Por Redação- 07/10/2016
Reproduzimos uma entrevista obre os mais variados e polêmicos temas da sociedade, concedida por Agostinho Marques aos editores do Tabefe. A entrevista, que durou quase quatro horas, é um compêndio ralo e raro de muitas palestras feitas por ele ao longo de anos no convívio quase simbiótico com universitários.
Confira:
O poder e a opressão do prazer
Numa entrevista que durou quase quatro horas, o professor Agostinho Ramalho Marques Neto, 40 anos, do Departamento de Direito da UFMA, uma das pessoas mais requisitadas do meio universitário para participar de palestras e seminários, falou ao Tabefe sobre os mais variados e polêmicos temas da sociedade. A conversa numa das mesas do Bar Coqueiro, na praia da Ponta d’Areia, versou sobre política, drogas, homossexualismo, universidade, desejos etc. Agostinho Marques falou, entre outras coisas, sobre o prazer e sua castração que, segundo ele, se dá “através de duas vias principais do autoritarismo: o proibir e o tornar obrigatório”. Para ele, a fala é antes de tudo um ato de prazer. “Falta à universidade um pouco de loucura, um pouco mais de sal”, diz. Agostinho definiu sua personalidade como múltipla e incoerente, mas sobretudo indefinível: “Às vezes sou tiranizante e tiranizado, crítico e autocrítico”.
Quem é Agostinho Marques?
Agostinho Marques - É uma figura mais ou menos múltipla. Eu sou vários. Alterno comigo mesmo. Sou meio tiranizante e tiranizado, crítico e autocritico. Sou uma pessoa em muitos aspectos, mas o principal deles é o indefinível, porque está em processo. Sou essencialmente processo. Ele não termina, pois a vida é o processo.
Muitas pessoas acham você muito eclético.
Agostinho Marques - Eu não sei o sentindo que elas usam esse termo. Mas o meu ecletismo é antes de tudo o seguinte: sou cheio de desejos. Meus desejos recaem sobre muitos objetos. Meu ecletismo é a própria pluralidade da paixão.
Você é uma pessoa que se coloca contra as injustiças sociais e o atraso da sociedade. Por que você não está filiado a um partido de esquerda, por exemplo?
Agostinho Marques - Eu não tenho o menor controle sobre minhas teses, sobre os efeitos que elas possam causar em outras pessoas. Elas vão rolar. E eu não faço isso impunemente. O que digo às vezes causa angústia. Quanto a essa dos partidos, eu dou total força aos que acho interessantes, progressistas. O PT, particularmente, no presente momento é um exemplo disso. O Partido Verde é um belo sonho que vai abrindo caminho no real. Mas a questão do partido pra mim é muito mais a seguinte: entre outras coisas, uma das minhas teses é, precisamente, a desorganização. É pôr dúvida onde a certeza está instalada. A organização é um momento necessário para que a desorganização tenha um espaço. Então, na medida em que me filio a um partido, fico numa posição em que tanto me limito ao partido, quanto limito, na minha fantasia, o partido em relação a mim mesmo. A minha fala começará a ter margens. Então, haverá umas coisas que poderei dizer e outras que não. Na minha opção pessoal, fico meio de fora e ao mesmo tempo dentro de uma estrutura partidária, precisamente para que eu possa falar com as coisas fluindo, para que eu possa deixar minha vida fluir sem colocar margens fixas. Estar sempre livre pra atravessar pra cá e acolá, sem que nisto você cometa uma transgressão tão imperdoável. Não pertencer a um partido é reivindicar para mim mesmo o direito de errar, ou seja, de ser errante. Nessa perspectiva, acho absolutamente essencial, no presente momento político, a existência dos partidos. E participo, eventualmente. Eu não afasto de plano a possibilidade de filiar-me a um partido político. Mas, nessa possibilidade de filiação, já vem junto a de desfiliação, ou seja, o movimento precisa ser como uma pluma no ar, uma brisa, que oscila e circula, mas tem seu movimento próprio. Minha recusa é de trilhar caminhos feitos. Mas, errante como sou, caminho numa certa direção: acredito na compatibilidade do socialismo com a democracia, para a construção de uma sociedade justa e plural, onde caibam as diferenças e os conflitos, sem que a opressão se faça necessária.
