Cinquenta tons de cinza na casa dos budas ditosos

11/03/2015

Por Andrea Ferreira Bispo - 11/03/2015

Andei dizendo a uns e outros que assistiram a Cinquenta Tons de Cinza que até tentei ler este livro, mas que achei excessivamente puritano.

Como tanto os uns quanto os outros fizeram aquela cara de Coisa 1 e Coisa 2, porque os Cinquenta Tons, se não estou confundindo com alguma Sabrina da minha adolescência, é um livro erótico água com açúcar, saquei da estante A Casa dos Budas Ditosos, do imorrível João Ubaldo Ribeiro, para indicar uma obra que realmente merece ser classificada assim.

O personagem central, uma mulher de quase 70 anos, assume a posição de narradora e passa a falar sobre a sua vida para ajudar o autor a escrever um livro sobre a Luxúria:

"É impressionante como eu fiz tudo isso logo da primeira vez, porque foi mesmo a  minha primeiríssima vez, e eu nunca tinha visto nada, nem ninguém tinha de fato me ensinado nada, a não ser em conversas doidas com as outras meninas do colégio, principalmente as internas, que sempre ficavam meio loucas, como é natural... Suponho que devo ter um certo orgulho disso, devo reconhecer sem modéstia que sou um talento nato, uma predestinada, uma escolhida dos deuses, só pode ser algo assim", concluiu ela quando relembra sua primeira experiência sexual.

E as histórias que seguem comprovam que de fato a personagem não pecou contra a luxúria, porque "quem peca é aquele que não faz o que foi criado para fazer" e ela fez o que foi criada para fazer: manteve relações sexuais com quem bem entendeu, homens ou mulheres, na hora que bem quis e com o desassombro de quem sabe que é dona do próprio corpo e é capaz de assumir seus desejos.

Porque para alcançar alguma felicidade é necessário reconhecer os próprios desejos. Reconhecendo-os, resta fazer uma pergunta ética fundamental: sei o que quero, mas sou capaz de arcar com isso?

Essa questão poderia se resolver com um não ou com um sim se a escolha não trouxesse a reboque todo o peso da condenação imposta pelos eternos defensores da normalidade sexual, seja que chatice lá for essa.

Para alguns, a melhor opção é "brincar com a hipocrisia e driblá-la criativamente". Perfeito, pois a vida sexual de qualquer pessoa importa às demais na mesma proporção que tem relevância saber se um desconhecido qualquer almoçou frango ou peixe.

Mas é necessário assegurar que quem não quer ficar numa "atitude temerosa dos censores de Joyce, de Lawrence, de Henry Miller", possa viver plenamente seu desejo, prestando contas, enquanto não violar a liberdade do outro, somente na sua esfera privada, se assim o quiser.

Porque uma coisa, só para citar um exemplo, é um casal estabelecer entre si que a fidelidade que está no Código Civil diz respeito às relações sexuais.

Outra é pretender que o judiciário dê a esse substantivo o mesmo significado e com isso passe a decidir levando em conta quem andou na cama de quem, até "porque todo mundo é corno, mesmo que não seja, por uma mera questão conjuntural técnica".

Talvez, as afirmações do autor no sentido de que "é muito difícil encontrar alguém que não tenha alguma grande obsessão sexual, ou mais comumente várias, geralmente reprimidas das formas mais inesperadas. Que mais? É muito difícil encontrar alguém que não se possa seduzir. Querendo-se pagar o preço, que pode ser até uma existência, é possível seduzir toda e qualquer pessoa. Que mais? Todo homem é veado, em maior ou menor grau, e toda mulher é lésbica, em maior ou menor grau. Ninguém é alguma coisa de forma absoluta, não há hipótese", explique algo dos motivos pelos quais seguimos buscando nos enquadrar no modelo-família-feliz-tomando-tang-de-laranja sem perceber o quanto isso nos custa em recalques e frustrações.

Reconhecer a liberdade alheia implica em promover a igualdade e sermos iguais, enquanto espécie, é algo que não nos interessa nem nunca nos interessou. Portanto, condenar ética e moralmente, ainda que sob indizíveis disfarces, quem não se padroniza é uma estratégia de sobrevivência. E das mais eficazes. E o Direito, muitas vezes, presta-se a isto.


andreia bispoAndrea Ferreira Bispo é Juíza de Direito no Pará e membro da AJD.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                        


Imagem ilustrativa do post: Capa do filme "50 Tons de Cinza"

                                                                                                                                             

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