Caso Bocelli. Não houve comprovação dos crimes licitatórios e de prevaricação, decide TJSC.

24/03/2015

O Tribunal de Justiça de Santa Catarina, julgando a Apelação Criminal n. 2014.017727-0, da Capital, sob a relatoria do Des. Leopoldo Augusto Brüggemann, manteve a sentença absolutória dos agentes públicos que autorizaram a realização do contrato para promoção do show do músico Andrea Bocelli, afastando as acusações de crime licitatório e de prevaricação. Segue abaixo na íntegra.


  Tribunal de Justiça de Santa Catarina Apelação Criminal n. 2014.017727-0, da Capital

Relator: Des. Leopoldo Augusto Brüggemann

APELAÇÃO CRIMINAL. CRIMES CONTRA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. INEXEGIBILIDADE ILEGAL DE LICITAÇÃO E PREVARICAÇÃO (ART. 89, CAPUT, DA LEI N. 8.666/1993 E ART. 319 DO CÓDIGO PENAL). SENTENÇA ABSOLUTÓRIA. IRRESIGNAÇÃO MINISTERIAL.  PLEITO DE CONDENAÇÃO.

INEXIGIBILIDADE ILEGAL DE LICITAÇÃO. SECRETÁRIO DE TURISMO E SECRETÁRIO ADJUNTO DE TURISMO QUE, AMPARADOS EM PARECER DE ASSESSORA JURÍDICA, FIRMAM CONTRATO DIRETO COM EMPRESA, PARA REALIZAÇÃO DE SHOW, EM VIOLAÇÃO À LEI DE LICITAÇÃO. FATOS NÃO COMPROVADOS. VERIFICADA HIPÓTESE DE INEXIGIBILIDADE DE LICITAÇÃO. ARTISTA DE RENOME INTERNACIONAL QUE, POR INTERMÉDIO DE SEU EMPRESÁRIO, CONCEDE CARTA DE EXCLUSIVIDADE À EMPRESA LOCAL PARA A EXECUÇÃO DO EVENTO. SITUAÇÃO QUE SE AMOLDA ÀQUELA PREVISTA NO ART. 25, III, DA LEI N. 8.666/1993. AUSÊNCIA DE PROVAS ACERCA DO SUPOSTO ENGODO  REALIZADO PARA A CONTRATAÇÃO DIRETA, EM FRAUDE À LEI DE LICITAÇÃO. ALIÁS, FATOS QUE, COMPROVADOS, CARACTERIZARIAM CRIME DIVERSO DO DESCRITO NA VESTIBULAR.  PRINCÍPIO DA CORRELAÇÃO QUE DEVE SER MANTIDO. MÉRITO ADMINISTRATIVO NA ESCOLHA DO ARTISTA, MÁ ADMINISTRAÇÃO DO DINHEIRO PÚBLICO E ILÍCITOS CONTRATUAIS QUE NÃO SÃO OBJETO DE DELIBERAÇÃO NESTES AUTOS QUE VISAM APURAR ILÍCITOS PENAIS. MANUTENÇÃO DA ABSOLVIÇÃO QUE SE IMPÕE.

PREVARICAÇÃO. LIBERAÇÃO ANTECIPADA DE VALORES EM DISCORDÂNCIA COM AS CONDIÇÕES CONTRATADAS.  VIOLAÇÃO AO ART. 65, II, C, DA LEI DE LICITAÇÕES. MATERIALIDADE COMPROVADA. AUTORIA, NO ENTANTO, EVIDENCIADA APENAS COM RELAÇÃO A UM DOS ACUSADOS. ADEMAIS, ELEMENTO SUBJETIVO DO TIPO NÃO DEMONSTRADO. CRIME QUE EXIGE ESPECIAL FIM DE AGIR. ATUAÇÃO COM O OBJETIVO DE SATISFAZER SENTIMENTO PESSOAL. AUSÊNCIA DE PROVAS NESTE SENTIDO. DENÚNCIA QUE SEQUER ESPECIFICA O REFERIDO SENTIMENTO. CRIME NÃO PUNIDO A TÍTULO CULPOSO. INTELIGÊNCIA DO PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO. SENTENÇA DE ABSOLVIÇÃO PRESERVADA.

PREQUESTIONAMENTO. DEVIDA APRECIAÇÃO DA MATÉRIA. REJEIÇÃO DO PEDIDO.

RECURSO CONHECIDO E NÃO PROVIDO.

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Criminal n. 2014.017727-0, da comarca da Capital (1ª Vara Criminal), em que é apelante Ministério Público do Estado de Santa Catarina, e são apelados Mário Roberto Cavallazzi, Aloysio Machado Filho e Daniela Gomes Silva Santos Secco:

A Terceira Câmara Criminal decidiu, por votação unânime, conhecer e negar provimento ao recurso. Custas legais.

O julgamento, realizado no dia 17 de março de 2015, foi presidido pelo Exmo. Sr. Des. Rui Fortes, com voto, e dele participou o Exmo. Sr. Des. Moacyr de Moraes Lima Filho. Funcionou pela douta Procuradoria Geral de Justiça o Exmo. Sr. Dr. Gercino Gerson Gomes Neto.

                        Florianópolis, 18 de março de 2015.

 Leopoldo Augusto Brüggemann

Relator

 RELATÓRIO

Na comarca da Capital, o Ministério Público do Estado de Santa Catarina ofereceu denúncia contra Mário Roberto Cavallazzi, Aloysio Machado Filho e Daniela Gomes Silva Santos Secco, dando os primeiros como incursos nas sanções do art. 89 da Lei n. 8.666/1993 e art. 319 c/c o art. 29, ambos do Código Penal, e a última nas sanções do art. 89 da Lei n. 8.666/1993 c/c o art. 29 do Código Penal, pela prática das condutas assim descritas na inicial acusatória:

"No mês de agosto de 2009, os denunciados em comunhão de desígnios inexigiram licitação fora das hipóteses previstas em lei, porquanto contrataram diretamente, por meio do processo administrativo n. 385/2009, a empresa Beyondpar Assessoria e Marketing Ltda, em virtude da alegada exclusividade que a referida empresa teria para promover o show do músico Andrea Bocelli em Florianópolis no mês de dezembro de 2009, o que encontraria respaldo no art. 25, III, da Lei n. 8.666/93.

Ocorre que, de acordo com o contrato celebrado entre Beyondar e a Pentagon Music Management (fls. 380-419), a empresa Beyondpar não é empresária exclusiva do músico Andrea Bocelli, porquanto contratou os agentes e empresário do artista (Pentagon) para agir exclusivamente em nome da mesma.