Não é muito cômodo estar fora de um partido?
Agostinho Marques - É sim. Ao mesmo tempo que dentro também. Na medida em que a gente está dentro de um partido político já sabe que ninguém colocará a questão de filiação, pois você já está filiado. Se estou, eu me defini. E, na medida em que eu me definir, ganho uma grande aceitação porque as pessoas passam a me conhecer, me identificar. Prefiro não me definir, mas ir me definindo.
Mas é cômodo na medida em que para uma pessoa que se assume partidariamente petista, por exemplo, as portas se fechariam. E para aquelas que ainda não se definiram terão o trânsito facilitado.
Agostinho Marques - Concordo inteiramente. Mas é como falei antes: as comodidades estão em ambos os lados. Na medida em que estou fora são as comodidades que vocês colocaram. Agora, quando estou dentro, as pessoas criam logo um estereótipo. Por exemplo, me olham dentro da estrela, mas não me olham particularmente. E acho que é muito importante você ser olhado dentro do olho e olhar também. Mas no fundo acho que isso não é uma questão. O problema não é o partido político e sim a luta política, é o engajamento transformador na perspectiva da libertação. Mas, às vezes - e isto não é nenhuma generalização, com o caráter de uma verdade -, o engajamento muito grande no coletivo implica esquecimento de mim. A coisa é tal que, quando uma pessoa pergunta “como vai?”, eu vou falar é do sistema. Mas acho que, ao mesmo tempo em que estamos voltados para a realidade, com vontade de transformá-la, é preciso ter olhos para dentro. É meio assim, ter quatro olhos: dois para fora e dois para dentro. É isso que é a dialética do movimento político. É preciso que as condições da sociedade se transformem. E eu luto por isso também, porque quero ser mais feliz. Então, não dá pra eu colocar a minha felicidade em uma organização social, porque penso a organização social de acordo com os meus desejos de ser feliz. É absolutamente fundamental a oscilação entre eu e o mundo, eu e a vida, eu e a sociedade.
É ponto consensual que Agostinho Marques é um dos melhores oradores na UFMA, senão o melhor. Tanto que, dias atrás, logo após uma palestra sua, uma aluna dissera aos amigos que havia chegado ao orgasmo. O que você acha disso?
Agostinho Marques - A mim gratifica enormemente. O meu trabalho é a minha fala, o meu prazer é a minha fala. Minha fala, às vezes, também é um orgasmo pra mim, uma troca de amor. Eu não me preocupo em ser um cientista, um filósofo, que a partir de mim se forme escola, e também se dizem que sou positivista, idealista ou dialético. Pra mim a fala é, antes de tudo, um ato de prazer. Falar é a minha arte. Eu adoraria ser cantor, por exemplo, saber tocar um violão. São coisas que na minha infância e adolescência não couberam no contexto em que vivia. Então, de qualquer forma, tive que aprender a tocar minha própria música. Só que era uma música falada. Caetano fala quando canta. Eu procuro fazer da minha fala um canto. Para isso, é preciso saber ouvir também. Se de repente é um campo de irradiação onde cabe o orgasmo, eu adoro, é ótimo.
Dentro dessa “sociedade sem prazer” em que vivemos como você analisa a castração do prazer?
