) em detrimento do cônjuge (relação horizontal). A ideia era de que o sobrevivente, estranho em relação à família (de sangue), somente poderia herdar se não sobrevivesse parente consanguíneo (Lôbo, Paulo, Direito Civil: Sucessões. São Paulo: Saraiva, 2014).

O Código Civil de 2002, portanto, distancia-se da concepção tradicional de grupos de parentes consanguíneos em prol da concepção de grupos unidos por laços de afetividade e solidariedade, evitando que parentes distantes prevaleçam sobre o cônjuge sobrevivente. Por esse motivo, no novo código, o cônjuge sobrevivente foi posicionado antes dos parentes colaterais.

Segundo o referido autor, “são os laços de afetividade, que se presumem entre cônjuges, descendentes e ascendentes, e não os de parentesco, que determinam a escolha dos herdeiros necessários. Não é mais justificável na contemporaneidade que parentes distantes (que já atingiram o décimo grau, no Brasil), alguns até mesmo desconhecidos do de cujus, prevaleçam sobre o cônjuge sobrevivente” (Lôbo, Paulo (...), p. 121).

Por outro lado, o art. 1830 do CC traz limitações ao exercício do direito sucessório pelo cônjuge supérstite, excluindo da sucessão o cônjuge separado judicialmente ou separado de fato há mais de dois anos, salvo prova, neste caso, de que a convivência se tornou impossível sem culpa do sobrevivente. A respeito:

Art. 1.830. Somente é reconhecido direito sucessório ao cônjuge sobrevivente se, ao tempo da morte do outro, não estavam separados judicialmente, nem separados de fato há mais de dois anos, salvo prova, neste caso, de que essa convivência se tornara impossível sem culpa do sobrevivente.

Este dispositivo é amplamente criticado pela doutrina brasileira, principalmente, no que diz respeito à possibilidade de discussão de culpa como requisito para se determinar a exclusão ou não do cônjuge sobrevivente da ordem de vocação hereditária.

Rolf Madaleno, por exemplo, aponta a existência de uma “culpa mortuária”, ressaltando a dificuldade de produção da prova após o falecimento de um dos cônjuges, que poderá gerar longas e desgastantes discussões processuais. A propósito:

Contudo, se ainda é possível entender, sem mais concordar, que possam os cônjuges desafetos eternizar suas disputas no ventre de uma morosa e inútil separação judicial causal, qualquer sentido pode ser encontrado na possibilidade aberta pelo atual codificador ao permitir pelo atual art. 1.830 do Código Civil, que o cônjuge sobrevivente acione o Judiciário para discutir a culpa do esposo que já morreu.

Abre a nova lei o exame da culpa funerária, ao prescrever que só conhece o direito sucessório do cônjuge sobrevivente se, ao tempo da morte do outro, não estavam separados judicialmente, nem separados de fato há mais de dois anos, salvo prova, neste caso, de que essa convivência se tornara impossível sem culpa do sobrevivente.

É a pesquisa oficial da culpa mortuária passados até dois anos de fática separação, quando toda a construção doutrinária e jurisprudencial já vinha apontando para a extinção do regime de comunicação patrimonial com a física separação dos cônjuges, numa conseqüência de lógica coerência da separação objetiva, pela mera aferição do tempo, que por si mesmo sepulta qualquer antiga comunhão de vida (Rolf Madaleno, A concorrência sucessória e o trânsito processual: a culpa mortuária., In: Revista brasileira de direito de família, v. 7, n. 29, p. 144-151, abr./maio 2005).

Segundo aponta Paulo Lôbo, a imputação da culpa do falecido pela separação de fato viola os princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório, impedindo que o falecido possa contraditar a acusação de culpa.

O tema também é objeto de crítica pela doutrina de Francisco José Cahali que aponta a desarmonia da exigência do prazo mínimo de dois anos em relação às demais normas do próprio Código Civil, como a que permite a caracterização da união estável mesmo se um dos companheiros seja casado, desde que separado de fato, sem nenhuma referência a prazo (art. 1.723, § 1º, do CC).