Infere-se, ainda, que a referida inexigibilidade de licitação foi baseada no parecer jurídico elaborado, em agosto de 2009, por Daniela Gomes Silva Santos Secco, na época assessora jurídica da Secretaria de Turismo, Cultura e Esporte do Município de Florianópolis, uma vez que esta asseverou no aludido parecer que a empresa proponente detém exclusividade para a realização do espetáculo, razão por si só que inviabiliza a concorrência (fls. 170-171).

Dando sequência ao firme propósito de formalizar a contratação com a empresa Beyondpar, no dia 24 de agosto de 2009, Mário Roberto Cavalazzi, então Secretário de Turismo, Cultura e Esporte do Município de Florianópolis, encaminhou o ofício n. 489/2009 acompanhado do parecer jurídico subscrito por Daniela Gomes Silva Santos Secco ao Diretor de Licitações, Contratos e Convênios da Secretaria Municipal de Administração no qual expressava que a referida contratação era respaldada pela inexigibilidade de licitação (fl. 169)."

Há que se ressaltar que Mário Roberto Cavalazzi assinou conjuntamente com Aloysio Machado Filho, na época Secretário Adjunto de Turismo, Cultura e Esporte, no dia 27 de agosto de 2009, termo de inexigibilidade de licitação n. 385/SMAP/DLC/2009 (fls. 244-251), que restou publicado em 28 de agosto de 2009.

Ato contínuo, em 28 de agosto de 2009, toda a conduta levada a efeito pelos denunciados restou concretizada com a assinatura do contrato n. 942/SETUR/2009 pelo valor de R$3.000.000,00 (três milhões de reais) (fls. 182-187).

Além disso, em 17 de setembro de 2009, os denunciados Mário Roberto Cavalazzi e Aloysio Machado Filho, em acordo de vontades, anteciparam o pagamento de R$200.000,00 (duzentos mil reais), por meio da emissão da nota de empenho n. 9773/2009 (fl. 273) à empresa Beyondpar Assessoria e Marketing Ltda, em desacordo com o cronograma financeiro fixado na cláusula 4.1 do contrato (fl. 183), contrariando, assim, o artigo 65, II, alínea "c" da Lei n. 8.666/93, para satisfazerem interesse ou sentimento pessoal.

Anota-se que a supramencionada antecipação foi contrária à disposição expressa no parágrafo único da cláusula 4.1 do contrato, a qual condicionava o desembolso da primeira parcela à apresentação do contrato formalizado entre a contratada e o maestro Andrea Bocelli (fl. 183) [sic](fls. II-V).

Concluída a instrução do feito, a denúncia foi julgada improcedente para absolver os acusados de todos os delitos, com fulcro no art. 386, inciso VII, do Código de Processo Penal, ante a insuficiência de provas à condenação (fls. 2110-2123).

Irresignado, o Ministério Público interpôs recurso de apelação, pugnando pela condenação dos acusados nos termos da denúncia, ao argumento de que as provas coligidas em juízo são suficientes a erigir decreto condenatório. Outrossim, requereu o prequestionamento da matéria, quanto a necessidade de comprovação do dolo específico ou genérico para caracterizar a conduta prevista no art. 89 da Lei n. 8.666/1993 (fls. 2125  -2166).

A defesa de Mário Roberto Cavallazzi e Daniela Secco opôs embargos de declaração, visando o aclaramento da sentença no tocante à fundamentação utilizada para absolvição (ausência de provas e/ou atipicidade da conduta) (fls. 2185-2190). Os aclaratórios foram rejeitados ao argumento de que inexistiu contradição, pois a sentença foi clara ao absolver os acusados com fundamento na insuficiência de provas, art. 386, inciso VII, do Código de Processo Penal (fls. 2191-2192)

Juntadas as contrarrazões (fls. 2172-2184 e 2201-2215), ascenderam os autos a esta instância, e a douta Procuradoria-Geral de Justiça, em parecer da lavra da Exma. Sra. Dra. Heloísa Crescenti Abdalla Freire, opinou pelo conhecimento e provimento do recurso, para condenar os acusados nos termos da denúncia (fls. 2227-2239).

Às fls. 2265, foi autorizado o ingresso da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Santa Catarina, como assistente da apelada Daniela Gomes Silva Santos Secco.

É o relatório.

VOTO

Trata-se de recurso de apelação contra decisão que julgou improcedente a denúncia e absolveu os acusados das sanções previstas no art. 89, caput, da Lei n. 8.666/1993 e no art. 319 do Código Penal, com fundamento na insuficiência de provas à condenação.

O apelo é de ser conhecido, porquanto presentes os requisitos objetivos e subjetivos de admissibilidade.

Cumpre observar, de forma a afastar a preliminar arguida pela defesa de Mário e Daniela em sede de contrarrazões (fls. 2172-2184), que o recurso foi tempestivamente interposto, uma vez que a sentença de absolvição foi publicada na data de 31/10/2013 (fl. 2.124) e a apelação protocolizada no dia 05/11/2013 (fl. 2.125), ou seja, dentro do quinquídio legal.

Desta forma, sem maiores digressões supérfluas, o recurso merece ser conhecido, pois tempestivo.

Persegue o Ministério Público a condenação dos recorridos ao argumento da existência de provas suficientes à condenação pelos crimes descritos na vestibular acusatória, mormente por defender a desnecessidade de comprovação do dolo específico para caracterização dos injustos penais.

Não desmerecendo os fortes argumentos lançados pelo Parquet, que, após esmiuçar as provas constantes nos autos, defende, incansavelmente, a condenação dos acusados, o recurso não merece acolhida.

Ab initio cumpre ressaltar que, como é cediço, por força do princípio da correlação, ao proferir a sentença o magistrado deve-se ater aos fatos narrados na vestibular acusatória, caracterizadores de ilícitos penais.

Acaso ocorra julgamento citra petita, ultra petita ou extra petita, haverá nulidade absoluta, por afronta aos princípios do contraditório e da ampla defesa.

Sobre isso, preleciona Júlio Fabbrini Mirabete:

Deve haver uma correlação entre a sentença e o fato descrito na denúncia ou na queixa, ou seja, entre o fato imputado ao réu e o fato pelo qual é ele condenado. Esse princípio da correlação entre a imputação e a sentença representa uma das mais relevantes garantias do direito de defesa e qualquer distorção, sem observância dos dispositivos legais cabíveis, acarreta a nulidade da decisão. Não pode o juiz, assim, julgar o réu por fato de que não foi acusado (extra petita ou ultra petita) ou por fato mais grave (in pejus), proferindo sentença que se afaste do requisitório da acusação (Código de processo penal interpretado. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 979) (grifou-se).

Por sua vez, ensinam Ada Pellegrini Grinover, Antonio Scarance Fernandes e Antonio Magalhães Gomes Filho:

O princípio da correlação entre acusação e sentença, também chamado da congruência da condenação com a imputação, ou, ainda, da correspondência entre o objeto da ação e o objeto da sentença, liga-se ao princípio da inércia da jurisdição e, no processo penal, constitui efetiva garantia do réu, dando-lhe certeza de que não poderá ser condenado sem que tenha tido oportunidade de se defender da acusação (As Nulidades no Processo Penal. 6. ed. São Paulo: RT, 1998. p. 219) (grifou-se).