Agostinho Marques - A castração do prazer, pra mim, se dá através de duas vias principais do autoritarismo, que são o proibir e o tornar obrigatório. Vamos dizer que na castração simbolicamente se pensa no falo. Então haveria duas lâminas cortantes desse falo: a proibição e o tornar obrigatório. No fundo é uma lâmina só, com o direito e o avesso, o positivo e o negativo, como a fotografia. Então, a castração do prazer está na repressão dele, porque “prazer é pecado”. E nossa cultura ocidental é baseada precisamente nisso: pecado, consequentemente culpa, arrependimento e, por último, redenção. O prazer fica reprimido, identificado com o pecado, o crime, o ilícito. Aí você se culpa. Pra sair disso tem que se arrepender, se redimir na pureza. Acho que a gente precisa admitir a impureza, em primeiro lugar porque o prazer é impuro e também é puro. O outro lado da castração é você tornar o prazer obrigatório. “Tem que ter prazer”. De repente vira uma bandeira de luta: “Queremos prazer!”. Então é a mesma opressão vista pelo avesso. As mulheres têm, por exemplo, toda uma ideologia em torno da virgindade. Aí se forma na cabeça delas que se mantenham virgens. E na cabeça dos homens, para exigirem a virgindade. Forma-se uma coisa cartorial. Você teria que ostentar, de repente, um selo de autenticidade. O avesso dessa ideologia é a inversão dela na medida em que se diz: “Não pode ser virgem, tem que transar!”. E o afeto, onde é que fica? E o desejo? E o que eu mesmo quero? Portanto, a palavra virgem é dialética dentro dela mesma. Significa uma coisa e o oposto dessa coisa. Na nossa ideologia a palavra virgem é identificada com Maria. Na visão cristã a mulher ou é puta, representada por Eva, ou é completamente pura, no caso Maria. Nossa ideologia faz da mulher esses dois mitos. Ou ela é pecado, a maldição como diz a Bíblia, ou é toda pureza. Em nenhum dos casos é real. A mulher é isso que está aí. De repente você sente o cheiro dela, a pele, o roçar do cabelo, o brilho dos olhos. E a gente perde a dimensão disso quando transforma a mulher num estereótipo.
Você tem a concepção do socialismo libertário, segundo a qual é preciso mudar não só o político como o social?
Agostinho Marques - Sem dúvida. Agora, não seria na perspectiva do “ter que mudar”. Eu amaria que as coisas fossem assim como imagino. Se de repente eu tivesse o poder de jogar a imaginação e essas coisas ganhassem corpo, seria absolutamente fantástico. Só que não o tenho. E seria melhor não tê-lo , afinal de contas, ele seria muito autoritário.
Seria mais interessante, então, que a revolução se desse primeiro no interior de cada pessoa para depois ser exteriorizada?
Agostinho Marques - Não. Não poria as coisas numa perspectiva de uma antes e uma depois. Pra mim é preciso que tudo isso aconteça, na medida em que isso seja possível. A minha própria abertura de consciência começa com a militância política. Estava tão fora de mim que precisei sair mais ainda e me jogar completamente na política, e a partir dessa via, voltar pra mim trazendo essa via junto. Então, não se trata de uma antes e uma depois. O movimento de cada um vai se determinando no seu próprio processo de vida. E o que vai determinar esse movimento é essencialmente a paixão. Pra mim, as coisas ficam cinzas quando não têm paixão. Então, a revolução de maneira nenhuma é uma coisa já dada em minha cabeça. Há várias revoluções. A vida própria é uma revolução, nós é que não somos revolucionários.
Você acha que a tentativa de implantar o socialismo no Brasil tem sido muito economicista, mecânica, com pouca paixão, tesão?
Agostinho Marques - Não acho propriamente. O socialismo no Brasil é muito pluriforme, tem várias tendências. E a tendência dominante talvez seja a que trate o marxismo de forma religiosa, o que no fundo é um desejo de pureza. A ideologia que está por trás disso diz: “Só poderei ser feliz se eu for puro”. É a ideologia cristã. Só com o arrependimento, com a purificação é que você vai pro céu. Essa questão de pureza como desejo de poder é, pra mim, o grande mascaramento da nossa civilização, que caracteriza o ponto de não-poder. Ser puro é ficar no lugar da fala, seguro, e a partir daí você poder atacar os outros. No fundo é um desejo de poder, A gente é muito levado pela ideologia dominante justamente por essa ideia de pureza.
Com é que você vê essa concepção dogmática do marxismo-leninismo, que na época de Stalin perseguia as pessoas que pensavam diferente dessa visão religiosa?
