Casa de Periferia também é asilo inviolável. Do Leme ao Pontal e também em Belford Roxo. Ilegalidade da prova obtida mediante invasão, reconhece Juiz de Belford Roxo

22/07/2015

Por Redação - 22/07/2015

Casa em comunidade excluída também é casa para fins de garantia constitucional. Logo, não pode a força policial, mesmo que lotada de boas intenções ou na ilusória Guerra às Drogas, invadir, sem mandado, a casa de quem quer seja. Do Leme ao Pontal e também em Belford Roxo. Em tempos de eficientismo do Processo Penal, uma decisão que reconhece garantias constitucionais merece todo o aplauso. Parabéns ao Juiz Alfredo Marinho, da 2a Vara Criminal de Belford Roxo, Rio de Janeiro.

Leia a íntegra abaixo
Proc. nº. 0002903-62.2013.8.19.0029 S E N T E N Ç A

WAGNER, qualificado nos autos do processo em epígrafe, responde à presente ação penal como incurso nas penas do art. 16 da Lei nº. 10.826/03, juntamente com WALLACE, o qual não está sendo sentenciado neste momento porque já o foi, conforme sentença de fl. 339, que declarou extinta a punibilidade dos fatos quanto a ele, que faleceu, nos termos do art. 107, I, do CP.

A denúncia relata o seguinte, ipsis litteris:

“No dia 15 de março de 2013, por volta das 10:30hs, na Rua M., nº., quadra, no Morro XXX, nesta Comarca, o denunciado Wallace, consciente e voluntariamente, portava e detinha, no interior do imóvel, uma arma de fogo de uso restrito, qual seja, um fuzil Deutsche Waffen-und, calibre 762, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar.

No dia dos fatos, policiais militares realizavam operação na localidade objetivando reprimir o tráfico de drogas, quando avistaram o imóvel acima indicado com a porta aberta e, ao adentrá-lo, encontraram o denunciado Wallace com o fuzil acima indicado, além de um rádio transmissor Talkabout, da marca Motorola T5025.

Segundo informaram moradores, instantes antes, eles ouviram uma troca de tiros, tendo Wallace batido na porta do imóvel e ali entrado portando o fuzil. Wallace assumiu aos policiais militares a propriedade do fuzil e do rádio transmissor, a quem confirmou que participava do tráfico de drogas na função de “soldado”, ganhando R$300,00 (trezentos reais) por semana.

Após a prisão do denunciado Wallace, a guarnição policial se dirigiu até a localidade conhecida como “Escadão”, também no interior do Morro XXX, onde avistaram o denunciado, em atitude suspeita. Realizada a revista pessoal, foi encontrado em seu poder uma pistola Glock, calibre 45.

Assim, no dia 15 de março de 2013, logo após a prisão do denunciado Wallace, na localidade conhecida como “Escadão”, no Morro XXX, nesta Comarca, o denunciado Wagner, consciente e voluntariamente, portava uma arma de fogo de uso restrito, qual seja, uma pistola Glock, calibre 45, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar” (sic fl. 02a, frente e verso).

(...)

É O RELATÓRIO. PASSO A DECIDIR.

De início, registro que a presente sentença diz respeito tão-somente ao réu Wagner, posto que em relação ao acusado Wallace a punibilidade dos fatos foi declarada extinta, com base no art. 107, I, do CP, conforme sentença de fl. 339, transitada em julgado.

Imputa-se ao acusado Wagner a prática do crime previsto no art. 16 da Lei nº. 10.826/03.

Ao final da instrução, os fatos relatados na denúncia não restaram devidamente comprovados, devendo o réu Wagner ser absolvido, com base no art. 386, VII, do CPP, senão, vejamos.

A materialidade do crime imputado a Wagner ficou demonstrada pelo auto de apreensão de fls. 57/58 e pelo laudo pericial de fl. 167, que atesta a potencialidade lesiva da pistola apreendida, descrevendo-a como uma pistola Glock, calibre 45, com numeração de série raspada, apta à produção de disparos. Ainda segundo esse laudo, acompanhavam essa pistola, a ela adequados, um carregador e cinco cartuchos de munição íntegros.

Quanto à autoria e ao dolo do acusado Wagner, estes não ficaram licitamente comprovados.

Isto porque a apreensão da pistola atribuída a Wagner (a exemplo da apreensão do fuzil atribuído a Wallace, diga-se de passagem) se deu com patente violação ao art. 5º., XI, da Constituição da República, sendo nula de pleno direito, conforme muito bem sustentado pela defesa em suas alegações finais.