Sobre o tema, já se manifestou o Superior Tribunal de Justiça:

O princípio da correlação entre a denúncia e a sentença condenatória representa no sistema processual penal uma das mais importantes garantias ao acusado, porquanto descreve balizas para a prolação do édito repressivo ao dispor que deve haver precisa correlação entre o fato imputado ao réu e a sua responsabilidade penal reconhecida na sentença (HC 151568/DF, rel. Min. Jorge Mussi, j. 26/09/2010) (grifou-se).

In casu, narra a denúncia que, no mês de agosto de 2009, os acusados, em união de desígnios, inexigiram licitação fora das hipóteses previstas em lei, uma vez que contrataram diretamente a empresa Beyondpar Assessoria e Marketing Ltda. para a realização do show do cantor Andrea Bocelli nesta Cidade de Florianópolis (processo administrativo n. 385/2009), com fundamento no art. 25, III, da Lei n. 8.666/1993, ao argumento de que referida empresa detinha exclusividade para tanto.

Contudo, consta que a empresa Beyondpar não era empresária exclusiva do artista. Situação que se verificou pelo contrato por ela firmado com a empresa Pentagon, esta, sim, agente e empresária exclusiva de Andrea Bocelli.

Colhe-se que a contratação direta foi amparada no parecer firmado pela Assessora Jurídica da Secretaria de Turismo Cultura e Esporte do Município à época, também denunciada, Daniela Gomes Silva Santos Secco, esta que consignou que "a empresa proponente detém exclusividade para a realização do espetáculo, razão por si só que inviabiliza a concorrência".

Outrossim, consta que Mário Roberto Cavalazzi, Secretário de Turismo, Cultura e Esporte à época dos fatos, encaminhou o ofício, que assinou em conjunto com Aloysio Machado Filho (Secretário Adjunto de Turismo), acompanhado do parecer jurídico firmado por Daniela, ao Diretor de Licitações, justificando a inexigibilidade de licitação, cujo termo restou publicado em 28 de agosto de 2009, data em que o contrato com o citado artista foi firmado pelo valor R$ 3.000.000,00 (três milhões de reais).

Por fim, recolhe-se que, na data de 17 de setembro de 2009, os denunciados Mário e Aloysio anteciparam o pagamento da quantia de R$ 200.000,00 (duzentos mil reais) à empresa contratada (Beyondpar), em violação ao artigo 65, II, c, da Lei n. 8.666/1993, tal como a cláusula "4.1" do contrato, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal.

Narradas as condutas, o Ministério Público tipificou àquelas praticadas por Mário e Aloysio nos arts. 89, caput, da Lei 8.666/93 e 319 do Código Penal e àquela praticada por Daniela apenas no art. 89, caput, da citada Lei de Licitações.

Pois bem.

Como se vê, a presente demanda limita-se a apurar a prática dos crimes descritos no art. 89, caput, da Lei de Licitações (inexigibilidade ilegal de licitação), e art. 319 do Código Penal (Prevaricação), pois a proemial apenas narrou estas condutas.

A par de tais considerações, ainda que se verifiquem outras ilegalidades atentando contra a Lei de Licitações, tal como se vislumbre irregularidades na execução de contratos administrativos, referidos atos [lesão ao erário público], por não integrarem o objeto do presente processo criminal, não merecem maiores considerações a respeito.

Aliás, nesse sentido o magistrado a quo bem havia pontuado no corpo da sentença absolutória (fl. 2114):

Antes de tudo, cabe ressaltar que não se descarta a ocorrência, na espécie, de atos de improbidade administrativa, os quais inclusive já se estão sendo apurados por meio de Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público de Santa Catarina. Descabe, ainda, perquirir acerca da conveniência da decisão administrativa que optou pelo desembolso de R$ 3.000.000,00 (três milhões de reais) para a realização do evento, uma vez que aqui apura-se exclusivamente a responsabilidade penal. Há autonomia das esferas e os requisitos para responsabilização penal são diversos da administrativa.

Tecidas estas ponderações iniciais, passa-se à análise dos crimes imputados.

Da inexigibilidade ilegal de licitação

No caso presente, como já mencionado, os acusados foram denunciados, pois, na condição de Secretário, Secretário Adjunto e Assessora Jurídica da Secretaria de Turismo, Cultura e Esporte desta Cidade de Florianópolis, uniram-se para firmar contrato direto com a empresa Beyondpar para realização do show do artista Andrea Bocelli, sob o argumento de que a referida empresa detinha exclusividade com o artista, conquanto tal assertiva não era verossímil, uma vez que o empresário exclusivo era a empresa Pentagon.

Com efeito, independente do dolo específico dos acusados em lesar o erário – tese articulada pela acusação no apelo –, os fatos narrados na denúncia não restaram suficientemente comprovados nos autos.

Textua o art. 89, caput, da Lei n. 8.666/1993:

Art. 89. Dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade:

Pena - detenção, de 3 (três) a 5 (cinco) anos, e multa.

Sobre o injusto em questão, leciona Marçal Justen Filho:

O tipo exige a atuação do servidor público (na acepção ampla do art. 84), pois a decisão de efetivar contratação direta incumbe ao agente da Administração Pública. Estarão sujeitos à sanção penal todos os servidores a quem incumbir o exame do cumprimento das formalidades necessárias à contratação direta (Comentários à lei de licitações e contratos administrativos, 15. ed. São Paulo: Dialética, 2012, p. 1033, grifou-se).

Por sua vez, o artigo 25 da citada Lei de Licitações prevê expressamente as hipóteses de inexigibilidade de certame referidas no tipo penal ora analisado. Confira-se:

Art. 25. É inexigível a licitação quando houver inviabilidade de competição, em especial:

[...]

III - para contratação de profissional de qualquer setor artístico, diretamente ou através de empresário exclusivo, desde que consagrado pela crítica especializada ou pela opinião pública (grifou-se).

Sobre a contratação de artistas, elucida Hely Lopes Meireles:

[...] a lei, endossando a doutrina, que equipara os trabalhadores artísticos aos serviços técnicos profissionais especializados, prescreve a inexigibilidade de licitação para a contratação de profissional de qualquer setor artístico, diretamente ou através de seu empresário. O essencial para legitimar a dispensa do procedimento licitatório é que o artista seja consagrado pela crítica especializada ou pela opinião pública (Direito administrativo brasileiro. 37. ed. São Paulo:Malheiros, 2011, p. 304).

