Confira a decisão que indeferiu o aborto por não existir prova suficiente

05/07/2016

Por André L. Nicolitt - 05/07/2016

Segue a decisão  do Juiz André L. Nicolitt, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que indeferiu pedido de aborto. A temática dos direitos fundamentais e desenvolvida. Rende um bom diálogo.

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Confira. ..


TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

COMARCA DE SÃO GONÇALO

4ª VARA CRIMINAL – TRIBUNAL DO JÚRI

  

DECISÃO

 

Processo nº....2016.8.19.0087

Trata-se de requerimento de autorização judicial (alvará) para interrupção do curso gestacional formulado por XXXXXX e YYYYYY.

Aduzem, em síntese, que o feto possui malformação incompatível com a vida pós-natal e que a gestação promove dores abdominais e sobrecarga nos rins da autora.

O pleito foi formulado perante à 3ª Vara Cível de São Gonçalo, que declinou da competência para este Tribunal do Júri.

O Ministério Público proferiu parecer favorável ao requerimento.

Considerando a urgência para decisão, este juízo formulou consulta a perito designado, conforme fls. 56.

É o relatório. Passo a decidir.

DO ENQUADRAMENTO DO TEMA

DIREITO À VIDA E AUTOMONIA SOBRE O PRÓPRIO CORPO

De início, cumpre esclarecer que o direito à vida está consagrado como direito fundamental no art. 5º, da CRF/88 e, como todo direito fundamental, não é absoluto e sim relativo.

De igual maneira, o Pacto de São José da Consta Rica, ao qual o Brasil está vinculado, impõe a proteção ao direito à vida nos seguintes termos:

Artigo 4.  Direito à vida

  1. Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida.  Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção.  Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente.

Para nós, a Convenção Americana não impõe aos Estados o dever de criminalizar o aborto e nos vinculamos aos ideais não proibicionistas, seguros de que a criminalização do aborto é um equívoco jurídico[1].

Estamos convencidos, também, de que a dignidade humana - art. 1º da CRF/88 - confere à mulher autonomia sobre o seu corpo.

Todavia, à luz da Convenção Americana, o feto possui tutela jurídica, sendo impositiva uma ponderação para se verificar, no caso concreto, se prevalece o direito à vida ou a autonomia da mulher.

Do substrato fático

A Hipótese vertente não se trata de aborto. Em termos médico-legais, o abortamento ocorre diante de fetos com até 20 semanas ou que possuam peso inferior a 500 g. No caso em análise, a ultrassonografia de fls. 25 revela que o feto possuía, na época, 24 semanas e 03 dias, pesando 639 gramas, configurando uma gravidez de aproximadamente 07 meses.

Segundo a norma técnica do Ministério da Saúde para prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes, “sob a perspectiva da saúde, abortamento é a interrupção da gravidez até a 20ª ou 22ª semana de gestação, e com produto da concepção pesando menos que 500g. Aborto é o produto da concepção eliminado pelo abortamento”.

Essa norma técnica faz distinção de três situações relativas à possibilidade e método de realização do procedimento de abortamento em face do tempo de gestação, estatuindo o seguinte:

1) “Para a interrupção da gravidez de até 12 semanas de idade gestacional, o método de escolha é a aspiração a vácuo intra-uterina, segundo a Organização Mundial de Saúde e a Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (FIGO). A aspiração a vácuo é procedimento muito seguro, rápido e eficiente. As complicações são excepcionais e, raramente, de gravidade relevante...

(...) A curetagem uterina deve ser usada apenas quando a aspiração a vácuo não estiver disponível. Recomenda-se que os gestores de saúde capacitem os(as) profissionais de saúde para substituir a curetagem uterina pela aspiração a vácuo.

A administração o misoprostol isoladamente, como método de interrupção da gravidez nas primeiras 12 semanas de idade gestacional, é opção a ser considerada em circunstâncias especiais. O procedimento é mais demorado, possivelmente mais doloroso, e com efeitos gastrointestinais mais freqüentes.”;

2) No segundo trimestre, o abortamento farmacológico constitui método de eleição. Para as gestações com mais de 12 e menos de 20 semanas de idade gestacional, recomenda-se a utilização do misoprostol para a dilatação cervical e a expulsão ovular. A mulher deve permanecer, obrigatoriamente, internada até a conclusão da interrupção, completando-se o esvaziamento uterino com curetagem nos casos de abortamento incompleto. Assim como nas gestações iniciais, as doses utilizadas de misoprostol variam em diferentes investigações. Entre os esquemas disponíveis, recomenda-se administrar 200μg via vaginal a cada 12 horas, durante 48 horas. O tratamento pode ser repetido após intervalo de três a cinco dias, em caso de insucesso. A aspiração intra-uterina e a curetagem não são recomendadas como métodos de interrupção de gestações com mais de 12 semanas. Métodos cirúrgicos maiores devem ser reservados para situações excepcionais e a histerectomia deve ser abolida como método de abortamento em qualquer hipótese;