A propósito, mister transcrever o testemunho prestado pelo policial militar AAA sob o crivo do contraditório, ad litteram:

PM AAA: “são verdadeiros os fatos narrados na denúncia; foi o depoente que prendeu Wagner; o contato que o depoente teve com o Wallace se deu quando ele já estava detido e  o material com ele apreendido de posse da polícia; após a prisão de Wallace é que ocorreu a prisão de Wagner; o depoente não conhecia a Comunidade XXX; estavam em patrulhamento a pé pelo “Escadão” (que é dentro da Comunidade XXX) e o depoente viu uma casa com a porta aberta e nela adentrou; os colegas fizeram a segurança, já que no início a polícia tinha sido recebida com uma saraivada de tiros; ao adentrar, o depoente encontrou o réu Wagner deitado; o depoente fez uma busca e encontrou a pistola, que Wagner assumiu como sendo dele; indagado onde estava a pistola, o depoente respondeu que em razão do tempo que se passou não se recorda se ela estava na cintura ou em baixo do colchão, mas pode afirmar que com certeza ela estava no mesmo cômodo que ele; indagado se  havia mais alguém na casa, o depoente respondeu que não se recorda; a casa tinha móveis, ou seja, era habitada; indagado se a casa era de Wagner, o depoente respondeu que não perguntou; indagado o que o levou a entrar na casa, o depoente respondeu que a escolha da casa não foi sua e que normalmente entra quando há pistas que indiquem que alguém se escondeu na casa; Wagner estava acordado; não deu para saber de onde os tiros vieram; houve correria com a entrada da polícia na comunidade; indagado se elementos correram para o lado do “Escadão” ou  do “couro come”, o depoente respondeu que não dá para precisar, acrescentando que normalmente eles correram para a mata ou para a casa de moradores; a viatura do depoente estava mais para o lado do “couro come”, que é onde fica a boca de fumo mais conhecida da comunidade; não sabe a distância do local  de uma prisão para o local da outra prisão; Wagner não foi preso na Rua M.; os réus foram presos em ruas diferentes” (sic fls. 191/192).

No mesmo sentido foi o testemunho prestado sob o crivo do contraditório pelo policial militar CCC, o qual confirmou ter efetivado a prisão do acusado Wallace (vale registrar, também mediante invasão de domicílio) e que o PM AAA prendeu o réu Wagner (fls. 189/190).

Ainda a respeito da prisão do acusado Wagner, o policial militar CCC contou em Juízo que:

“... quanto a Wagner, ele também foi preso dentro de uma casa, na localidade conhecida como Escadão, dentro da Comunidade XXX; o depoente ficou do lado de fora enquanto o policial AAA entrou; o restante da guarnição também ficou fora; o portão da casa também estava aberto; no interior da casa, o cabo AAA logrou êxito em encontrar Wagner portando a pistola Glock 45 municiada e também um rádio transmissor; “quando está em atitude suspeita, a gente entra na casa”, sendo que  o “Escadão” e a Rua M., que tem o apelido de “couro come”, são locais em que há tráfico de drogas; indagado se havia alguém mais além de Wagner, o depoente respondeu que não; não chegou a apurar se a casa era de Wagner ou de outra pessoa, já que o depoente não entrou na casa; indagado se foi possível visualizar para onde os elementos correram, o depoente respondeu que eles correm para os becos e para cima, sendo que a polícia vai batendo o local, procurando os elementos; indagado quantas casas foram vistoriadas, o depoente respondeu que muitas casas foram vistoriadas, não dá para precisar o número; indagado o que é atitude suspeita apta a justificar a revista de uma casa, ou seja, como as casas são escolhidas, o depoente respondeu que no caso do Wallace, a atitude suspeita foi que a dona se assustou ao ver o depoente; o depoente perguntou para ela se havia mais alguém na casa e ela respondeu que sim, ela e o marido; o depoente perguntou se poderia revistar a casa e ela disse que sim; a casa ficava em uma rota de fuga; não sabe precisar onde a arma de Wagner foi encontrada” (sic fl. 189/190).

Igualmente, por oportuno, vale transcrever, outrossim, o seguinte trecho do testemunho prestado pelo PM CCC em Juízo, que também expõe a ampla ilegalidade da atuação policial: “a polícia “bateu a favela”; “bater favela” é procurar, em mato, casa, onde eles possam estar escondidos” (sic fl. 189).