Agostinho Marques – Vejo como qualquer concepção dogmática, porque dogma é a verdade que não se discute. Acho que a verdade é justamente aquilo que não se discute. Quando deixo de discutir, estabeleço uma verdade. E nessa perspectiva, o marxismo dogmático, a igreja dogmática, qualquer visão dogmática do mundo é alienada e alienante. O Warat [teórico e professor Luis Alberto Warat], por exemplo, diz que as verdades servem para esconder os desejos, sejam elas políticas, religiosas etc. Entretanto, a verdade é como um horizonte, é uma coisa para onde eu vou, uma busca na qual eu acredito. A verdade não admite um “eu já cheguei”. O dogma é a verdade, uma coisa já chegada. O que mais caracteriza a verdade é que ela resulta de um esquema de poder no qual você exclui a discursão. Então, pra mim o dogmático é a negação do movimento, da vida, é o que há de expressão simbólica do autoritarismo.
Você falou certa vez que a própria relação sexual entre duas pessoas é uma forma de poder, uma vez que um está por cima e o outro, por baixo. Então você acha que se deve acabar com o poder? Ou a alternância de poder resolve?
Agostinho Marques - Vou dimensionar melhor a minha concepção disso. A relação sexual pode ser uma relação de poder. Vou tomar a questão do sexual e ampliar no sentido para o amoroso, afetivo. O poder só se dá porque somos seres afetivos. Se eu fosse um ser indiferente perante o mundo, não precisaria de poder nenhum. O poder é aquilo que preciso para realizar as minhas paixões. É a minha paixão que me dá o desejo de poder. Então, o espaço de poder está na linguagem. Quando Barthes [filósofo e semiólogo Roland Barthes] diz na sua bela aula que a língua é fascista é porque ela obriga a dizer de uma forma e exclui o dizer de outra forma, inibe o fluir do sentimento. A própria estrutura da língua te obriga, ao falar uma coisa, a te separar dessa coisa. Você se põe como sujeito, separa a outra coisa e a coloca como objeto, e no meio você liga com o verbo. Quando a Bíblia começa dizendo “... No principio era o verbo”, era mesmo. Todas as relações humanas são a três, nunca a dois. O terceiro desta relação é a linguagem. Aliás, é por isso que o ciúme é inevitável. Uma relação amorosa é o espaço de relação de poder, porque ela é um espaço simbólico. Só há uma forma de romper, de dissolver esse poder: a entrega amorosa. Então, o poder é uma coisa que está dentro da linguagem, é impossível aboli-lo. Abolir o poder é abolir a fala. Só posso abolir o poder se fizer a abolição do espaço simbólico e consequentemente a minha abolição, enquanto um ser humano, essencialmente um ser falante... Entretanto, na cruel realidade em que vivemos, somos forçados a criar uma visão maniqueísta de poder. Para nós o poder é sempre uma coisa má a ser evitada. E nesse papo, quero levantar o dado positivo do poder, que tanto pode ser aprisionador como libertador. Nós é que temos que decidir se queremos liberdade ou prisão. Só que temos que ter os pés no chão para saber que jamais teremos toda a liberdade, assim como, para quem deseja, jamais teremos toda a prisão, também porque mesmo dentro das celas os pensamentos voam.
Fale sobre a dicotomia amor e ódio.
Agostinho Marques - A dicotomia amor-ódio existe realmente. Mas não como se pensa que é, como a ideologia do “amai-vos uns aos outros” nos ensina. Amar não pode ser mandamento, não pode ser um livro de contabilidade que tem débito e crédito. Eu não devo nem tenho direito. É uma coisa que rola. Mas na nossa ideologia o ódio é completamente discriminado, apesar de nós vivermos odiando a nossa sociedade, que é construída toda em cima do ódio e não do amor. A sua estrutura é toda opressora, injusta, discriminatória. Então, o amor e o ódio são um par dialético, são contrapostos, mas não são antônimos. Se não amo, não posso odiar. Acho que só posso odiar. Mas não posso amar. Se alguém me tortura, eu odeio aquela pessoa. E só odeio sem amar. Mas parece que a gente não pode entrar no amor sem admitir que exista o ódio lá dentro. O contrário do amor e do ódio é a indiferença, a neutralidade, que é justamente o desamor e a negação do ódio.