Não há discussão quanto a inexigibilidade de licitação para a contratação do renomado cantor lírico Andrea Bocelli, pessoa já consagrada pela crítica especializada e pela opinião pública – conforme exigência do dispositivo legal retrotranscrito.

A vexata quaestio encontra-se, assim, na contratação direta da empresa Beyondpar – pessoa jurídica detentora de contrato de exclusividade com Andrea Bocelli – para execução do show do cantor.

In casu, contudo, a acusação não logrou comprovar que a contratação da citada empresa pelo Município de Florianópolis, por intermédio de termo assinado pelo Secretário do Turismo e de seu Secretário Adjunto, com amparo em parecer da Assessora Jurídica Daniela, estava fora das hipóteses de inexigibilidade de licitação.

A demonstrar o exposto, cumpre percorrer as provas carreadas aos autos.

Às fls. 909-925 consta o vernáculo do contrato de fls. 926-937, firmado, na data de 01 de julho de 2009, entre a empresa Pentagon (denominada no contrato como "os empresários e agentes do artista") e a empresa Beyondpar (lá especificada como "a Sociedade"), no qual constam, dentre outras determinações, as seguintes:

  1. A Sociedade contratou os serviços dos Empresários e Agentes do Artista para atuar de forma exclusiva em nome da Sociedade com finalidade de providenciar e negociar um contrato em nome da Sociedade para que Andrea Bocelli faça uma apresentação pública no Brasil em dezembro de 2009 ("o Projeto Bocelli").
  2. Este contrato registra o acordo entre a Sociedade e o Empresários e Agentes do Artista para atuarem como Empresários e Agentes do Artista para a Sociedade caso o Projeto Bocelli siga adiante.

[...]

4.1 A Partir da Data de Início estabelecida no Item 2 do Apêndice, a Sociedade contratou os serviços dos Empresários e Agentes do Artista para atuar de forma exclusiva em nome da Sociedade com a finalidade de providenciar e negociar um contrato em nome da Sociedade para Andrea Bocelli fazer uma apresentação pública no Brasil em dezembro de 2009 e sujeito aos termos e condições estabelecidos neste Contrato.

4.2. Caso os Empresários e Agentes do Artista seja bem-sucedidos em negociar um contrato em nome da sociedade para que Andrea Bocelli faça uma apresentação pública no Brasil em dezembro de 2009, a sociedade contrata os serviços dos Empresários e Agentes do Artista para o Projeto Bocelli, conforme especificado no Anexo A.

4.3. Exceto conforme estabelecido para cláusula 4.1, ao longo da Duração deste Contrato, os Empresários do Artista concordam em não celebrar qualquer contrato direta ou indiretamente para que Andrea Bocelli se apresente no Brasil no período definido no Item 3 do Apêndice.

[...]

APêndice

Item 1: Data do contrato: 01 de julho de 2009

Item 2: Data de Início: 01 de julho de 2009

Duração: até 31 de dezembro de 2009

Item 3: Período pelo qual os empresários e Agentes do Artista não irão celebrar nenhum Contrato para que Andrea Bocelli se apresente no Brasil ou serão contratados por ou representarão outros produtores ou quaisquer terceiros para conseguir, negociar ou contratar Andrea Bocelli para se apresentar no Brasil: 01 de julho a 31 de dezembro de 2009 [...] (grifou-se).

Com efeito, verifica-se do aludido contrato firmado entre a empresa Pentagon e a empresa Beyondpar, que a primeira (empresária agenciadora do artista) efetivamente concedeu à segunda (sociedade local responsável pela execução do evento) contrato de exclusividade para a realização do show de Andrea Bocelli no Brasil no período de julho a dezembro de 2009.

Por sua vez, às fls. 943-969, encontra-se o vernáculo do contrato de fls. 970-983, firmado, em 1º de outubro de 2009, entre o artista Andrea Bocelli e a empresa Beyondpar, especificando que a referida empresa contratou os serviços do cantor, assumindo ela a responsabilidade de organizar e promover a apresentação do artista na cidade de Florianópolis.

Ora, dos referidos contratos firmados pela empresa exclusiva do artista e por ele próprio com a empresa Beyondpar, concedendo a esta última a exclusividade para promover a realização de sua apresentação no Brasil, não se vislumbra qualquer tipo de ilegalidade, tampouco de interferência ou direcionamento dos acusados.

É sabido que o artista tem o livre arbítrio para contratar os profissionais que consigo irão trabalhar, desde o seu empresário particular até a empresa, de sua confiança, executora do evento. Referida prerrogativa, se comprovada, inviabiliza que a administração realize certame para escolha de outros profissionais.

Portanto, firmada a exclusividade entre a empresa Pentagon (empresária exclusiva do artista) e a empresa Beyondpar (executora local do evento) para a realização do show do músico no Brasil, alternativa não havia se não a contratação direta da empresa.

Neste viés, o contrato com a empresa Beyondpar, com inexigibilidade de licitação, foi firmado pelo Município, na data de 31 de agosto de 2009 (fls. 580-589).

É bem verdade que estranhas coincidências circundam as tratativas realizadas entre as citadas empresas e a municipalidade, representada pelos acusados, mormente em razão da suspeita viagem realizada por Mário na companhia de Daniela para Londres, conquanto a acusação não logrou comprovar o engodo por trás do contrato de agenciamento.

A prova oral pouco auxiliou nesta descoberta, muito pelo contrário.

Colhidas as declarações do artista Andrea Bocelli, assim explicou ele:

Sobre a suspensão do show.

Por que o show de Florianópolis em 2009 não foi realizado?/

R: Não sei porque não sou eu que organizo a parte burocrática das minhas apresentações, mas o meu agente me informou que o promoter local não estava em condições de manter os compromissos assumidos.

DIREITOS DE REPRESENTAÇÃO DO ARTISTA./

O SENHOR RECONHECE A PENTAGON MUSIC MANAGEMENT COMO SUA AGÊNCIA EXCLUSIVA?/

R: Sim./

  1. SERIA POSSÍVEL QUE O MUNICÍPIO DE FLORIANÓPOLIS CONTRATASSE UM SHOW SEU SEM A INTERMEDIAÇÃO DA PENTAGON MUSIC MANAGEMENT?/

R: Não, porque todos os shows internacionais, conforme normas, passam pela Pentagon Music Management./

  1. AO CONTRATAR A PENTAGON MUSIC MANAGEMENT CONCEDE DIREITOS DE EXCLUSIVIDADE DO SHOW A UMA EMPRESA LOCAL?/

R: Sim, na qualidade de minha booking agent internacional./

  1. A PENTAGON RESPONSABILIZA-SE PELA INFRAESTRUTURA E ADMINISTRA TODO O PESSOAL DE APOIO, PRODUZINDO DIRETAMENTE OS SEUS EVENTOS?/

R: A Pentagon nunca é responsável pela infraestrutura necessária para os concertos porque isto cabe aos promoters locais que adquirem os meus serviços./ [...] (grifou-se, fls. 1909-1910).