Então, conforme testemunhos policiais supra, restou incontroverso que o acusado Wagner foi preso dentro de casa, que foi invadida pela polícia, simplesmente, por ser localizada em área de tráfico e estar com a porta aberta na ocasião. Ficou incontroverso ainda que Wagner, quando abordado no interior da residência, estava deitado. Além disso, ficou incontroverso que muitas outras casas foram revistadas, tantas que não foi possível aos policiais precisar o número.

A par disso, os policiais contaram que a arma foi encontrada na residência, após buscas no local, e o réu Wagner espontaneamente assumiu sua propriedade.

Data maxima venia, é assombrosa a atuação da polícia no episódio em questão, tantas que foram as violações à Constituição e a direitos humanos relatadas e, infelizmente, ao que parece, naturalizadas pelos agentes estatais.

O pior é que, lamentavelmente, incidências de atuação policial como essa não são raras, pretensamente (in)justificadas pela suposta busca por um bem maior, qual seja, a segurança da coletividade, concessa venia, enredada em roteiro que nos faz lembrar o arbítrio e os abusos ocorridos em épocas sombrias da humanidade, agora contra o “traficante”, inimigo eleito do momento, sendo geralmente presas, de forma massificada, pessoas pobres desprovidas de estudos e mais carentes de condições e oportunidades, as quais na estrutura hierárquica do tráfico ocupam posição irrelevante, facilmente substituível.

Dados do 8º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, da ONG Fórum Brasileiro de Segurança Pública, apontam que nossa polícia está entre as que mais matam e mais morrem no mundo e a do Rio de Janeiro é a que ostenta a maior taxa de letalidade do país.

Pari passu, o sistema carcerário do país, conforme diagnóstico de pessoas presas no Brasil do CNJ, está abarrotado e, longe de recuperar ou, pelo menos, propiciar tratamento penal humanizado, submete diariamente novos presos à convivência com líderes de facções criminosas e com outros presos violentos, brutalizando-os e degenerando-os. O país figura entre os três ou quatro países com o maior número de presos do planeta; e a violência nas Cidades que compõem suas regiões metropolitanas só faz aumentar.

A propósito, como magistrado atuante em Juízos criminais nesta carente Comarca de Beford Roxo[1] há quase 11 anos, venho testemunhando, com tristeza, o exponencial aumento da criminalidade por aqui em relação diretamente proporcional ao absurdo incremento do número de presos por tráfico no Estado do Rio de Janeiro, notadamente a partir das instalações das chamadas UPPs na Comarca da Capital, no final de 2008. A Capital, por sua vez, também sente bastante os reflexos negativos dessa política de guerra e de exclusão, com beligerância concentrada nas periferias.

Enquanto a guerra às drogas é travada nas periferias, com todos os seus efeitos nocivos, sem qualquer eficiência democrática, os verdadeiros e significativos atores do tráfico enriquecem e se retroalimentam justamente da proibição e dessa guerra irracional, usufruindo consequentemente de um monopólio que não pode ser sobrepujado pelo enfrentamento direto e belicoso do Estado. Na mesma esteira, a indústria das armas ou da guerra, composta também por poucos, se locupleta comercializando tudo que diz respeito à segurança em geral, como armas, munições, blindagem, segurança privada, etc., explorando o medo. Há ainda outros poucos que enriquecem mantendo as pesquisas sobre as diversas drogas (arbitrariamente eleitas ilícitas) potencialmente benéficas à saúde da população escondidas atrás dos espessos biombos da burocracia praticamente insuperável, do medo, do preconceito e da ilegalidade.

Paralelamente, nesse sistema de guerra, os usuários de drogas são mantidos na clandestinidade, relegados à discriminação, à criminalização e à negação de direitos democráticos comezinhos como à informação e à saúde.

Tal situação é insustentável e parte de seus efeitos, associados a outras causas, notadamente decorrentes da carência de investimentos sociais crônica que nos acomete, estão aí pelas ruas das grandes Cidades, tomadas pela criminalidade, tão escancarados quanto o medo que tem gerado um clamor público, manipulado e irrefletido, pelo aumento da repressão penal, resposta esta logicamente ineficiente e incapaz de atingir o fim almejado, mas propagada como panaceia por um discurso demagógico que não coincide com o interesse por uma nação exitosa enquanto democracia republicana, inclusiva e solidária.

Certamente, concessa maxima venia, nossa política de drogas não representa o ideal democrático, que repudia a guerra. Não é esse o projeto Constitucional, que proclama a inclusão social e tem em seu núcleo de direitos fundamentais, estruturados sobre o alicerce da dignidade da pessoa humana, normas que devem ser respeitadas por todos.

