Boate Kiss é condenada ao pagamento de indenização por danos morais a vítimas do incêndio ocorrido em Santa Maria/RS

23/09/2015

Por Redação - 23/09/2015

No dia 09 de setembro foi julgada a primeira ação cível referente ao incêndio ocorrido na Boate Kiss, no dia 27 de janeiro de 2013, em Santa Maria/RS. A decisão, proferida pela 1ª Vara Cível - Fazenda Pública, condenou a empresa responsável pela Boate ao pagamento de indenização por danos morais, no valor de R$ 20.000,00, para cada um dos autores. Por outro lado, julgou improcedente os pedidos em relação ao Município de Santa Maria e ao Estado do Rio Grande do Sul.

Segundo a sentença, restou amplamente caracterizado o dever de indenizar por parte da empresa, ante a falha na prestação do serviço. Havia superlotação na casa noturna, os extintores não funcionaram, havia somente 1 saída de emergência e a espuma de vedação acústica utilizada era inadequada e tóxica. Soma-se a tudo isso a responsabilidade da Boate em impedir a utilização de artefatos pirotécnicos no interior do local, os quais certamente exporiam os frequentadores a risco.

Ainda que a atitude de disparar o artefato tenha partido de um dos integrantes da Banda “Gurizada Fandangueira”, em se tratando de entidade privada, não há exclusão da responsabilidade por culpa exclusiva de terceiro, uma vez que o grupo foi contratado pela casa noturna. O ato ilícito, neste caso, configura fortuito interno, devendo a empresa responder pelos danos gerados, segundo a teoria do risco do empreendimento.

Entendimento diverso foi dado à responsabilização do Estado do Rio Grande do Sul (Corpo de Bombeiros) e do Município de Santa Maria. Ainda que tenha ocorrido, de fato, omissão do Poder Público, que deixou de fiscalizar as condições de funcionamento da empresa – nas quais havia flagrante descumprimento das normas de prevenção de incêndio, de lotação etc –, houve rompimento do nexo de causalidade diante do ato exclusivo e absolutamente independente de terceiro.

A causa juridicamente relevante para produção do resultado danoso foi a utilização do artefato pirotécnico pela Banda no interior do estabelecimento, que acarretou o incêndio do forro, o qual era constituído de material altamente inflamável e tóxico. Desta forma, segundo a decisão, ainda que o Poder Público tivesse promovido a fiscalização de forma eficiente e estivessem cumpridas todas as exigências legais, com todos os alvarás válidos, não haveria como se inferir que o incêndio não teria ocorrido ou que as proporções seriam reduzidas.

Dessa forma, tem-se que o Estado e o Município, falharam no seu dever de fiscalizar e eventualmente interditar a “Boate Kiss”, e que tal falha enseja responsabilidade política dos dois Entes, e também eventual responsabilidade administrativa e/ou penal dos agentes envolvidos – mormente se restar de fato demonstrada atuação doloso e/ou fraudulenta de algum servidor. Todavia, tal conduta dos Entes Públicos não gera dever de indenizar em razão da ausência de nexo de causalidade direto com o evento danoso, simplesmente porque terceiros agiram ativamente e com suas condutas deram causa ao resultado, logo, são esses terceiros que deverão arcar com as reparações respectivas.

Diante do ato exclusivo de terceiro, houve rompimento do nexo de causalidade entre o dano e as condutas dos agentes públicos municipais e estaduais, isento o Estado do Rio Grande do Sul e o Município de Santa Maria do dever de indenizar.

Entre os dias 09 e 11 de setembro, outras ações semelhantes fora julgadas pela 1ª Vara Cível Especializada em Fazenda Pública, todas mantendo o mesmo montante indenizatório - R$ 20.000,00 - às vítimas sobreviventes. Além disso, foi também proferida decisão nos autos do Processo n. 027/11300116765, com base nos mesmos fundamentos, a qual condenou solidariamente todos os sócios da Boate Kiss ao pagamento de indenização por danos morais aos pais de uma das vítimas fatais do incêndio, no valor de R$ 50.000,00 para cada um, totalizando R$ 100 mil reais para o casal.