Quanto à posição de grande parte da sociedade que se coloca contra o homossexualismo, as drogas, qual a sua reflexão?
Agostinho Marques - Para se falar do homossexualismo e das drogas temos que jogar a questão dentro da sua ambiência. E a ambiência é o conceito de normalidade, que pra mim é essencialmente um ato de poder. Quem tem poder define o que é normal, à sua imagem e semelhança, e já garante a si o próprio poder de transgredir esse normal. É no campo da relação de poder que se pode chegar ao conceito de normal e anormal, e a partir daí se tira o conceito de marginal. Quem tem o poder estabelece as margens. O homossexualismo entra precisamente aí. A primeira ambiência dele é a questão da normalidade, já posta aqui como ato de poder. E segunda é a sexualidade humana, que é simbólica. A nossa sexualidade é bissexual, no sentido de ela ser uma potência que irá se definir ou não. Suponhamos, por exemplo, uma gata recém-nascida. É como se ela fosse um cartão perfurado. Está programado na natureza biológica dela que mais adiante ela vai ter um cio e que, se nesse período ela encontrar um gato, eles vão ter uma relação sexual. Enfim, o animal é um cartão perfurado, já nasce programado, enquanto nós somos um cartão em branco, não estamos programados. Então, o que define a nossa sexualidade é, essencialmente, a afetividade. Nós sentimos afeto por homens e mulheres. Por exemplo, nós todos aqui somos amigos e nos gostamos. O homossexualismo é precisamente uma das direções da sexualidade que trazemos. Ser homossexual ou heterossexual são rótulos, porque nós, enquanto cartões não perfurados, somos uma potencialidade diante das coisas. Agora, nós temos uma cultura que se baseia no critério da normalidade, de definição de lei, em que o homossexualismo fica excluído. Por que? Porque atemoriza, eu acho, porque dá medo. Toda repressão, seja ela qual for, é motivada pelo medo. Eu colocaria o homossexualismo como uma potencialidade, como algo que está dentro de você. Você não precisa desenvolver essa potencialidade, mas pode desenvolvê-la, assim como ela pode te tomar de assalto ou não. Eu não trabalho com o conceito de normal e anormal no sentido de dizer, por exemplo, “o homossexualismo é normal”. Porque essa já é uma frase moralizante. Porque aí eu já teria admitido, previamente, critérios de normalidade, os quais considero como atos de opressão. O homossexualismo eu vejo algo que está na indiferenciação da sexualidade humana, que se baseia no afeto, essencialmente.
Como é que você avalia a questão das drogas?
Agostinho Marques - Eu creio que essa questão passa também pela ideologia da purificação, tipo “não use drogas”, que é uma maneira de dizer “seja puro”. Sobre isto em primeiro lugar aparece o discurso oficial, que utiliza os critérios do legal e do ilegal, do permitido e do proibido. E quando falo do discurso oficial, não estou me referindo apenas ao Estado e à sociedade, mas a autoridades, médicos, psiquiatras, que têm uma visão jurídica da droga. Só é droga aquilo que não é permitido, como a maconha, a cocaína, a heroína. Já o álcool e o cigarro não são. Em primeiro lugar gostaria de quebrar essa fronteira. A droga não atravessa o campo do licito e do ilícito. As mais perigosas são as licitas. A Rede Globo e suas novelas, que são umas drogas, causam dependência enorme. Aliás, o desenvolvimento da ciência e da tecnologia não vem como resposta às nossas necessidades. Pelo contrário, ele cria necessidades. No século passado ninguém tinha necessidade de ver novela da Globo, hoje todo mundo tem. Então, droga, num sentido mais específico, é tudo aquilo que causa necessidade, e que nessa perspectiva te afasta da tua necessidade, inclusive da tua necessidade de droga, caso você possua. Penso que para discutir droga é necessário afastar a perspectiva moralizante da questão. Agora a droga, no sentido de fazer mal, é aquela que se volta contra ti, que gera uma necessidade que não é tua, mas que está no lugar dela. Droga é aquilo que você põe no lugar do desejo. Cada um de nós tem sua própria droga. E ela pode nos fazer bem ou mal, depende de como nos relacionamos com ela. Claro que há drogas que causam dependência física: as industrializadas, os enlatados de televisão, a heroína, a morfina, que acabam se voltando contra você.