No caso do Poder Judiciário, e também do Ministério Público, além de respeitá-las, seus integrantes devem fazê-las serem respeitadas.

Não é lícito ao Estado violar a Constituição sob o pretexto de defendê-la ou de defender uma utopia enganosa, violenta e nociva. Não é possível um mundo sem drogas. Ponto. Meios alternativos à guerra às drogas, de redução de danos, devem ser buscados, como estratégia e maneira inteligente de lidar com a questão das drogas no país e seus efeitos nocivos, atenuando-os.

E mais: do jeito que as coisas estão, mister frisar e afirmar o óbvio: os fins não justificam os meios, pois em um Estado Democrático de Direito os meios e os fins se confundem, de tal forma que não há resultado justo (elucidação e punição de crime grave) quando há mácula na forma (violação da Constituição e das Leis).

Ao Poder Judiciário cabe a defesa intransigente da Constituição da República e das Leis, sob pena de seus integrantes deixarem de ser Juízes para se transformarem em justiceiros, o que não é desejável pela sociedade civilizada e passa ao largo dos nobres anseios constitucionais democráticos.

Aliás, à sociedade, personificada na instituição Ministério Público, cabe o dever constitucional da defesa da ordem jurídica e do regime democrático (art. 127 da Constituição).

Por esses motivos, sinto-me no dever de declarar as nulidades em questão, esperançoso de que esta decisão, ao lado de tantas outras proferidas pelo Poder Judiciário, notadamente pelo Supremo Tribunal Federal, sirva para propagar e ajudar a consagrar até em futuras manifestações estatais o império da Constituição.

A propósito do caso sob julgamento, como se vê, os policiais invadiram a residência onde apreenderam a pistola atribuída a Wagner no momento em que este ali estava deitado, descansando, e, portanto, agiram em total desrespeito ao art. 5º., XI, da Constituição da República, segundo o qual “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”.

No mesmo sentido são as disposições dos arts. 240 a 243 e 245 a 248, todos do Código de Processo Penal.

Nem se diga que o réu Wagner estava em flagrante delito e por isso a apreensão da pistola e a prisão dele realizadas seriam legais e constitucionais.

Na verdade, a hipótese excepcional de violabilidade do domicílio decorrente da situação de flagrante delito demanda que os agentes conheçam com segurança e previamente a situação flagrancial para poderem ingressar em residência alheia sem mandado judicial.

Neste ponto, vale abrir um parêntese.

Nos termos do art. 240, §1º., do CPP,  para que o Juiz defira eventual pedido de busca e apreensão domiciliar que lhe seja formulado, há necessidade da existência de “fundadas razões” que autorizem essa providência.

O fato de uma casa situada em local de criminalidade conflagrada estar com a porta aberta não se consubstancia em “fundadas razões” para o deferimento de mandado judicial que excepcione a regra da inviolabilidade do domicílio das pessoas. Tampouco a excepcionam eventuais informações exclusivamente anônimas, considerando que a Constituição veda o anonimato (art. 5º., IV).

Ora, se o Poder Judiciário não pode autorizar o ingresso de agentes estatais em residência alheia escorado apenas nessas circunstâncias (simples suspeita de haver traficante dentro de uma casa porque ela estava com a porta aberta e situa-se em local de tráfico), obviamente e com muito mais razão não pode o policial militar ingressar na residência de alguém nessas condições, até porque ele, como regra, precisa do mandado judicial para fazê-lo.

Evidentemente, não se pode interpretar um direito fundamental previsto na Carta Cidadã com menor extensão protetiva do que se tem na tutela conferida a esse mesmo direito pelo Código de Processo Penal, que foi publicado em pleno Estado Novo e tem clara inspiração no Código Rocco, elaborado em 1930 para a Itália fascista, sendo imperioso que a regra da inviolabilidade do domicílio constitucionalmente prevista só seja excepcionada pela situação flagrancial quando o agente estatal conheça essa situação previamente ao ingresso na residência e de forma segura.

Caso contrário, o bem jurídico tutelado pelo citado preceptivo constitucional, qual seja, a inviolabilidade do domicílio, ficaria absolutamente desprotegido, já que os agentes estatais poderiam quando bem quisessem ingressar em qualquer residência, sempre sob a alegação de que ali poderia haver drogas e/ou armas e/ou traficantes, às vezes diante de circunstâncias frágeis como no caso em exame, outras vezes em função de informações (geralmente anônimas) que teriam obtido. Se não houvesse flagrante algum, pediriam desculpas (se é que o pediriam). Se houvesse, pronto, o flagrante estaria configurado.