Cumpre salientar que tramitam na Justiça do Rio Grande do Sul diversas outras ações cíveis individuais, bem como uma ação coletiva ajuizada pela Defensoria Pública estadual, as quais ainda aguardam julgamento.

Confira abaixo a íntegra da primeira decisão referente ao caso proferida pela Juíza de Direito Eloisa Helena Hernandez de Hernandez:


Comarca de Santa Maria

1ª Vara Cível Especializada em Fazenda Pública

Processo nº:  027/1.13.0005563-4 (CNJ:.0010923-91.2013.8.21.0027)
Natureza: Indenizatória
Autor: F. de S.F.; J.K.C.
Réu: Estado do Rio Grande do Sul; Municipio de Santa Maria; Santo Entretenimentos LTDA (Boate Kiss)
Juíza Prolatora: Dra. Eloisa Helena Hernandez de Hernandez
Data: 09/09/2015

 

I – RELATÓRIO.

 

F. de S.F. e J.K.C. ajuizaram a presente AÇÃO DE INDENIZAÇÃO contra SANTO ENTRETENIMENTOS LTDA ME, MUNICÍPIO DE SANTA MARIA E ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, pretendendo receberem indenização por danos morais, em quantia a ser arbitrada pelo Juízo. Estavam na “Boate Kiss” quando do incêndio ocorrido no dia 27/01/2013. Tal acontecimento causou-lhes considerável abalo psicológico. O regime de responsabilidade aplicável à ré Santo Entretenimentos é o objetivo, fundado no Código de Defesa do Consumidor, em razão da falha na prestação do serviço. A casa noturna estava superlotada, não havia saídas de emergência e o isolamento acústico não era do material recomendado. A responsabilidade dos Entes Públicos  decorre da conduta comissiva e omissiva de seus agentes. A conduta comissiva consubstancia-se na expedição de alvará de localização sem as condições necessárias para a segurança do público; a conduta omissiva diante da omissão do Corpo de Bombeiros e do Município em fiscalizarem de forma efetiva o estabelecimento. Requereram gratuidade de justiça. Juntaram documentos (fls. 19-53).

Deferida a gratuidade de justiça (fl. 58).

O MUNICÍPIO DE SANTA MARIA contestou nas fls. 281-309, alegando que a) não resta claro se a busca pela responsabilização da municipalidade se deve à suposta omissão ou à teórica concessão indevida de alvará de localização, o que importa para verificar qual modalidade de responsabilidade incide sobre o caso; b) inexistem elementos básicos comuns à responsabilidade objetiva e subjetiva, quais sejam, conduta lesiva (omissiva ou comissiva), nexo de causalidade e até mesmo dano, pois as mortes não podem ser enquadradas como “dano evitável” por parte do Poder Público; c) o Corpo de Bombeiros é o responsável pela emissão do alvará de prevenção contra incêndio e a autorização estava dentro do prazo de validade quando o Município realizou, em 19/04/2012, a vistoria necessária à expedição do alvará de localização; d) a municipalidade só poderia cessar as atividades da Boate por meio da cassação do referido alvará após provocação do Corpo de Bombeiros; e) os inquéritos instaurados para apurar as condutas do Prefeito e de servidores municipais foram arquivados a requerimento do Ministério Público, o que conduz à ausência de responsabilidade do Município; f) o dano ocorrido na Boate se deu por atos de terceiros: sócios da casa noturna, integrantes da Banda e do Corpo de Bombeiros e até das próprias vítimas, sendo que a jurisprudência reconhece a culpa concorrente em casos de embriaguez; g) em caso de procedência, devem ser fixadas as responsabilidades de acordo com o que era exigível de cada réu. Juntou documentos (fls. 310-328).

O ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL contestou (fls. 69-108), arguindo sua ilegitimidade passiva, pois a) não há nexo causal entre o agir estatal e o evento danoso, imputável ao músico da Banda Gurizada Fandangueira e ao proprietário da casa noturna; e b) o Município é competente para legislar sobre assuntos de interesse local e editou leis que permitem a emissão de licenças, fiscalização e interdição de estabelecimentos que não cumpram a legislação relativa ao combate a incêndios, sendo que a casa noturna não deveria estar em funcionamento em razão de alterações posteriores à concessão do alvará pelo Corpo de Bombeiros, situação que competia à municipalidade verificar. Defendeu, quanto ao mérito: a) o alvará de proteção e combate a incêndio (PPCI) foi regularmente concedido pelo Estado, pois o estabelecimento preenchia os requisitos legais quando da vistoria em 2011, tendo perdido a validade em razão das alterações feitas na casa noturna sem comunicação ao Corpo de Bombeiros; b) a fiscalização posterior à concessão do PPCI competia ao Município; c) a espuma foi inserida após a última vistoria dos bombeiros e inspeção do MP; d) ainda que houvesse falha no procedimento que levou à concessão do PPCI, disso não resultaria a responsabilização do Estado, pois, na data do ocorrido, não mais havia alvará em vigor; e) não há nexo entre a concessão do alvará, em 2011, e o incêndio; f) a competência fiscalizatória dos bombeiros somente se reinstala quando o interessado requer a renovação do alvará; i) não havia relação de consumo entre as vítimas e o Poder Público; g) não se pode afirmar que os consumidores tinham a expectativa de que o estabelecimento estaria seguro em razão do alvará concedido pelos bombeiros, pois a Boate funcionava, na data dos fatos, sem a chancela do Estado; sucessivamente, alegou que: a) eventual falha dos bombeiros foi mínima dentro da cadeia causal, razão pela qual, em havendo condenação do Estado, deve ser em percentual significativamente inferior àquele fixado em relação aos corréus. Juntou documentos (fls. 109-276).

SANTO ENTRETENIMENTOS LTDA ME, representada pelo sócio M.L.H., contestou nas fls. 339-350 (contestação em nome da pessoa jurídica conhecida no saneador das fls. 609-610), pretendendo a denunciação da lide aos causadores do incêndio. Sustentou que o evento danoso ocorreu em razão de ato exclusivo de terceiro – os músicos que adquiriram e utilizaram artefato pirotécnico no interior da boate. O dano moral exige comprovação de abalo psicológico considerável. Juntou documentos (fls. 352-413).

Réplica nas fls. 415-417.

Afastada a preliminar de ilegitimidade passiva do Estado, e indeferidas as denunciações da lide pretendidas (fls. 609-610).

As partes não requereram a produção de outras provas.

Ministério Público declinou de intervir (fl. 613).

II – FUNDAMENTAÇÃO.

As preliminares já foram analisadas e afastadas em saneador.

Acrescento que está devidamente comprovada a qualidade de cessionário de quotas sociais da Santo Entretenimentos de M.L.H. (cessão essa plenamente válida, embora não levada a registro), o que lhe qualifica para receber citação em nome da empresa. A qualidade de sócio de M. já foi reconhecida nos autos da Ação Coletiva 027/1.13.0004136-6, na Cautelar 027/1.13.0001249-8 e também no Inquérito Policial que apurou o incêndio, o  qual concluiu pelo indiciamento de M. na qualidade de sócia da sociedade empresária.

Registro a citação da Santo Entretenimentos em outros processos em trâmite nesta Vara, tem se mostrado dificultosa, pois as sócias registrais Â. e M. não vêm sendo encontradas em seu último endereço na cidade de Taquara informado – a informação é de que o imóvel onde residiam incendiou na véspera da Páscoa de 2.015. E.C.S. (K.), que não figura como sócio formal,  mas é público e notório que atuava na administração da casa noturna, não tem endereço conhecido.

Tal dificuldade em se localizar as sócias registrais ratifica a validade da citação dirigida ao cessionário das quotas.

Dito isso, o mérito comporta pronta análise.

Os réus estão sujeitos a regramentos de responsabilidade diversos, e por isso a análise será de forma particularizada.

O evento danoso, incêndio ocorrido na madrugada do dia 27 de Janeiro de 2.013, suas causas e consequências, dispensam maiores digressões porque sua grandiosidade fez com que se tornasse de conhecimento geral.