Como se vê, o cantor, após reconhecer a exclusividade da empresa Pentagon para agenciar as suas apresentações, confirmou que a referida empresa nunca se responsabiliza pela execução do evento. Explicou ele que, para tanto, a Pentagon concede direitos de exclusividade a uma empresa local (no caso a Byondpar), esta que, por sua vez, fica responsável por toda a infraestrutura necessária para o concerto.

Neste cenário, não se vislumbra a possibilidade de realizar licitação para a contratação do artista, ainda que seja apenas para a execução de seu show.

E neste sentido, foi o parecer elaborado pela Assessora Jurídica Daniela Gomes:

RELATÓRIO

Florianópolis destaca-se no cenário nacional quando se transforma para comemorar mais um natal.

A cidade se adorna de luzes e das diferenciadas decorações próprias para a importante data, contribuindo, através da "magia", do brilho e das belezas naturais, para que cada cidadão se sinta participativo e emanado para comemorar junto aos seus familiares esta festa de encantamento e tradição.

É necessário que a municipalidade participe ativamente destes momentos, contribuindo substancialmente, com os preparativos e eventos programados para oferecer à população local e aos inúmeros turistas que visitam a cidade momentos de grande alegria, encantamento e confraternização.

Desta forma, a Prefeitura Municipal de Florianópolis promoverá o show internacional do Maestro Andrea Bocelli e Orquestra.

O evento ocorrerá na Avenida Beira-Mar Norte, em única apresentação no dia 28 de dezembro de 2009.

FUNDAMENTAÇÃO LEGAL

Na Lei 8.666/93, art. 25, III excepciona a necessidade de licitação para a contratação de artista de notório e consagrado reconhecimento pela opinião pública:

[...]

A proponente apresenta experiência de mais de 20 anos e na produção de eventos corporativos e artísticos.

Ademais, a empresa proponente detém exclusividade para a realização do espetáculo, razão que por si só inviabiliza a concorrência.

Assim é que o instituto da inexigibilidade de licitação encontra amparo no art. 25, da Lei 8.666/93 e foi criado para excepcionar a contratação em situações singulares e especiais como o presente projeto.

CONCLUSÃO

Face à proposta apresentada pela proponente e justificativas técnicas relatadas neste parecer, a Secretaria de Turismo, Cultura e Esporte, considera adequada a situação ao caso de inexigibilidade de licitação para a contratação em epigrafe, submetendo à apreciação e manifestação de vossas senhorias.

Por fim, as declarações dos acusados (outras testemunhas não foram arroladas) não se revelaram suficientes a modificar este cenário, ainda que, conforme já se disse, estranhas coincidências pairem sobre a sucessão de fatos ocorridos. Confira-se:

Aloysio Machado Filho (Secretário Adjunto de Turismo à época), questionado em juízo (CD de fl. 1941), negou a veracidade dos fatos e explicou, em suma, que assinou o contrato do show, com dispensa de licitação, por existir parecer jurídico firmado pela Dra. Daniela neste sentido, tal como por haver a concordância da Secretaria de Turismo. Mencionou que não duvidou do parecer firmado pela jurista, mormente por possuir ele formação superior em Educação Física. Afirmou que não participou dos contratos firmados com a empresa Pentagon e mencionou que a responsável pela promoção do evento foi a Diretoria de Eventos, ficando a negociação a cargo do Secretário Cavalazzi.

Daniela Gomes Silva Santos Secco (Assessora Jurídica da Secretaria de Turismo à época), ouvida em juízo (CD de fl.1941), negou as imputações a ela direcionadas. Explicou que a Beyondpar era a única empresa que se apresentou com capacidade para fazer o show. Mencionou que o artista Andre Bocelli havia afirmado que naquele período a única responsável por contratar os seus serviços no Brasil era a empresa Beyondpar. No mais, declarou que o seu parecer era apenas encaminhado à Diretoria de Licitação, ou seja, não possuía efeito vinculativo. Mencionou, ao final, que o processo de inexigibilidade de licitação tramitava na Secretaria de Administração e não na Secretaria de Turismo.

Mário Roberto Cavalazzi (Secretário de Turismo à época dos fatos), também ouvido em juízo (CD de fl.1941), no mesmo caminho dos demais, negou as acusações que contra ele pesam. Explicou que foi incumbido de realizar os eventos de final de ano e, dentre eles, estava a vinda de Andrea Bocelli para cantar "ao pé" da árvore de Natal, razão pela qual começou a "fazer os movimentos" para que isso acontecesse. Afirmou que entrou no site do músico e lá constava que a empresa Pentagon defendia (administrava) os interesses do artista e concedia a exclusividade a empresas locais, contudo, até aquele momento, não havia empresas locais contratadas. Declarou, no entanto, que no dia 6 de agosto a empresa Beyondpar apresentou-se na Prefeitura com o contrato de exclusividade firmado com o artista, com validade até o final do ano de 2009. Ponderou não saber quem orientou a aludida empresa a comparecer à Prefeitura. Afirmou que ao contactar com a empresa Pentagon esta confirmou o contrato de exclusividade firmado com a empresa Beyondpar. Esclareceu que sempre que havia shows a licitação era inexigível. Mencionou que a Assessoria Jurídica apenas fazia uma análise preliminar e encaminhava o processo para o departamento de licitação, sendo que o referido processo também passava pelo Conselho Gestor, em que participava o Procurador do Município, este que, no caso, também havia aprovado a inexigibilidade. No mais confirmou a viagem a Londres realizada na companhia da Assessora Daniela, justificando que lá apenas discutiram a programação que iria ocorrer no dia do evento.

E a prova oral encerra-se assim.

Pois bem. Da situação em análise verifica-se que o show do renomado artista Andrea Bocelli, por intermédio, necessariamente, de sua empresária exclusiva (Pentagon), tal como da promoter local (Beyondpar), esta contratada pela Pentagon com cláusula de exclusividade para realização do evento, enquadrava-se à hipótese de inexigibilidade de licitação, tal com definido pelo art. 25, III, da Lei de Licitação. Não há, portanto, ilegalidade comprovada.

Por outro vértice, não se descarta a possível existência de interferência dos gestores públicos para que a empresária do artista (Pentagon) firmasse contrato de exclusividade com a empresa local Beyondpar, de modo a frustar o caráter competitivo da licitação (crime previsto no art. 90 da Lei 8.666/90). Conquanto, a denúncia não narrou tal fato, o processo não foi instruído para apurar referido ilícito e, por fim, o Órgão Acusatório, que sequer se desincumbiu do ônus de comprovar o delito narrado na exordial, não postulou por provas que trouxessem a lume os fatos como realmente ocorreram.