Data maxima venia, admitir que a situação flagrancial que justifica a violabilidade de domicílio não precisa ser de conhecimento seguro e prévio do agente estatal significa, por via transversa, estimular o estado de inconstitucionalidade permanente. Seria ainda desconsiderar a dignidade humana das pessoas que vivem em Municípios carentes, como o de Belford Roxo, dando carta branca para que policiais invadam suas residências a todo o momento. Seria, concessa venia, admitir um estado de exceção dentro do Estado de Direito. Seria, por ato de soberania, excepcionar tão reiteradamente a regra da inviolabilidade do domicílio que ela não teria validade em si, equiparando os munícipes locais a pessoas desprovidas desse Direito constitucional, que, vale realçar, é cláusula pétrea em nosso sistema jurídico-constitucional (art. 60, §4º., IV, da Constituição).

Aliás, no presente caso foi justamente o que ocorreu no Morro XXX, pois foram tantas as casas “revistadas” pelos policiais que eles não conseguiram seque precisar o número. Em uma delas, Wagner foi preso.

Por pertinente, deixo averbada menção ao filósofo italiano Giorgio Agamben, que bem descreve e repudia esse fenômeno – em que pessoas, por algum motivo eleito pelo “soberano”, são desconsideradas como tais (“vida nua”) e subsequentemente são indevidamente desprovidas de seus direitos democráticos mais comezinhos, coexistindo o Estado de Exceção e o Estado de Direito – em suas obras “Homo Sacer: o Poder Soberano e a Vida Nua” e “Estado de Exceção”.

No caso sob julgamento, os policiais, como se vê de seus testemunhos, ao invadirem a residência onde o acusado estava deitado descansando e onde a pistola calibre 45 foi apreendida, o fizeram em função de circunstâncias que entenderam suspeitas (suspeita de haver traficante dentro de uma casa porque ela estava com a porta aberta em local de tráfico), mas logicamente não tinham conhecimento prévio e seguro quanto à situação flagrancial na qual ele supostamente estaria.

Se havia fundada suspeita ou até, por hipótese – ao que parece – não ocorrente no presente caso, alguém informou aos policiais onde eram as residências nas quais haveria traficante e material ilícito (o que, evidentemente, não implica em conhecimento prévio seguro sobre situação flagrancial), deveriam os órgãos de persecução colher os elementos probatórios pertinentes e buscar obter mandado judicial para a realização de busca e apreensão nesses locais.

Todavia, assim não procedeu a polícia, data maxima venia, despreparada que está para respeitar as regras constitucionais e legais de investigação penal vigentes em nosso Estado Democrático de Direito, optando pela cômoda providência ilegal e inconstitucional de invadir as residências e, contando com a “sorte”, prender alguém em suposto flagrante.

Como já dito e não custa reiterar, o Poder Judiciário (e também o Ministério Público) não pode dar abrigo a esse tipo de providência marginal, sob pena de estimular essa prática policial odiosa que, como visto, reduz e equipara moradores de comunidades carentes a pessoas desprovidas do direito à inviolabilidade do domicílio, sendo oportuno consignar ainda que o (mero) atentado à inviolabilidade do domicílio configura crime de abuso de autoridade, nos termos do art. 3º., “b”, da Lei nº. 4898/65.

Portanto, foram inconstitucionais e ilegais as apreensões realizadas na residência onde o acusado Wagner estava.

Em consequência, devem ser desconsiderados por completo o auto de apreensão desses materiais e os laudos periciais respectivos, bem como quaisquer testemunhos alusivos a todo material ilícito em questão, por força do art. 5º., LVI, da Constituição, segundo o qual “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos” e as provas daí derivadas (art. 157, e respectivos parágrafos, do CPP).

Outra não é a lição do E. Supremo Tribunal Federal, cuja Segunda Turma, à unanimidade, em 03/04/07, deu provimento ao Recurso em Habeas Corpus nº. 90.376/RJ, de relatoria do Min. Celso de Mello, para, nos termos do voto do relator, restabelecer a sentença penal absolutória proferida nos autos do processo nº. 1998.001.082771-6 da 19ª Vara Criminal da Comarca deste Estado, em acórdão assim ementado, ad litteram:

“PROVA PENAL - BANIMENTO CONSTITUCIONAL DAS PROVAS ILÍCITAS (CF, ART. 5º, LVI) - ILICITUDE (ORIGINÁRIA E POR DERIVAÇÃO) - INADMISSIBILDADE - BUSCA E APREENSÃO DE MATERIAIS E EQUIPAMENTOS REALIZADA, SEM MANDADO JUDICIAL, EM QUARTO DE HOTEL AINDA OCUPADO - IMPOSSIBLIDADE - QUALIFICAÇÃO JURÍDICA DESSE ESPAÇO PRIVADO (QUARTO DE HOTEL, DESDE QUE OCUPADO) COMO "CASA", PARA EFEITO DA TUTELA CONSTITUCIONAL DA INVIOLABILIDADE DOMICILIAR - GARANTIA QUE TRADUZ LIMITAÇÃO CONSTITUCIONAL AO PODER DO ESTADO EM TEMA DE PERSECUÇÃO PENAL, MESMO EM SUA FASE PRÉ-PROCESSUAL - CONCEITO DE "CASA" PARA EFEITO DA PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL (CF, ART. 5º, XI E CP, ART. 150, § 4º, II) - AMPLITUDE DESSA NOÇÃO CONCEITUAL, QUE TAMBÉM COMPREENDE OS APOSENTOS DE HABITAÇÃO COLETIVA (COMO, POR EXEMPLO, OS QUARTOS DE HOTEL, PENSÃO, MOTEL E HOSPEDARIA, DESDE QUE OCUPADOS): NECESSIDADE, EM TAL HIPÓTESE, DE MANDADO JUDICIAL (CF, ART. 5º, XI). IMPOSSIBILIDADE DE UTILIZAÇÃO, PELO MINISTÉRIO PÚBLICO, DE PROVA OBTIDA COM TRANSGRESSÃO À GARANTIA DA INVIOLABILIDADE DOMICILIAR - PROVA ILÍCITA - INIDONEIDADE JURÍDICA - RECURSO ORDINÁRIO PROVIDO. BUSCA E APREENSÃO EM APOSENTOS OCUPADOS DE HABITAÇÃO COLETIVA (COMO QUARTOS DE HOTEL) - SUBSUNÇÃO DESSE ESPAÇO PRIVADO, DESDE QUE OCUPADO, AO CONCEITO DE "CASA" - CONSEQÜENTE NECESSIDADE, EM TAL HIPÓTESE, DE MANDADO JUDICIAL, RESSALVADAS AS EXCEÇÕES PREVISTAS NO PRÓPRIO TEXTO CONSTITUCIONAL. - Para os fins da proteção jurídica a que se refere o art. 5º, XI, da Constituição da República, o conceito normativo de "casa" revela-se abrangente e, por estender-se a qualquer aposento de habitação coletiva, desde que ocupado (CP, art. 150, § 4º, II), compreende, observada essa específica limitação espacial, os quartos de hotel. Doutrina. Precedentes. - Sem que ocorra qualquer das situações excepcionais taxativamente previstas no texto constitucional (art. 5º, XI), nenhum agente público poderá, contra a vontade de quem de direito ("invito domino"), ingressar, durante o dia, sem mandado judicial, em aposento ocupado de habitação coletiva, sob pena de a prova resultante dessa diligência de busca e apreensão reputar-se inadmissível, porque impregnada de ilicitude originária. Doutrina. Precedentes (STF). ILICITUDE DA PROVA - INADMISSIBILIDADE DE SUA PRODUÇÃO EM JUÍZO (OU PERANTE QUALQUER INSTÂNCIA DE PODER) - INIDONEIDADE JURÍDICA DA PROVA RESULTANTE DA TRANSGRESSÃO ESTATAL AO REGIME CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS. - A ação persecutória do Estado, qualquer que seja a instância de poder perante a qual se instaure, para revestir-se de legitimidade, não pode apoiar-se em elementos probatórios ilicitamente obtidos, sob pena de ofensa à garantia constitucional do "due process of law", que tem, no dogma da inadmissibilidade das provas ilícitas, uma de suas mais expressivas projeções concretizadoras no plano do nosso sistema de direito positivo. - A Constituição da República, em norma revestida de conteúdo vedatório (CF, art. 5º, LVI), desautoriza, por incompatível com os postulados que regem uma sociedade fundada em bases democráticas (CF, art. 1º), qualquer prova cuja obtenção, pelo Poder Público, derive de transgressão a cláusulas de ordem constitucional, repelindo, por isso mesmo, quaisquer elementos probatórios que resultem de violação do direito material (ou, até mesmo, do direito processual), não prevalecendo, em consequência, no ordenamento normativo brasileiro, em matéria de atividade probatória, a fórmula autoritária do "male captum, bene retentum". Doutrina. Precedentes. A QUESTÃO DA DOUTRINA DOS FRUTOS DA ÁRVORE ENVENENADA ("FRUITS OF THE POISONOUS TREE"): A QUESTÃO DA ILICITUDE POR DERIVAÇÃO. - Ninguém pode ser investigado, denunciado ou condenado com base, unicamente, em provas ilícitas, quer se trate de ilicitude originária, quer se cuide de ilicitude por derivação. Qualquer novo dado probatório, ainda que produzido, de modo válido, em momento subsequente, não pode apoiar-se, não pode ter fundamento causal nem derivar de prova comprometida pela mácula da ilicitude originária. - A exclusão da prova originariamente ilícita - ou daquela afetada pelo vício da ilicitude por derivação - representa um dos meios mais expressivos destinados a conferir efetividade à garantia do "due process of law" e a tornar mais intensa, pelo banimento da prova ilicitamente obtida, a tutela constitucional que preserva os direitos e prerrogativas que assistem a qualquer acusado em sede processual penal. Doutrina. Precedentes. - A doutrina da ilicitude por derivação (teoria dos "frutos da árvore envenenada") repudia, por constitucionalmente inadmissíveis, os meios probatórios, que, não obstante produzidos, validamente, em momento ulterior, acham-se afetados, no entanto, pelo vício (gravíssimo) da ilicitude originária, que a eles se transmite, contaminando-os, por efeito de repercussão causal. Hipótese em que os novos dados probatórios somente foram conhecidos, pelo Poder Público, em razão de anterior transgressão praticada, originariamente, pelos agentes da persecução penal, que desrespeitaram a garantia constitucional da inviolabilidade domiciliar. - Revelam-se inadmissíveis, desse modo, em decorrência da ilicitude por derivação, os elementos probatórios a que os órgãos da persecução penal somente tiveram acesso em razão da prova originariamente ilícita, obtida como resultado da transgressão, por agentes estatais, de direitos e garantias constitucionais e legais, cuja eficácia condicionante, no plano do ordenamento positivo brasileiro, traduz significativa limitação de ordem jurídica ao poder do Estado em face dos cidadãos...”.