Você acha que a emoção e a razão se dividem ou as duas coisas se misturam?
Agostinho Marques - Pra mim o racional não existe. A razão é essencialmente cálculo. O raciocinar é ponderar, medir, pesar. Por trás disso há sempre uma paixão. O Hobbes [filósofo Thomas Hobbes], no seu “Leviatã”, faz toda uma antropologia a partir das paixões. Há uma passagem no livro que diz assim: “Os pensamentos são para os desejos como batedores ou espias, que vão ao mundo exterior buscar os meios para a realização desses desejos”. Então, não há uma razão pura, como quer a filosofia de Kant [filósofo Immanuel Kant]. Por trás de todo pensamento racional tem uma paixão que o rudimenta. Se faço um teorema “o quadrado da hipotenusa é igual à soma do quadrado dos catetos”, por trás desse pensamento puramente formal, geométrico, há uma paixão. Aí eu retorno àquela citação de Warat: “As verdades servem para ocultar os desejos”.
Qual a sua concepção de família e como você se enquadra nesse contexto?
Agostinho Marques - Vejo numa ambiência absolutamente interessante e gostosa e, ao mesmo tempo, conflituosa. É uma instituição que tem o papel social de ocultar o conflito. O ódio não pode aparecer. E o amor por isso mesmo vira opressor. Então, pra mim, a família, de um modo geral, é uma instituição super contraditória, onde você pode fazer mil amizades, cumplicidades, alianças. É onde também você pode se destruir de alguma forma, justamente porque o amor é um imperativo, e nela não cabe a contraface – o ódio. Com relação à minha família, defino mais por laços de afeto que por consanguinidade. Por exemplo, no que se refere às minhas filhas, eu amo, adoro, divirjo, convirjo. E a gente procura respeitar as diferenças e se transar dentro delas e das igualdades. Às vezes é uma relação conflituosa e noutras, extremamente gostosa. E pra mim, foi assim ótimo elas estarem aí, terem vindo de mim, mas serem elas. Eu tive três casamentos e não me arrependo de nenhum deles. Em todos vivi momentos absolutamente interessantes. Jamais teria conseguido me transformar enquanto homem se não fossem as mulheres. E sem isso, de alguma forma, eu seria muito aquilo que era há 10, 20 anos. Porque a dimensão do outro não caberia, e ela me tem vindo, na vida, principalmente através da mulher que amo. Nesses meus relacionamentos vivi céus e infernos, uns momentos absolutamente desesperadores e outros de uma plenitude. Quando me casei com a Beth [Beth Bittencourt] foi assim. Na praia da Raposa estávamos lá e tudo era uma coisa só. Lembro-me de uns pássaros, umas gaivotas passavam, voavam. Aquilo estava tudo assim... De repente a gente se olhou e... casou. Mas isso não quer dizer que nosso casamento seja um tremendo mar de rosas. Existem momentos terríveis de inimizades, opressão, repressões. Então, acho que a família é um espaço para isso tudo. Não dá pra gente chegar e dizer: “tem que ser sempre o amor”. Porque aí ele deixa de ser amor e passa a ser opressão.
E o que é reflexão?
Agostinho Marques - É você se olhar por dentro. É ter um espelho no qual se veja e ao mesmo tempo não se veja. É o mesmo que você ver e estar sendo visto. Olhar e sendo olhado, ouvindo e falando. Então, essa é a reflexão. E nessa perspectiva a reflexão é uma prática. Não faço a menor separação entre teoria e prática. A minha prática predominante, enquanto intelectual, digamos assim, é a prática teórica. Sentar e escrever um livro de filosofia, por exemplo, dar uma palestra, estar aqui conversando com vocês. Isso tudo é uma prática. A teoria, pra mim, ela mesma é uma prática. Mas é uma prática que não se esgota em si. Ela tem que se voltar para aquilo que a gente age. Ficar agindo apenas te conduz à cegueira, ao dogmatismo e ao esquecimento de você mesmo. E nós acabamos não vivendo nenhum concreto, quando ficamos simplesmente refletindo, na perspectiva de que o único concreto é a teoria. Então, a reflexão e o ativismo são movimentos de um processo só, que precisa ser vivido com uma certa plenitude nos seus dois pontos. Os meus atos concretos na vida nem sempre são coerentes. Às vezes sou profundamente incoerente com as minhas afirmações, com o que eu penso, mas isso é a marca da minha humanidade.