Na mesma linha, Cahali aponta que a imputação de culpa para fins de direito sucessório representa verdadeiro retrocesso, principalmente diante da EC 66/2010, que trouxe a possibilidade da dissolução do casamento diretamente por divórcio sem observação de tempo mínimo de convivência ou discussão de culpa. A propósito:

 A segunda parte da regra, porém, merece severa crítica. No caminhar da busca pela separação judicial com base no princípio da ruptura, como existente na legislação estrangeira, vislumbrando a sociedade libertar-se da culpa no rompimento afetivo, já facilitado o fundamento para a ação de separação (CC, art. 1.573, parágrafo único), e há tempos permitindo o divórcio direto sem questionamento do motivo da ruptura, mostra-se retrógrada a previsão agora ainda mais frágil diante da EC 66/2010 que trouxe a possibilidade da dissolução do casamento diretamente por divórcio sem observação de tempo mínimo de vivência ou discussão de culpa.

A verificação desta circunstância enseja revolver fatos do passado, talvez caídos no esquecimento, quando o casamento se tornou mera reminiscência cartorial, apenas para a busca do benefício patrimonial.

E é tumultuária a previsão, pois traz ao direito sucessório matéria totalmente estranha a este instituto, consistente na causa da separação do casal (Cahali, Francisco José e Hironaka, Giselda Maria F. N., 5ª Ed. São Paulo: Editora revista dos Tribunais, 2014).

À vista do texto expresso da lei, todavia, cumpre definir seu sentido e alcance.

Considero, na linha de evolução do direito brasileiro, que as regras trazidas pelo Código Civil de 2002 visam a elevar a proteção conferida ao cônjuge sobrevivente, tendo em vista a forma como se desenvolveu a matéria.

O tratamento conferido ao cônjuge pelo Código Civil de 1916 considerava a circunstância de que a maioria dos matrimônios seguia o regime legal da comunhão universal. Desse modo, em caso de falecimento de um dos cônjuges, o outro não ficava desamparado, já que metade dos bens lhe pertencia, porque lhe era conferida a meação sobre a totalidade do patrimônio do casal.

A partir de 1977, com a edição da Lei nº 6.515 (Lei do Divórcio), o regime legal passou a ser o da comunhão parcial de bens, de modo que o cônjuge supérstite não necessariamente ficaria amparado, em caso de morte de seu consorte, já que a meação incidia apenas sobre os bens adquiridos onerosamente na constância do casamento.

As modificações trazidas pelo atual Código Civil, portanto, estabelecem solução para situações que já não eram mais resolvidas pela legislação anterior, tendo em vista as alterações legislativas ocorridas.

Nesse contexto, a regra do art. 1.830 do CC, ao conferir direito sucessório ao cônjuge separado de fato até dois anos ou por período superior, caso haja prova de que a convivência se tornara insuportável sem culpa do sobrevivente, deve ser interpretada no sentido de conferir proteção a casos em que caracterizada a impossibilidade da comunhão de vida, conforme prevê o art. 1.573 do Código Civil. A propósito:

Art. 1.573. Podem caracterizar a impossibilidade da comunhão de vida a ocorrência de algum dos seguintes motivos:

I - adultério;

II - tentativa de morte;

III - sevícia ou injúria grave;

IV - abandono voluntário do lar conjugal, durante um ano contínuo;

V - condenação por crime infamante; VI - conduta desonrosa.

Parágrafo único. O juiz poderá considerar outros fatos que tornem evidente a impossibilidade da vida em comum.

Como esclarece Tizziane Cândido da Silva Nascimento, a exclusão do direito sucessório do cônjuge sobrevivente com a simples separação de fato, independente de lapso temporal ou arguição de culpa, não exprime “o valor da justiça nos casos de abandono de lar por um dos cônjuges, ou de decretação de separação de fato pelo Poder Judiciário dos consortes em virtude de tentativa de morte ou injúria grave, de casais unidos, por exemplo, há mais de vinte anos, e estão separados de fato há mais de dois anos”. Nesse sentido, “seria absurdo defender que uma mulher que conviveu por anos com seu esposo e contribuiu para a dilatação do patrimônio do casal, em sendo abandonada por seu marido não tivesse direito à herança do falecido, por ser legalmente apartada da sucessão” (NASCIMENTO, Tizianne Cândido da Silva. Direito sucessório do cônjuge sobrevivente separado judicialmente ou separado de fato. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, 2006. Disponível em: . Acesso em: 9 mar. 2015).