No mais, como bem pontuou o togado a quo, não se está aqui a tratar do mérito administrativo na escolha do artista, da má gestão do dinheiro público, muito menos de ilícitos administrativos decorrentes da inexecução de contratos firmados pela administração.

O processo limita-se a apurar o ilícito penal de inexigibilidade de licitação fora das hipóteses previstas em Lei. Crime este que, como já mencionado, o Parquet não logrou comprovar a sua ocorrência.

Portanto, independentemente do dolo específico de lesar o erário, tal como da efetiva comprovação de dano à máquina pública – requisitos estes que este relator entende dispensável para configuração do crime em estudo, conforme já manifestado em outros precedentes –, o caso é que, na situação analisada, a acusação falhou em sua missão de comprovar que a contratação direta da empresa Byondpar pelo Município ocorreu fora das hipóteses permitidas pela Lei de Licitação.

Logo, de condenação não há falar.

Mutatis mutandis, assim já decidiu esta Corte:

ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. ATO DE IMPROBIDADE NÃO CARACTERIZADO. INEXIGIBILIDADE DE LICITAÇÃO. HIPÓTESE CONFIGURADA. ARTISTA RENOMADO. PRINCÍPIO DA IMPESSOALIDADE NÃO VULNERADO. AUSÊNCIA DE JUSTIFICATIVA DE PREÇO. IRREGULARIDADE QUE NÃO CONTAMINA O CERTAME. ATIPICIDADE DA CONDUTA. RECURSO IMPROVIDO (Apelação Cível n. 2009.025978-9, de Joinville, rel. Des. Cesar Abreu, j. 22/09/2009 – grifou-se).

AÇÃO CIVIL PÚBLICA POR ATO DE IMPROBIDADE. CONTRATAÇÃO DA BANDA "CHARLIE BROWN JUNIOR". INEXIGIBILIDADE DE LICITAÇÃO (LEI N. 8.666/1993, ART. 25, III). EMPRESA CONTRATADA DETENTORA DE CARTA DE EXCLUSIVIDADE. LESÃO AO ERÁRIO. INOCORRÊNCIA. AUSÊNCIA, ADEMAIS, DE DOLO OU DE MÁ-FE. MANUTENÇÃO DA SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA. RECURSO DESPROVIDO (Apelação Cível n. 2010.058837-8, de Chapecó, rel. Des. Paulo Henrique Moritz Martins da Silva, j. 12/03/2013 – grifou-se).

REEXAME NECESSÁRIO - AÇÃO CIVIL PÚBLICA POR ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA - INEXIGIBILIDADE DE LICITAÇÃO - POSSIBILIDADE - ARTISTAS DE RENOME NACIONAL - OUTORGA DE CARTA DE EXCLUSIVIDADE - CONJUNTO PROBATÓRIO INAPTO A COMPROVAR O ENRIQUECIMENTO ILÍCITO DOS RÉUS NEM TAMPOUCO O PREJUÍZO AO ERÁRIO (ARTS. 9º E 10 DA LIA) - VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA (ART. 11 DA LIA) - NECESSIDADE DE COMPROVAÇÃO DO ELEMENTO VOLITIVO - PRECEDENTES DO STJ - SENTENÇA MANTIDA - REMESSA IMPROVIDA.   - "1. O comando normativo do art. 2, III, da Lei 8.666/93, cuja inviabilidade de competição não se esgota nas hipóteses dos incisos elencados, impõe contratação de artista por meio de empresário exclusivo. Contudo, conforme bem assinalou o aresto impugnado, essa inviabilidade não depende necessariamente da pré-existência de um contrato de exclusividade, podendo ocorrer de outras formas. (...)" (AgRg no Ag 1353772 / PE, rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 16.12.2010)   - O Superior Tribunal de Justiça vem entendendo que, "A despeito de não haver necessidade de comprovação de prejuízo ao erário, as condutas descritas no artigo 11 da LIA dependem da presença do elemento subjetivo na modalidade dolosa." (EREsp 875.163/RS, rel. Min. Mauro Campbell Marques, DJ 30.06.10) (Reexame Necessário n. 2011.042798-7, de Chapecó, rel. Des. Sérgio Roberto Baasch Luz, j. 02/08/2011 – grifou-se).

Neste contexto, frágil o conjunto probatório, a sentença absolutória merece prevalecer.

Do crime de prevaricação

Melhor sorte não teve a acusação quanto ao delito de prevaricação.

Verbera o art. 319 do Código Penal:

Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra expressa disposição de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal:

Pena - detenção, de seis meses a dois anos (grifou-se).

Por sua vez, o art. 65, II, c, da Lei de Licitações assim dispõe:

 Art. 65. Os contratos regidos por esta Lei poderão ser alterados, com as devidas justificativas, nos seguintes casos:

II - por acordo das partes:

[...]

  1. c) quando necessária a modificação da forma de pagamento, por imposição de circunstâncias supervenientes, mantido o valor inicial atualizado, vedada a antecipação do pagamento, com relação ao cronograma financeiro fixado, sem a correspondente contraprestação de fornecimento de bens ou execução de obra ou serviço; (grifou-se).

Os verbos nucleares do tipo penal são "retardar", "deixar de praticar" ou "praticar". São três condutas puníveis.

O elemento normativo do tipo, indevidamente, significa "não permitido por lei, infringindo dever funcional" (NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. 11 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 1166).

Ato de ofício, por sua vez, "é ato que o funcionário público deve praticar, segundo seus deveres funcionais. Exige, pois, estar o agente no exercício da função" (NUCCI, Guilherme de Souza. op. cit., p. 1167).

Trata-se de crime doloso, exigindo do agente a vontade de "satisfazer interesse" ou "sentimento pessoal", próprio, em que o sujeito ativo somente pode ser funcionário público, bem como de delito formal, não exigindo, para sua consumação, o resultado naturalístico, consistente na efetiva satisfação do interesse ou sentimento (NUCCI, Guilherme de Souza. op.cit., p. 1167).

Já o sentimento ou interesse pessoal "é aquele proveito, ganho ou vantagem auferido pelo agente, não necessariamente de natureza econômica" (NUCCI, Guilherme de Souza. op. cit., p. 1167).

Delineado o tipo penal, passa-se à análise da conduta praticada pelos acusados em paralelo com o delito imputado.

Pois bem.

Narra a exordial, neste ponto, conforme já antes mencionado, que  os acusados Mário e Aloysio teriam incidido no crime de prevaricação, pois, na qualidade de Secretário de Turismo e Secretário Adjunto de Turismo, na data de 17 de setembro de 2009, anteciparam o pagamento da quantia de R$ 200.000,00 (duzentos mil reais) à empresa Beyondpar, em violação ao artigo 65, II, c, da Lei n. 8.666/1993, tal como a cláusula "4.1" do contrato, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal.