O que é a universidade? E o que ela poderia ser?
Agostinho Marques - Ela poderia ser uma infinidade de coisas. Quase todas mais interessantes do que aquilo que ela é efetivamente. Em primeiro lugar a universidade porta duas contradições de essência. Uma delas é que a universidade se define como uma institucionalização do saber. E isto, pra mim, representa um aprisionamento do saber. Porque, afinal de contas, o que é o saber? Sei o que vivo, o que experimento. Então enquanto institucionalização do saber, a universidade vai demarcar áreas do saber nas quais ela atue. E nisso vai excluir outras áreas. Essa exclusão pertence à essência relativamente violenta, excludente, da universidade. Por outro lado, há na universidade uma contradição de essência. E aqui não me refiro à contradição como algo ruim, para ser superado mais adiante. Pelo contrário: como algo que precisa de mais espaço ainda, para se manifestar enquanto contradição. Por que? Por um lado a universidade sempre reproduz a ideologia da classe dominante. Mas numa sociedade de classe a única ideologia é a da classe dominante. A classe dominada só tem uma contra-ideologia, que se opõe à dominante. Então, esse é um polo de contradição. O outro é que, apesar da universidade ser o foco de irradiação de ideologia dominante, ela é também o foco de crítica dessa mesma ideologia. Essa contradição me parece ser a essência da universidade. A universidade é - e precisa ser - conservadora e progressista, ao mesmo tempo. Não pode haver uma universidade homogênea. Se acharmos que tem que haver uma universidade de esquerda, isso seria um autoritarismo.
Mas você não acha que é um princípio a não exploração do homem pelo homem?
Agostinho Marques - E acho que faz parte desse princípio o pluralismo. Toda a ideologia da unidade é a exploração do homem pelo homem, que pode se apresentar de várias formas. Na sociedade burguesa é “compre o que eu produzo” e nas outras, “acredite no que eu acredito”. A exploração do homem pelo homem se dá em várias instâncias: no econômico, no ideológico etc. Há uma mais valia ideológica também, não é apenas econômica.
As pessoas estão deixando de ir à universidade por falta de prazer.
Agostinho Marques - A universidade precisa ser mais viva. Ela está muito afastada da vida. Ela tem sido, na sua prática, um lugar monótono, onde verdades já estabelecidas são passadas para terceiros. Então, numa perspectiva, a universidade tem que ser um lugar chato, mas, ao mesmo tempo, vejo espaços absolutamente interessantes dentro dela. Por exemplo, começo a ver festas na universidade. Que ótimo! Na universidade cabem o riso e o choro. Em suma, cabe emoção. O que não dá é para a universidade ser uma coisa acética, em que professores acéticos transmitem teorias acéticas, para alunos também acéticos. Falta à universidade um pouco de loucura, um pouco mais de sal.
Como é que você vê as eleições diretas para reitor da UFMA?
Agostinho Marques - Pra mim é essencial. É uma conquista que se tem de construir. O momento é de se pôr em discussão essa questão, de se mobilizar de forma mais ampla e libertadora possível. Não é descriminando quem não quer participar, mas seduzindo para que participe. Aí está a diferença da sedução para o estupro. Quem estupra mostra a sua impotência em seduzir. E aí há vários estupros. O patrulhamento ideológico é o principal deles. Diz-se muito: “aquele ali é reacionário, é de direita”. Isso é um patrulhamento ideológico, um estupro.
(Entrevista concedida a Eri Castro, José Luís Diniz, Wal Oliveira, Benedito Júnior e Félix Alberto)
Fonte: O Redemoinho
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