A responsabilidade da Santo Entretenimentos LTDA, pessoa jurídica que mantinha a “Boate Kiss”, está plenamente configurada.

Trata-se de responsabilidade objetiva, pois a relação havida com os atingidos pelo evento é de consumo, o que atrai a disposição do art. 14 do CDC e dispensa a comprovação de culpa ou dolo:

Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.

§ 1° O serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais:

I - o modo de seu fornecimento;

II - o resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperam;

III - a época em que foi fornecido.

§ 2º O serviço não é considerado defeituoso pela adoção de novas técnicas.

§ 3° O fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar:

I - que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste;

II - a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro. [...]

A falha na prestação do serviço é evidente, diante da magnitude do evento danoso. Há elementos suficientes a indicar que havia superlotação na casa noturna (somados somente o número de vítimas fatais, 241, e o número de feridos, 623, tem-se 864 pessoas, o que já extrapola o limite de lotação, que era 691 pessoas), que os extintores não funcionaram, que havia uma única saída de emergência, e que a espuma de vedação acústica utilizada era inadequada.

Além disso, a casa noturna era responsável por impedir a utilização de artefatos pirotécnicos que colocassem seus frequentadores em risco no interior do estabelecimento, mas, ao contrário, permitiu tal utilização, sem respeitar as indicações técnicas do fornecedor.

Por se tratar de pessoa privada, não se isenta da responsabilidade por ser culpa exclusiva de terceiro. Além de a Banda ter sido contratada pela própria empresa para aumentar a atratividade da festa, pode-se classificar o ato ilícito de seus integrantes como fortuito interno, intimamente ligado ao serviço prestado.

Tal raciocínio é o mesmo aplicável às instituições financeiras, que respondem por eventuais fraudes mesmo que praticadas exclusivamente por terceiros. Como exemplo, tem-se o julgamento do TJ/RS no Ap. Cível nº 70065544660.

É fato que os autores estiveram presentes ao infortúnio. Ninguém duvidou de sua presença, que foi, além disso, confirmada pelo documento de controle do consumo na Boate (comanda), trazido na fl. 25, e pelas reportagens jornalísticas das fls. 37 e ss, nas quais os autores narraram o ocorrido

As dimensões do evento - uma tragédia com peculiaridades horripilantes -, acarretaram dores e traumas indiscutíveis a todos que dele participaram direta ou indiretamente. Embora a verdadeira “Justiça” seja impossível de ser alcançada dada à abrangência dos danos, é possível minorá-los por meio da indenização monetária, cujo valor também não será “o justo”, mas sim o viável.

Para o quantum indenizatório levo em conta que os autores não sofreram sequelas físicas e as dores emocionais foram parcialmente abrandadas pelo tratamento psicológico fornecido pelo Estado. O autor F. era, ao tempo da ocorrência do dano, estudante, e não possuía renda própria; já o autor J. demonstrou possuir renda de cerca de R$1.500,00 mensais. Em contrapartida, a Santo Entretenimentos, casa noturna de pequeno porte, que se extinguiu após o incêndio, não possui bens imóveis (o prédio onde funcionava a “Boate Kiss” era alugado) e, certamente, também não possui dinheiro armazenado. A magnitude do evento danoso e o número de atingidos diretos e indiretos faz presumir que a pessoa jurídica não terá verba suficiente para pagar grandes valores indenizatórios para todas as vítimas. Nem mesmo ocorrendo a desconsideração da personalidade jurídica se vislumbra tal amplitude indenizatória.

Postos esses parâmetros, fixo a indenização por danos morais em R$20.000,00 para cada um dos autores.

Por outro lado, no que se refere aos Entes Públicos, a tese trazida pela parte autora atribui-lhes ação e omissão, sem as quais o resultado danoso não teria ocorrido. Diz que a conduta comissiva do Município está configurada na expedição de alvará de localização sem as condições necessárias para a segurança do público. Estado (Corpo de Bombeiros) e Município foram omissos porque deixaram de fiscalizar o dia-a-dia do funcionamento da casa noturna de forma que permitiram o atendimento ao público sem que cumprissem as regras de prevenção de incêndio, de lotação e tudo o mais que a tornaram vulnerável.