Quanto à materialidade delitiva, como já dito, muito não se pode exigir, pois, tratando-se de crime formal, este se aperfeiçoa com a simples incursão do agente no verbo nuclear do tipo, independentemente de resultado naturalístico, contudo, ainda assim, restou esta demonstrada pelo contrato de fls. 182-187, que especificou que o pagamento ocorreria da seguinte forma: "R$ 1.000.000,00 até 20 de setembro de 2009; R$ 1.500.000,00 até 30 de outubro de 2009 e R$ 500.000,00 no dia da apresentação do show. Parágrafo único – O desembolso da primeira parcela vincula-se, imprescindivelmente, à apresentação do contrato formalizado entre a CONTRATADA e o Maestro Andrea Bocelli.", bem como pelas notas de empenho de fls. 225 e 281, ambas firmadas pelo acusado Aloysio Machado, e pelas notas fiscais de fls. 276 e 284, emitidas pela Empresa Beyondpar nas datas de 18/09/2009 e 01/10/2009, no valores respectivos de R$ 200.0000,00 e  R$ 800.000,00.

Incontroversa, outrossim, a qualidade de funcionário público dos sujeitos ativos, estes, Secretário de Turismo e Secretário Adjunto de Turismo à época dos fatos.

A discussão cinge-se, assim, na efetiva caracterização do tipo penal imputado, bem como no dolo dos agentes.

Com efeito, ainda que comprovada a liberação antecipada do dinheiro, quanto a isso não há controvérsia, primeiramente, não há provas que demonstrem que o pagamento da pecúnia foi autorizado por ambos os acusados, Mário e Aloysio.

Com efeito, os documentos de fls. 225 e 281, que autorizaram o desembolso antecipado dos valores, apenas foram firmados por Aloysio Machado (conforme carimbo) em conjunto com outros servidores municipais não integrantes da presente lide. Ademais, também não há provas de que a liberação antecipada dos valores ocorreu para satisfação de interesse ou sentimento pessoal dos acusados.

Ouvido o artista Andrea Bocelli, asseverou ele nada saber acerca da forma de pagamento realizado a empresa contratada para a realização do evento. Veja-se:

PAGAMENTOS E VALORES./

COMO SÃO FEITOS NORMALMENTE OS SEUS PAGAMENTOS: O ARTISTA RECEBE DEPOIS OU ANTES DO SHOW?/

R: Não sou eu que cuido desta parte; o meu booking agente é o responsável por isto./ (fl. 1910).

Sobre o fato, Aloysio Machado Filho (Secretário Adjunto), interrogado em juízo (CD de fl. 1941), afirmou que praticamente não acompanhou a negociação e articulação do evento. Mencionou que apenas assinou a inexigibilidade de licitação com amparo no parecer da Assessora Jurídica Daniela. Contudo, não discordou da assinatura por ele lançada da nota de empenho que autorizou a liberação antecipada dos valores.

Mário, por sua vez, mencionou que não participou do desembolso (empenho) do dinheiro. Enfatizou que nenhum dos documentos menciona o seu nome e pondera que a assinatura constante no documento de liberação do valor de R$ 200.000,00 não é sua, mas de Aloysio. Afirmou que os pagamentos também foram assinados pelo Prefeito (CD de fl. 1941).

Por fim, Daniela, apenas asseverou que os documentos referentes à liberação antecipada do dinheiro não passaram por suas mãos (CD de fl. 1941).

Não existem outras provas que comprovam a autoria do ilícito (no tocante ao acusado Mário), tampouco que revelam o dolo específico dos acusados em se favorecer com a antecipação dos valores.

Ora, repita-se, não se está aqui a tratar de ilícitos civis decorrentes da má gestão pública, tal como da inexecução de contratos administrativos. O presente processo objetiva apurar o ilícito criminal de prevaricação e, neste viés, inexistindo provas seguras da autoria e do especial fim de agir "para satisfazer interesse ou sentimento pessoal" (dolo específico), a absolvição faz-se necessária.

Aliás, interesse pessoal, diga-se, que sequer restou especificado na exordial, tampouco esclarecido nos autos, pois, pelo que se apurou, o ato ilegal de antecipar os valores contrariando o contrato firmado somente beneficiaria a empresa Byondopar e, quiçá, o artista contratado.

Cumpre repisar que a conduta somente é punida a título de dolo.

Neste sentido, leciona Celso Delmanto:

Tipo subjetivo: O dolo, ou seja a vontade livre e consciente de praticar as condutas indicadas, e o elemento subjetivo do tipo expresso pela finalidade de agir ("para satisfazer interesse ou sentimento pessoal"). Na doutrina é o "dolo específico". Não há punição a título de culpa (Código penal comentado: acompanhado de comentários, jurisprudência, súmulas em matéria penal e legislação complementar. 8 ed. São Paulo: SAraira, 2010, p. 913 – grifou-se).

No crime de prevaricação, é indispensável o elemento moral, isto é, ter sido o ato praticado para satisfazer interesse ou sentimento pessoal. A prática de ato de ofício, por erro ou negligência, sem intenção direta poderia constituir falta de exação no cumprimento do dever funcional, acarretando responsabilidade civil ou sanção de outra natureza.

Portanto, ausentes provas suficientes à condenação também por este crime, a manutenção da absolvição, à luz do princípio in dubio pro reo, é medida que se impõe.

Neste sentido, já decidiu esta Câmara:

APELAÇÃO CRIMINAL. CRIME CONTRA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. PREVARICAÇÃO (ART. 319 DO CP). SENTENÇA ABSOLUTÓRIA. RECURSO MINISTERIAL ALMEJANDO A CONDENAÇÃO. DELEGADO DE POLÍCIA QUE DEIXA DE LAVRAR AUTO DE PRISÃO EM FLAGRANTE, DETERMINANDO INSTAURAÇÃO DE INQUÉRITO POLICIAL. MATERIALIDADE E AUTORIA FARTAMENTE COMPROVADAS. AUSÊNCIA, CONTUDO, DE ELEMENTOS DE CONVICÇÃO CONCERNENTES AO DOLO ESPECÍFICO NA CONDUTA DO AGENTE. VERSÃO ACUSATÓRIA, DE QUE O RÉU DEIXOU DE PRATICAR ATO DE OFÍCIO POR COMODISMO, NÃO SUPORTADA PELAS PROVAS DOS AUTOS. INTUITO DE SATISFAZER INTERESSE OU SENTIMENTO PESSOAL NÃO EVIDENCIADO. CONDENAÇÃO IMPOSSÍVEL. RECURSO MINISTERIAL DESPROVIDO (Apelação Criminal n. 2013.070361-8, de Curitibanos, rel. Des. Alexandre d'Ivanenko, j. 18/02/2014 – grifou-se).