Assim, não há como se condenar o acusado Wagner relativamente à imputação que lhe foi dirigida, tanto por falta de comprovação lícita da materialidade delitiva (a apreensão de todo o material ilícito foi nula), quanto por falta de demonstração lícita da autoria delitiva (as alusões ao material ilícito apreendido são nulas por derivação da nulidade da apreensão), devendo ser prolatado decreto absolutório em seu favor, nos termos do art. 386, VII, do CPP, por força do princípio in dubio pro reo.

Por derradeiro, por amor ao Direito e ao convívio democrático, consigno que, não bastassem a inconstitucionalidade e ilegalidades já apontadas, as provas na qual a denúncia procura escorar-se estão inquinadas ainda de uma outra inconstitucionalidade patente.

Analisemos.

Conforme se vê dos referidos depoimentos prestados pelos policiais, estes, após, inconstitucional e ilegalmente, invadirem a casa onde estava o denunciado, apreenderem o material ilícito citado e prendê-lo, ainda lhe arrancaram uma suposta “confissão”, já que, segundo contam, o réu espontaneamente lhes “confessou” ser o dono da referida arma de fogo.

Nada mais inverossímil, principalmente se for considerado que em sede policial o acusado exerceu o direito de ficar em silêncio, conforme fl. 17.

Tivesse realmente espontaneamente disposto a colaborar com as investigações, teria o acusado Wagner “confessado” a prática delitiva também na delegacia de polícia, e ainda em Juízo. Sequer estaria Wagner revel.

Na verdade, essa falha, ora em comento, que aqui se busca expor, não reside apenas na inverossimilhança dos relatos policiais, mas também na circunstância de que a (suposta) “confissão” informal do acusado Wagner no local da prisão para os policiais que o prenderam não tem validade jurídica no processo penal democrático e deve ser descartada por completo.

Isto porque essas supostas “confissões” não são precedidas das formalidades legais impostas no art. 5º., LXIII, da Constituição, segundo o qual “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado”.

Pelo contrário, essas supostas “confissões” são tomadas em momento de extrema emoção, adrenalina e pressão, naturalmente decorrentes das circunstâncias de uma prisão (supostamente) em flagrante pela (suposta) prática de crimes graves, em local de criminalidade conflagrada.

O processo penal democrático não se coaduna com esse disse-me-disse, geralmente, aliás, viciado por ruídos entre aquilo que os presos efetivamente disseram e aquilo que os policiais gostariam que eles dissessem e afirmam terem eles dito.