Porém, juridicamente, para que exsurja o dever de indenizar em ambos os regimes, seja objetivo (por ação do agente público - art. 37, §6º da Constituição Federal) ou subjetivo (por omissão na prestação do serviço) é imprescindível o nexo de causalidade, além do ato ilícito e do dano. No regime subjetivo, além disso, há de se comprovar também o dolo ou culpa.

No caso dos autos, independentemente de qual o regime analisado (ação ou omissão), está ausente o nexo de causalidade, o que afasta o dever de indenizar por parte dos Entes Públicos.

Restou demonstrado que houve omissão do Poder Público em permitir o funcionamento da Boate, que não seguia o estabelecido pelo plano de prevenção e proteção contra incêndio, superlotada, sem equipamentos necessários (principalmente extintores válidos). Apesar disso, tais circunstâncias, para fins de responsabilização civil, são causas que não se mostram relevantes juridicamente para produção do resultado danoso.

A “Boate Kiss” foi vistoriada pelo Corpo de Bombeiros em agosto de 2011 e teve alvará de prevenção e proteção contra incêndio expedido com validade até 18 de agosto de 2012. O procedimento para expedição de tal autorização pauta-se na Lei Estadual 10.987/1997, Decretos Estaduais 37.380/1997 e 38.273/1998 e normas internas do próprio Corpo de Bombeiros. Há, por ora, mera cogitação de que houve fraude na expedição de tal alvará por parte de alguns militares estaduais – que chegaram a ser denunciados criminalmente pelo Ministério Público na Justiça Militar e são alvos de ação de improbidade administrativa nesta Justiça Comum; nenhuma das ações possui condenação definitiva. E, note-se que, mesmo havendo responsabilização criminal e/ou administrativa dos agentes públicos, tal circunstância não levará ao reconhecimento do dever de indenizar do Estado e Município.

Após a expedição do alvará de prevenção contra incêndio, foi expedido pelo Município, que vistoriou a boate em 19/04/2012, o alvará de localização, que permite o funcionamento do estabelecimento. À época, portanto, o alvará de prevenção e proteção contra incêndio, que é requisito para a expedição do alvará de localização, era plenamente válido.

No entanto, após tal data, houve alterações estruturais no estabelecimento que tornaram o anterior alvará de prevenção e proteção contra incêndio inválido – tal advertência, aliás, constava no alvará expedido pelo Corpo de Bombeiros. Conforme constatou o laudo do Instituto Geral de Perícias realizado após o incêndio, a situação da boate não guarda conformidade com aquela verificada pelo Corpo de Bombeiros em 2011: houve alterações de características construtivas; layout e distâncias a percorrer. Não obstante, o alvará de prevenção teve sua validade expirada em agosto de 2012, portanto cinco meses antes do incêndio.

Diante dessa situação irregular, incumbia sim ao Município, ao contrário do que alega, ter exercido o seu poder de polícia e fiscalizado o estabelecimento, exigindo a sua adequação. Tal dever decorre de previsões da Constituição Federal, da Constituição Estadual, da Lei Orgânica do Município e de legislação esparsa.

A Constituição da República, em seu art. 30, V, concede aos municípios competência para prestar os serviços públicos de interesse local. A Constituição do Estado do Rio Grande do Sul, por seu turno, detalha, em seu artigo 13, tal competência, dispondo:

Art. 13. É competência do Município, além da prevista na Constituição Federal e ressalvada a do Estado:

I - exercer o poder de polícia administrativa nas matérias de interesse local, tais como proteção à saúde, aí incluídas a vigilância e a fiscalização sanitárias, e proteção ao meio-ambiente, ao sossego, à higiene e à funcionalidade, bem como dispor sobre as penalidades por infração às leis e regulamentos locais;

II - dispor sobre o horário e dias de funcionamento do comércio local e de eventos comerciais temporários de natureza econômica; (Redação dada pela Emenda Constitucional n.º 58, de 31/03/10)

[...]