Desse modo, não há que se falar em ilegalidade ou impertinência da discussão da culpa no vigente direito sucessório.

Ademais, no caso em questão, os recorrentes alegam a ilegalidade da discussão da culpa, sustentando a tese de que a separação de fato prolongada seria causa suficiente para o afastamento do direito sucessório. Nesse sentido, apontam dissídio jurisprudencial em relação ao REsp 555.771/SP, de relatoria do Min. Luis Felipe Salomão, caso em que o cônjuge sobrevivente teria sido afastado da sucessão em razão da prolongada separação de fato do casal. Confira-se a ementa do julgado:

DIREITO CIVIL. FAMÍLIA. SUCESSÃO. COMUNHÃO UNIVERSAL DE BENS. INCLUSÃO DA ESPOSA DE HERDEIRO, NOS AUTOS DE INVENTÁRIO, NA DEFESA DE SUA MEAÇÃO. SUCESSÃO ABERTA QUANDO HAVIA SEPARAÇÃO DE FATO. IMPOSSIBILIDADE DE COMUNICAÇÃO DOS BENS ADQUIRIDOS APÓS A RUPTURA DA VIDA CONJUGAL. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.

1. Em regra, o recurso especial originário de decisão interlocutória proferida em inventário não pode ficar retido nos autos, uma vez que o procedimento se encerra sem que haja, propriamente, decisão final de mérito, o que impossibilitaria a reiteração futura das razões recursais.

2. Não faz jus à meação dos bens havidos pelo marido na qualidade de herdeiro do irmão, o cônjuge que encontrava-se separado de fato quando transmitida a herança.

3. Tal fato ocasionaria enriquecimento sem causa, porquanto o patrimônio foi adquirido individualmente, sem qualquer colaboração do cônjuge.

4. A preservação do condomínio patrimonial entre cônjuges após a separação de fato é incompatível com orientação do novo Código Civil, que reconhece a união estável estabelecida nesse período, regulada pelo regime da comunhão parcial de bens (CC 1.725)

5. Assim, em regime de comunhão universal, a comunicação de bens e dívidas deve cessar com a ruptura da vida comum, respeitado o direito de meação do patrimônio adquirido na constância da vida conjugal.

6. Recurso especial provido.

(REsp 555771/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 5/5/2009, DJe 18/5/2009)

Tal fundamento, no entanto, não merece prosperar. Verifico que não há similitude fática entre os casos confrontados. Conforme se depreende da própria ementa do acórdão apontado como paradigma, o caso discute o direito de meação do cônjuge separado de fato, casado pelo regime da comunhão universal de bens, em relação aos bens havidos pelo marido na qualidade de herdeiro do irmão, não guardando pertinência, portanto, com o presente caso, que trata do direito sucessório do cônjuge sobrevivente.

Quanto à distribuição do ônus probatório, entendo que assiste razão aos recorrentes.

No caso exame, ao interpretar o art. 1.830 do Código Civil, o Tribunal de origem concluiu que o ônus da prova é dos terceiros interessados, na espécie, os colaterais, irmãos do falecido, os quais deveriam provar que a ruptura da vida conjugal se deu por culpa do cônjuge sobrevivente, visto ser incontroverso que o casal estava separado de fato há mais de dois anos quando o varão veio a falecer.

Ocorre, porém, que o art. 1.830 do Código Civil dispõe que somente será reconhecido o direito sucessório ao cônjuge sobrevivente se, ao tempo da morte do outro, não estavam separados de fato há mais de dois anos, salvo prova, neste caso, “de que essa convivência se tornara impossível sem culpa do sobrevivente”.

Assim, a meu ver, cabia ao sobrevivente comprovar que “a convivência se tornara impossível sem culpa” sua. Isso porque, conforme se verifica da ordem de vocação hereditária prevista no art. 1.829, o cônjuge separado de fato é exceção à ordem de vocação.