3) Gestações com mais de 20 semanas de idade gestacional. Não se recomenda a interrupção da gravidez após 20 semanas de idade gestacional. A mulher deve ser informada da impossibilidade de atender a solicitação e aconselhada ao acompanhamento pré-natal especializado, facilitando-se o acesso aos procedimentos de adoção, se assim o desejar.

Tais parâmetros revelam a viabilidade pós-natal, que sugerem a análise não sobre o prisma do aborto, propriamente dito, mas de uma antecipação do parto. Todavia, no caso de anomalia, não se trata de mera antecipação de parto, pois tal procedimento é precedido de uma injeção no coração do feto, que promoverá a cessação dos batimentos cardíacos (fls. 32).

O requerimento esteia-se, unicamente, no exame de ultrassonografia obstétrica, que permitiu a decisão da Comissão de Ética favorável à antecipação do parto (fls. 31).

DA ADPF 54 – STF – ANENCEFALIA

O Supremo Tribunal Federal, ao julgar a ADPF 54, firmou entendimento pela inconstitucionalidade da interpretação que subsumia o aborto de feto anencéfalo aos crimes do art. 124, 126 e 128 do CP.

Ementa

ESTADO – LAICIDADE. O Brasil é uma república laica, surgindo absolutamente neutro quanto às religiões. Considerações. FETO ANENCÉFALO – INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ – MULHER – LIBERDADE SEXUAL E REPRODUTIVA – SAÚDE – DIGNIDADE – AUTODETERMINAÇÃO – DIREITOS FUNDAMENTAIS – CRIME – INEXISTÊNCIA. Mostra-se inconstitucional interpretação de a interrupção da gravidez de feto anencéfalo ser conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal.

Na indigitada ação foram ouvidos vários seguimentos e várias audiências públicas ocorreram, o que permitiu amplo debate sobre o tema.

As razões subjacentes à decisão partiam de alguns pressupostos. Por exemplo, o Dr. Talvane Marins de Moraes, médico especialista em psiquiatria forense, livre-docente e doutor em psiquiatria pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, membro das Câmaras Técnicas de Perícia Médica e Medicina Legal do Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro e representante da Associação Brasileira de Psiquiatria, foi ouvido e asseverou que:

o drama da interrupção da gestação de feto anencéfalo em um caso concreto: “a interrupção da gravidez aconteceu porque a vida do bebê não era viável e não porque a gravidez era indesejada”. (...) em nome da saúde mental da mulher, a Associação Brasileira de Psiquiatria defende a autodeterminação da gestante para decidir livremente sobre a antecipação terapêutica do parto em gravidez de feto anencéfalo e o dever do Estado em garantir-lhe assistência governamental em relação aos cuidados protetivos à respectiva saúde, em especial, à saúde mental. (ADPF 54, STF).

A ADPF fundava-se na ideia do não enquadramento da antecipação terapêutica da gravidez de anencéfalo às hipóteses previstas nos artigos 124 a 126 do Código Penal brasileiro. Segundo alega a inicial, a conduta não constitui aborto, considerada a inviabilidade do feto e a equivalência ao morto, presente a similitude com o conceito versado na Lei nº 9.434/97, relativa à remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento.

Por sua vez, a Procuradora-Geral da República em exercício, Deborah Macedo Duprat de Britto Pereira, opinou pelo acolhimento integral do pedido. Apontou a possibilidade de certeza absoluta do diagnóstico prematuro e a incompatibilidade da anomalia com a vida extrauterina, conforme assegurado pelos especialistas ouvidos na audiência pública.

As ideias centrais que possibilitaram a conclusão da ADPF relativamente ao aborto de feto anencefálico repousam na “certeza absoluta do diagnóstico prematuro” e a “incompatibilidade da anomalia coma a vida extrauterina”, ou ainda, na “inviabilidade do feto e à equivalência ao morto”, ou mesmo “porque a vida do bebê não era viável e não porque a gravidez era indesejada”.

Com efeito, há que se aferir se o caso em exame enquadra-se na hipótese definida na ADPF 54.