Já a Lei Orgânica do Município de Santa Maria dispõe:

Art. 9º - Compete ao Município, no exercício de sua autonomia, dentre outras, as seguintes atribuições:

[...]

XVIII - *Conceder e cassar os alvarás de licença dos estabelecimentos que, por suas atividades, se tornarem danosos à saúde, à higiene, ao sossego, à segurança, ao meio ambiente, ao bem-estar público ou aos bons costumes; *Redação original alterada pela Emenda 23, em 23/03/2004.

[…]

XXVII - regulamentar e fiscalizar os jogos esportivos, os espetáculos e os divertimentos públicos;

[...]

XXXIX - *Licenciar para funcionamento os estabelecimentos comerciais,industriais, de serviços e similares, mediante a expedição de alvará de localização; *Incluído pela Emenda 23, em 23/03/2004.

XL - *Suspender ou caçar o alvará de localização de estabelecimento que infringir dispositivos legais; * Incluído pela emenda 23, em 23/03/2004. sic

[...]

O Código de Posturas do Município também estabelece as precauções para evitar incêndios nas casas de diversões públicas, incumbindo ao Poder Público Municipal a fiscalização do cumprimento das medidas:

Art. 41. Em todas as casas de diversões públicas e similares serão observadas, além das estabelecidas nos Códigos de Obras, Meio Ambiente e das previstas nas normas de prevenção a incêndio, as seguintes disposições: [...]

IV - Serão tomadas todas as precauções necessárias para evitar incêndios; para tanto, os extintores de fogo serão obrigatórios e instalados em locais visíveis e de fácil acesso, cumprindo exigências da Lei Municipal No 3301/91 e as normas técnicas atinentes;

Art. 285. A fiscalização do disposto nesta Lei será efetuada pela fiscalização do Poder Público Municipal.

Tal incumbência do Município em fiscalizar os sistemas de prevenção contra incêndio nos prédios da cidade vem também repetidas nos artigos 1º, 2º e 3º da Lei Municipal 3.301/1991.

Além disso, o Município, em contestação, invoca o art. 17, I, do Decreto Executivo Municipal 32/2006 para sustentar que o Corpo de Bombeiros é que deveria ter comunicado a nulidade do alvará de prevenção de proteção contra incêndio, em razão das alterações estruturais feitas pela “Boate Kiss”, bem como o seu vencimento, a fim de que fosse possível a suspensão do alvará de localização.

Ocorre que o mesmo artigo 17 invocado, em seu inciso IV, dispõe expressamente que o alvará de localização deve ser cassado pela própria Fiscalização Municipal, no regular exercício de seu poder de polícia:

Art. 17. O Alvará de Localização deverá ser cassado nos seguintes casos: […]

IV – Pela Fiscalização Municipal, no regular exercício do Poder de Polícia, como medida preventiva, a bem da higiene, do sossego e da segurança pública; […].

Nesse sentido, o TJ/RS já firmou jurisprudência de que o Município possui competência para, no interesse local, legislar sobre prevenção e proteção contra incêndio de prédios localizados na sua circunscrição, mesmo que eventual legislação traga requisitos diversos daqueles positivados em Lei Estadual. E esse exercício legislativo do Município obriga inclusive os demais Entes Federativos – i.e. prédios públicos pertencentes ao Estado ou à União devem observar a legislação municipal de segurança:

AÇÃO CIVIL PÚBLICA. OBRIGAÇÃO DE FAZER. PRETENSÃO DE QUE O ESTADO OBEDEÇA À NORMA MUNICIPAL, CUMPRINDO NORMA DE PREVENÇÃO E PROTEÇÃO CONTRA INCÊNDIO NAS ESCOLAS MUNICIPAIS. COMPETÊNCIA DO MUNICÍPIO. CABIMENTO. O município tem competência para legislar supletivamente sobre segurança urbana, criando normas de prevenção e proteção contra incêndio, não estando os demais entes públicos desobrigados de obedecer aos comandos da norma municipal, em virtude de que não foram excluídos de sua incidência. A segurança dos munícipes insere-se no conceito de interesse local, assegurado pelo art. 30, I, da CF. Fixação de prazo para o cumprimento da norma, com procedência parcial da ação, apenas em relação ao município que dispõe de norma municipal disciplinadora. Apelação parcialmente provida. (Apelação Cível Nº 70004695797, TJ/RS, Relator: Carlos Eduardo Zietlow Duro, Em 20/11/2002).