Por corolário, a colheita dessas supostas “confissões” não encontra respaldo constitucional ou legal e, da mesma forma, se afiguram ilegal e inconstitucional por derivação os trechos dos depoimentos policiais referentes a informações obtidas com violação a esses direitos democráticos comezinhos dos presos, devendo ser descartados por completo, por força do art. 5º., LVI, da Constituição, segundo o qual “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”.

A propósito da invalidade da confissão extrajudicial dos presos para os policiais que os prenderam, mister transcrever o seguinte aresto, ad litteram:

“ASSOCIAÇÃO AO TRÁFICO (ART. 35, LEI 11.343.06). RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO PRETENDENDO A CONDENAÇÃO DIANTE DA CONFISSÃO EXTRAJUDICIAL E PELO DEPOIMENTO DOS POLICIAIS MILITARES. PROVA INSUFICIENTE. ABSOLVIÇÃO MANTIDA. Duvidosa a prova e ausentes os elementos necessários para subsunção da conduta ao tipo penal, mantém-se a absolvição. A "confissão" extrajudicial foi retratada em Juízo, não se caracterizando como legítima. Trata-se de "confissão" secreta, reservada, íntima, cuja legitimação violenta o devido processo legal. Ademais, ao ser interrogado em juízo, o réu não só negou a veracidade dos fatos narrados, como a posse do mencionado rádio transmissor, assim como aduziu que foi agredido e ameaçado para confirmar sua participação no tráfico de drogas. Os policiais militares responsáveis pela prisão do réu não presenciaram ou assistiram qualquer ato de traficância ou qualquer atitude de colaboração do réu com a suposta facção criminosa, tão somente reproduziram uma possível "confissão" obtida do réu quando de sua prisão. Se o testemunho policial é válido como qualquer outro, não se pode, por isso mesmo, considerá-lo incontrastável e soberano, hierarquizando-se a palavra do policial, como no tempo da verdade legal, retornando-se ao velho Direito Feudal, onde a prova servia não para descobrir a verdade, mas para determinar que o mais forte, por ser o mais forte, sempre detinha a razão. Recurso do MP improvido” (Apelação nº. 0071780-12.2011.8.19.0001. Quinta Câmara Criminal. Des. Sergio de Souza Verani. Julgamento: 18/12/2013).

Desta forma, também fundamenta a prolação do decreto absolutório o disposto no art. 5º., LXIII, da Constituição da República.

À luz dessas considerações, diante da ilegalidade e fragilidade da prova produzida pelo órgão de acusação, bem assim da acertada preocupação de nosso ordenamento jurídico-constitucional com a segurança jurídica em torno das sentenças proferidas em processos criminais, tendo erigido o princípio da presunção de inocência como cláusula pétrea, deve o réu Wagner ser absolvido da imputação sob apreciação, que não ficou devidamente comprovada.

Ademais, por oportuno, insta ressaltar, que não pode o Poder Judiciário admitir a prova ilícita e tampouco violações aos direitos fundamentais dos cidadãos por parte da polícia ou de quem quer que seja, sob pena de subversão velada do Estado Democrático de Direito e, pior ainda, sob pena de se ratificar e estimular a prática de ilegalidades na repressão aos crimes.

À luz dessas considerações, deve o réu Wagner ser absolvido, com base no art. 386, VII, do CPP.

Em face do exposto, JULGO IMPROCEDENTE A PRETENSÃO PUNITIVA DEDUZIDA NA DENÚNCIA, PARA ABSOLVER O RÉU WAGNER DA IMPUTAÇÃO QUE LHE É MOVIDA NOS AUTOS DO PROCESSO EM EPÍGRAFE COMO INCURSO NAS PENAS DO ART. 16 DA LEI Nº. 10.826/03, O QUE FAÇO COM ARRIMO NO ART. 386, VII, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL.

Sem custas.

Recolha-se imediatamente o mandado de prisão expedido em desfavor do acusado Wagner, devendo constar do ofício requisitório tanto o número do presente processo quanto o número dos autos em apenso, referentes ao recurso em sentido estrito interposto pelo MP.

Após o trânsito em julgado, anote-se, comunique-se, expeçam-se as diligências pertinentes à destruição de todos os objetos relacionados no auto de apreensão de fls. 57/58, dê-se baixa e arquive-se.

Publicada em mãos do responsável pelo expediente, registre-se e intimem-se.

Belford Roxo, 17 de julho de 2015.

ALFREDO JOSÉ MARINHO NETO

JUIZ DE DIREITO


[1] O Município de Belford Roxo integra a Região Metropolitana do Rio de Janeiro


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