Síntese Analítica

Primeiramente, cumpre destacar que a hipótese não versa sobre feto anencefálico. No caso vertente há probabilidade de anomalia severa consistente em “agenesia renal bilateral”.

Também não se está diante de hipótese de risco para a vida ou saúde da mãe. Como acentua o documento médico de fls. 57-58, o risco é semelhante ao de um pré-natal de baixo risco, não havendo nenhum documento médico nos autos sugestivo de risco, o que afasta a norma do art. 128, I do CP.

Não temos dúvida, contudo, do grande comprometimento psicológico da mãe em face da anomalia do feto e da “suposta” inviabilidade pós-natal.

Da análise dos elementos contidos nos autos não é possível apurar, com segurança, a presença dos pressupostos (ideias centrais) que deram azo à decisão da ADPF 54, ou seja, certeza absoluta do diagnóstico prematuro, em outros termos, indicação profunda sobre a inviabilidade pós-natal, vejamos:

  1. O pleito não lança mão de outros exames importantes, como: cariótipo, ressonância magnética, dentre outros. Certo é que a ultrassonografia, embora de alta sensibilidade, não é conclusiva (fls. 57).
  2. A ultrassonografia de fls. 25 não conclui se tratar de “agenesia renal bilateral” ou “hipoplasia renal bilateral”, sendo certo que os prognósticos de tais anomalias são variáveis, uns mais favoráveis que outros (fls. 57).
  3. Por outro lado, além do grave reflexo psicológico para a mãe, não há qualquer outro risco para a manutenção da gravidez.

Certo é que numa decisão que pondere entre o direito à vida que assiste ao feto, nos termos da Convenção Americana e a autonomia da mãe para reger seu próprio corpo, a prevalência deste último pressupõe um substrato probatório muito seguro quanto à inviabilidade pós-natal. A decisão seria confortável se o diagnóstico fosse preciso em relação à “agenesia” e não houvesse dúvida quanto à “hipoplasia”. Ademais, poder-se-ia estar cercado de outros exames para que pudéssemos ter a supressão da vida por uma injeção letal com a tranquilidade e certeza de que todos os cuidados possíveis foram tomados para se chegar a tal decisão.

Ocorre que, no quadro probatório não vemos isso e não entendemos prudente edificar uma decisão de antecipação de parto, precedida por injeção letal, com base em um único exame que, diga-se de passagem, está sujeito a interpretações, pois medicina, tal qual direito, não é uma ciência exata.

Em que pese o exame ser categórico na assertiva de que a vida pós-natal é inviável (fls. 25), não é concludente quanto à anomalia - se agenesia ou hipoplasia - e, embora ambas sejam severas, possuem prognósticos distintos (fls. 57). Há, desta forma, certa incongruência na conclusão do exame de fls. 25. Ademais, o exame de fls. 18 traz a seguinte observação: Por tratar-se de exame complementar, este deverá ser interpretado pelo médico assistente. Os achados ultra-sonofráficos não excluem a necessidade de complementação propedêutica adequada.

Com efeito, os elementos de prova não sugerem ser razoável, neste caso concreto, o sacrifício ao direito à vida para evitar o sofrimento psicológico da mãe.  Tal conclusão, seguramente, não é a que melhor atende aos anseios de se aplacar o sofrimento da mãe, porém é, no nosso entender, a que compatibiliza o sistema de direitos fundamentais à luz da proporcionalidade.

Como o sistema de direitos fundamentais, através da presunção de inocência, nos orienta que, na dúvida, prevalece a liberdade (in dúbio pro reo), de igual maneira, cremos que neste caso concreto, diante da dúvida objetiva advinda do exame, deve prevalecer o direito à vida, que é assegurado ao feto, por força do Pacto de São José da Costa Rica.

É bem verdade que durante a tramitação do feito e tamanha a sugestão de inviabilidade apontada, a esta altura, embora não haja notícias nos autos, a própria natureza possa ter decidido a questão.

Isto posto, indefiro o requerimento de autorização para antecipação do parto.

São Gonçalo, 27 de abril de 2016.

ANDRÉ LUIZ NICOLITT

Juiz de Direito


[1] Sobre o tema: KARAM, Maria Lúcia. Proibições, Crenças e Liberdade: O Direito à Vida, a Eutanásia e o Aborto. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2009, p. 45-46,


. . André Nicolitt é Mestre, Doutor em Direito pela Universidade Católica Portuguesa, professor da Universidade Federal Fluminense e da EMERJ, Juiz de direito – TJRJ. .


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