O Município tinha o poder-dever de fiscalizar a casa noturna e exigir a sua adequação às normas, e  o Corpo de Bombeiros também possuía tal obrigação, ao contrário do que o Estado sustenta em sua contestação.

Isso porque a Lei Estadual nº 10.987/1997, que estabelece as normas gerais sobre prevenção e proteção contra incêndio, expressamente concede ao Corpo de Bombeiros poder para interditar estabelecimentos:

Art. 1º - Todos os prédios com instalações comerciais, industriais, de diversões públicas e edifícios residenciais com mais de uma economia e mais de um pavimento, deverão possuir plano de prevenção e proteção contra incêndio, aprovado pelo Corpo de Bombeiros da Brigada Militar do Estado do Rio Grande do Sul.

Parágrafo 1º - O Corpo de Bombeiros, nos municípios em que possua destacamento, realizará inspeção anual nos prédios considerados de risco grande e médio e a cada dois anos nos prédios considerados de risco pequeno.

[…]

Art. 2º - Aquele que não apresentar plano de prevenção e proteção contra incêndio, descumprir os prazos assinalados para a instalação dos itens de segurança julgados necessários ou instalá-los em desconformidade com as especificações oficiais incorrerá nas seguintes sanções:

I - advertência;

II - multa;

III – interdição;

[…]

Parágrafo 5º - Os prédios que oferecerem risco de vida aos seus usuários ou transeuntes, por apresentarem elevada probabilidade de incêndio ou desabamento, e aqueles tornados perigosos pela ausência de itens mínimos de segurança contra incêndios poderão ter sua evacuação ou interdição determinada pelo Corpo de Bombeiros.

Tal previsão é repetida na Lei Estadual nº 10.991/97, em seu art. 3º, VI e XI, e também nos artigos 3º e 4º do Decreto Estadual 37.380/1997.

Ora, é óbvio que o simples fato de a legislação municipal prever idêntico poder de interdição ao Município não invalida ou se sobrepõe à previsão da legislação estadual. Não há óbice algum a que duas das esferas da Administração Pública atuem conjuntamente na fiscalização de determinada questão – tal prática, aliás, é bastante comum, por exemplo, em questões de defesa ambiental e de proteção ao patrimônio histórico e cultural.

Dessa forma, tem-se que o Estado e o Município, falharam no seu dever de fiscalizar e eventualmente interditar a “Boate Kiss”, e que tal falha enseja responsabilidade política dos dois Entes, e também eventual responsabilidade administrativa e/ou penal dos agentes envolvidos – mormente se restar de fato demonstrada atuação doloso e/ou fraudulenta de algum servidor. Todavia, tal conduta dos Entes Públicos não gera dever de indenizar em razão da ausência de nexo de causalidade direto com o evento danoso, simplesmente porque terceiros agiram ativamente e com suas condutas deram causa ao resultado, logo, são esses terceiros que deverão arcar com as reparações respectivas.

O Poder Público, mesmo nas atividades sujeitas a sua fiscalização direta, não é garantidor universal. O incêndio ocorreu em um estabelecimento privado, e não público. A falha na prestação do serviço, pela pessoa jurídica responsável pelo estabelecimento de diversão noturna, não pode ser imputada a Estado ou a Município.

O nexo de causalidade entre dano e determinada conduta não pode regredir ao infinito, responsabilizando-se agentes que tenham praticado atos cuja relação com o evento é remota.

O incêndio na “Boate Kiss”, como restou demonstrado pelo Inquérito Policial que apurou o caso, iniciou em razão de uma centelha de um fogo de artifício utilizado pela “Banda Gurizada Fandangueira”, prestadora de serviço contratada e atuando sob a responsabilidade do estabelecimento comercial.