APELAÇÃO CRIMINAL - CRIMES CONTRA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA - CONCUSSÃO E PREVARICAÇÃO - COORDENADOR REGIONAL DA FATMA QUE, EM TESE, CONDICIONA À EMISSÃO DE LICENÇA AMBIENTAL O PAGAMENTO DE VALOR INDEVIDO - SENTENÇA ABSOLUTÓRIA - INSURGÊNCIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO - CONJUNTO PROBATÓRIO INSUFICIENTE A COMPROVAR A EXIGÊNCIA DE VANTAGEM INDEVIDA - INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO DO IN DUBIO PRO REO - ABSOLVIÇÃO MANTIDA - RECURSO NÃO PROVIDO (Apelação Criminal n. 2011.006752-3, de Joaçaba, rel. Des. Moacyr de Moraes Lima Filho, j. 14/06/2011 - grifou-se).

INQUÉRITO - DENÚNCIA OFERECIDA CONTRA MAGISTRADO - EXORDIAL QUE IMPUTA AO DENUNCIADO A PRÁTICA DOS CRIMES DE ABUSO DE AUTORIDADE E PREVARICAÇÃO - RITO PROCESSUAL ESTABELECIDO PELA LEI N. 8.038/90 QUE INDICA EM SEU ART. 6º A POSSIBILIDADE DE SE INCURSIONAR NESTA FASE O EXAME DO MÉRITO.    [...] PREVARICAÇÃO - CONDUTAS ATRIBUÍDAS AO DENUNCIADO QUE NÃO DEMONSTRAM A EXISTÊNCIA DO DOLO ESPECÍFICO, NECESSÁRIO À CONFIGURAÇÃO DO DELITO - DENÚNCIA REJEITADA EM RELAÇÃO A ESTE.  O mero retardamento de ato de ofício, por erro ou negligência, sem propósito deliberado, sem intervenção direta, poderia constituir falta de exação no cumprimento do dever funcional, acarretando responsabilidade civil ou sanção de outra natureza. Jamais o crime em causa, por falta do elemento subjetivo indispensável (Inquérito Judicial n. 2003.018719-7, de Tubarão, rel. Des. Torres Marques, j. 16/06/2004 – grifou-se).

Por todo o exposto, falhando a acusação em comprovar os fatos articulados na vestibular, supostamente caracterizadores dos crimes previstos no arts. 89 da Lei de Licitações e 319 do Código Penal, a manutenção da sentença absolutória, com fundamento no art. 386, VII, do CPP, é medida de rigor.

Ora, "no processo criminal, máxime para a condenação, tudo deve ser claro como a luz, certo como a evidência, positivo como qualquer expressão algébrica. Condenação exige certeza absoluta, fundada em dados objetivos indiscutíveis, de caráter geral, que evidenciem o delito e a autoria, não bastando a alta probabilidade na consciência do julgador, sob pena de transformar-se o princípio do livre convencimento em arbítrio" (Apelação Criminal n. 29.991, da Capital, rel. Juiz Nilton Macedo Machado).

Logo, forçosa a aplicação, no caso, do princípio in dubio pro reo, assim explicitado pelo mestre Nelson Hungria:

A dúvida é sinônimo de ausência de prova. [...] a condenação criminal somente poderá surgir diante de uma certeza quanto à existência do fato punível, da autoria e da culpabilidade do acusado. Uma prova deficiente, incompleta ou contraditória, gera a dúvida e com ela a obrigatoriedade da absolvição, pois milita em favor do acionado criminalmente uma presunção relativa de inocência (Da Prova no Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 1983. p. 46).

Nessa esteira, colaciona-se aresto desta Corte:

Não logrando a acusação fazer prova convincente acerca da autoria e revelando o conjunto probatório mais dúvida do que certeza, a única solução possível é a absolvição.

O direito penal não anda de mãos dadas com a dúvida, muito pelo contrário. A dubiedade, que in casu impera neste processo, tamanha a sua importância, foi elevada à qualidade de princípio (in dubio pro reo), princípio este, que no dizer de Bettiol, citado por Fernando da Costa Tourinho Filho é a 'base de toda a legislação processual penal de um Estado, inspirado na sua vida política e no seu ordenamento jurídico por um critério superior de liberdade' (in Processo Penal, V. 1, ed. Saraiva, p. 73)" (Apelação Criminal n. 2006.0439429, de Itapiranga, rel. Des. Tulio Pinheiro, j. 12/12/2006).

E mais:

Havendo um mínimo de incerteza, prevalece o princípio do in dubio pro reo, tornando-se preferível absolver mil culpados do que condenar um inocente. Ademais, no processo criminal não há incertezas; ou demonstra-se cabalmente a autoria e a materialidade do delito ou absolve-se, pois a dúvida é sinônimo de ausência de provas (Apelação Criminal n. 2004.013105-4, de Tubarão, rel. Des. Solon d'Eça Neves, j. 22/3/2005).

Dúvida equivale à falta de provas.

Portanto, de condenação não há falar.

Do prequestionamento

Requer o Ministério Público, nas razões de apelo, o prequestionamento da matéria afeta ao dolo específico para a caracterização do crime previsto no art. 89, caput, da Lei 8.666/1993.

No entanto, o requisito do prequestionamento, para fins de interposição de recurso nos Tribunais Superiores, é satisfeito com a apreciação da matéria ventilada no recurso [o que foi devidamente realizado in casu].

A propósito, colaciona-se da jurisprudência do colendo Superior Tribunal de Justiça:

ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. SERVIDOR PÚBLICO. DEMISSÃO. SENTENÇA PENAL ABSOLUTÓRIA SEM REPERCUSSÃO NA ESFERA ADMINISTRATIVA. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. OMISSÃO, CONTRADIÇÃO OU OBSCURIDADE. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO. PREQUESTIONAMENTO DA MATÉRIA CONSTITUCIONAL. MENÇÃO EXPRESSA AOS DISPOSITIVOS. DESNECESSIDADE. PRECEDENTES. REJEIÇÃO. [...] 2. Para fins de prequestionamento da matéria constitucional, hábil a possibilitar a interposição de recurso extraordinário, orienta-se a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, há longa data, pela desnecessidade de que haja expressa menção, no acórdão recorrido, aos dispositivos constitucionais que a parte entende como violados. 3. Embargos de declaração rejeitados (EDcl no Resp 794100/PR, rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 05/12/2006, grifou-se). [...] Não configura omissão do julgado a falta de menção expressa a dispositivos constitucionais e infraconstitucionais suscitados pela parte, se a decisão restou suficientemente fundamentada. Embargos de declaração rejeitados (STJ - EDcl no AgRg no REsp 1108360/RS, rel. Min. Felix Fischer, j. 6/10/2009, grifou-se).

 Assim, sem maiores delongas desnecessárias, rejeita-se o pedido de prequestionamento.

Em decorrência, vota-se pelo conhecimento e não provimento do recurso.

É o voto.

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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