Conforme exposto, ao alçar o cônjuge sobrevivente à condição de herdeiro necessário, a intenção do atual Código Civil é proteger as relações unidas por laços de afetividade, solidariedade e convivência para as quais a proximidade e integração de seus membros são mais relevantes que os laços mais distantes de parentesco.

Nesse sentido, Paulo Lôbo ressalta que “a proteção da legítima de quem conviveu proximamente ao de cujus, como seu cônjuge sobrevivente, é mais justificável que o direito sucessório do irmão, tio ou primo daquele” e acrescenta “que a proteção legal volta-se ao cônjuge que convivia de fato com o de cujus no momento de sua morte” (Lôbo, Paulo. (...), p. 121).

Desse modo, a sucessão do cônjuge separado de fato é exceção à regra geral, devendo o cônjuge separado há mais de dois anos suceder apenas se comprovar que a convivência se tornara impossível sem culpa sua.

Nesse mesmo sentido, entende Zeno Veloso:

Por último, não que sejam os menos importantes, ao contrário -, Flávio Tartuce e José Fernando Simão entendem que caberá ao cônjuge sobrevivente o ônus de provar que “a convivência se tornou impossível”, gerando a separação de fato não por sua culpa; “na realidade, na maioria das vezes, isso significará dizer que a culpa foi do falecido” (Direito civil; direito das sucessões, cit. V. 6, p. 160). Minha opinião está de acordo com a desse grupo de professores, acima citados, e justifico: o Código Civil tem uma regra: o cônjuge é herdeiro (arts. 1.829, I, II, e III; 1.838), que apresenta uma exceção (além dos casos gerais, de indignidade e deserdação), ou seja, de que o cônjuge não ostenta a qualidade de herdeiro do outro, se ao tempo da morte deste estava separado judicialmente, ou separado de fato, há mais de dois anos (CC, art. 1.830, primeira parte), sendo prevista, todavia, a exceção da exceção: “salvo prova, neste caso, de que esta convivência se tornara impossível sem culpa s sobrevivente” (art. 1.830, in fine). Então, seguindo a proposição do dispositivo, que tem uma sequencia lógica, para que o cônjuge seja afastado da sucessão, devem os herdeiros interessados na exclusão provar que há separação de fato num período de mais de dois anos; mas o cônjuge, inconformado, pode ser mantido na sucessão, se provar, não obstante, que a convivência se tornou impossível sem culpa dele, cônjuge sobrevivente. Isso não impede que os interessados no afastamento do cônjuge, nos termos do art. 1.830, provem que o casal estava separado de fato há mais de dois anos e apresentem também a prova, desde logo, de que a convivência se tornou impossível por culpa do sobrevivente. (VELOSO, Zeno, Direito hereditário do cônjuge e do companheiro. São Paulo: Saraiva, 2010, grifos no original).

Nesses termos, adiro aos fundamentos do voto vencido do Desembargador Guimarães e Souza, do qual transcrevo (e-STJ fls. 615/616):

Desse modo, por força do que dispõe o inciso II do artigo 333 do Código de Processo Civil, à ré incumbia o ônus da prova da existência de fato impeditivo do direito dos autores (direito à sucessão que decorre da ordem de vocação hereditária prevista no artigo 1.829 do Código Civil), ou, em outras palavras, cabia à ré provar que pelo fato de ter-se visto impossibilitada de conviver com o autor da herança é que dele se separou, sem que culpa tivesse, e, assim, amparada na regra excepcional do artigo 1.830 do Código Civil teria direito à herança dos bens deixados pelo seu ex-marido, direito esse que, em princípio, está afastado pelo próprio artigo 1.830, em sua primeira parte.

Claro que não lhe competiria provar que não agiu com culpa, pois se assim fosse exigido, estaria a ré obrigada a fazer prova negativa. Mas, para ver reconhecido o seu direito sucessório, afastando o dos autores - já que só será admitida como herdeira em condições excepcionais, repita-se, pelo fato de estar separada há mais de dois anos - teria que produzir prova, sem margem de dúvida, de que a sua separação de fato ocorreu, por tornar-se impossível a convivência com autor da herança.

Cumpre ressaltar que os autores figuram naturalmente na ordem de vocação hereditária, daí o fato constitutivo de seu direito à sucessão. A ré, ao revés, só excepcionalmente tem direito à sucessão dos bens deixados pelo ex-marido, por dele estar separada há mais de dois anos (cerca de nove anos) quando do falecimento do autor da herança e esse direito sucessório somente é reconhecido (vide texto expresso do artigo 1.830 do Código Civil) com a prova de que a convivência se tornara impossível, sem ter tido culpa pela separação. Logo, competiria à ré provar a existência de fato impeditivo do direito dos autores (direito que, em princípio, decorre da ordem de vocação hereditária), porque, embora separada de fato há mais de dois anos, por exceção prevista no citado artigo 1.830 do Código Civil, teria direito à sucessão de seu ex-marido, porque, sem culpa sua, a convivência tornara-se impossível. (grifos no original)

Conforme a moldura fática delineada pelas instâncias ordinárias, destacou o acórdão recorrido que a prova dos autos é conflitante e inconclusiva. Nesse mesmo sentido, concluiu o voto vencido (e-STJ fls. 620/622):

Vale destacar que o eminente relator admite que "a prova dos autos é conflitante. A depoente e parte das testemunhas afirmaram que o casal chegara a conviver durante certo tempo, vindo a separar-se devido à homossexualidade do varão (fls. 330/331, 531/334, 404/406). Parte das testemunhas sustentou a versão de que o casal nunca convivera, dada a condição de homossexual do Varão (fls. 335/338/ 339/340 e 341/342). Outras testemunhas nada esclareceram (fls. 343/344 e 369).

Ora, se de um lado "a prova é inconclusiva no sentido de demonstrar, de maneira cabal, que a apelante fosse culpada da separação de fato do casal", conforme foi salientado pelo culto relator, de outra parte é bem de ver que não há, do mesmo modo, prova segura de que a convivência da ré com o ex-marido tornou-se impossível, sem que culpa sua houvesse.

Nem se alegue que o homossexualismo do autor da herança teria tornado a convivência do casal impossível. Primeiro, porque não há prova nesse sentido. Das testemunhas ouvidas, umas afirmam que a ré casou-se sabedora de que seu ex-marido era homossexual.

Outras, dizem que esse fato era desconhecido da ré. Segundo, porque há testemunhas que confirmam ter sido um casamento realizado por conveniência tanto do autor da herança, como da ré.

Terceiro, porque se a ré tinha conhecimento desde quando se casou que seu marido era homossexual, como afirmam algumas testemunhas, e ainda assim com ele teria vivido por cerca de três anos, conforme por ela foi afirmado, é duvidoso admitir-se, sem prova segura, que a separação ocorreu por ter-se tornado impossível a convivência em decorrência da homossexualidade do autor da herança.

Em suma, se a ré estava separada há longos anos quando seu ex-marido faleceu, a ela cabia demonstrar, sem sombra de dúvidas, que a separação só ocorreu por ter-se tornado impossível a convivência com o autor da herança, seu ex-marido, fato que, por si só, afastaria, quase por completo, qualquer eventual alegação de culpa sua pela separação. (grifos no original)

Estabelecida, portanto, a tese segundo a qual compete ao cônjuge sobrevivente separado de fato há mais de dois anos comprovar, nos termos do art. 1.830 do Código Civil, que a convivência se tornara impossível sem sua culpa, e consideradas as circunstâncias fáticas delineadas pelas instâncias ordinárias no sentido de ser a prova dos autos inconclusiva, de modo que não desincumbiu a recorrida de seu ônus probatório, entendo que a cônjuge sobrevivente não ostenta a qualidade de herdeira do “de cujus”.

Em face do exposto, dou provimento ao recurso especial a fim de restabelecer a sentença, inclusive quanto aos ônus da sucumbência, declarando que E. d. S. N. E. não ostenta a qualidade de herdeira do “de cujus” G. E.

É como voto.


Imagem Ilustrativa do Post: Couple // Foto de: mrhayata // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/mrhayata/141380149

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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