O produtor da banda, L.A.B.L., adquiriu o fogo de artifício e instalou o artefato em uma luva colocada na mão do vocalista da banda, M. de J. dos S.. O artefato foi então acionado pelo produtor, por controle remoto, e o vocalista, ao levantar a mão em direção ao teto, fez com que uma centelha atingisse o forro, que possuía isolamento acústico de material altamente inflamável. Em poucos segundos o forro incendiou, gerando uma fumaça preta e tóxica que intoxicou os presentes.

Essa é a causa juridicamente relevante para o evento danoso, que não guarda relação alguma com anterior conduta seja do Estado, seja do Município.

Tal ato, exclusivo de terceiro, rompeu, por evidente, o nexo de causalidade entre o dano e as anteriores condutas omissivas – ou até eventuais condutas comissivas – dos agentes públicos estaduais e municipais. Tal rompimento do nexo de causalidade afasta o dever de indenizar.

O Superior Tribunal de Justiça já teve a oportunidade de analisar caso praticamente idêntico ao incêndio na “Boate Kiss”. Trata-se do incêndio, também com resultado morte, ocorrido em 2001 na casa de shows denominada “Canecão Mineiro”, localizada em Belo Horizonte/MG.

No processo que chegou para a análise, via Recurso Especial, ao STJ, também havia pedido de condenação do Município ao pagamento de indenização a uma das vítimas. Reconheceu-se nos autos que a) o estabelecimento estava superlotado; b) funcionava sem os alvarás necessários do Poder Público; c) houve fiscalização deficiente do Poder Público; d) o incêndio iniciou em razão de show pirotécnico promovido dentro do estabelecimento. As semelhanças com o incêndio ocorrido em Santa Maria/RS são patentes, portanto.

Diante de tal quadro, o STJ definiu não haver responsabilidade, e portanto dever de indenizar, do Município de Belo Horizonte, justamente em razão da prática de ato exclusivo de terceiro (show pirotécnico), o que rompe o nexo de causalidade.

PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. INCÊNDIO NO INTERIOR DE ESTABELECIMENTO DE CASA DESTINADA A "SHOWS". DESAFIO AO ÓBICE DA SÚMULA 07/STJ. AUSÊNCIA DE NEXO DE CAUSALIDADE ENTRE A OMISSÃO ESTATAL E O DANO - INCÊNDIO -. CULPA DE TERCEIROS. PREJUDICADA A ANÁLISE DO CHAMAMENTO DO PROCESSO.

1. Ação indenizatória em face de Município, em razão de incêndio em estabelecimento de casa destinada a shows, ocasionando danos morais, materiais e estéticos ao autor. [...]

4. A jurisprudência desta Corte tem se posicionado no sentido de que em se tratando de conduta omissiva do Estado a responsabilidade é subjetiva e, neste caso, deve ser discutida a culpa estatal. Este entendimento cinge-se no fato de que na hipótese de Responsabilidade Subjetiva do Estado, mais especificamente, por omissão do Poder Público o que depende é a comprovação da inércia na prestação do serviço público, sendo imprescindível a demonstração do mau funcionamento do serviço, para que seja configurada a responsabilidade. Diversa é a circunstância em que se configura a responsabilidade objetiva do Estado, em que o dever de indenizar decorre do nexo causal entre o ato administrativo e o prejuízo causado ao particular, que prescinde da apreciação dos elementos subjetivos (dolo e culpa estatal), posto que referidos vícios na manifestação da vontade dizem respeito, apenas, ao eventual direito de regresso. Precedentes: (REsp 721439/RJ; DJ 31.08.2007; REsp 471606/SP; DJ 14.08.2007; REsp 647.493/SC; DJ 22.10.2007; REsp 893.441/RJ, DJ 08.03.2007; REsp 549812/CE; DJ 31.05.2004) [...]

7. Deveras, em se tratando de responsabilidade subjetiva, além da perquirição da culpa do agente há de se verificar, assim como na responsabilidade objetiva, o nexo de causalidade entre a ação estatal comissiva ou omissiva e o dano. A doutrina, sob este enfoque preconiza: "Se ninguém pode responder por um resultado a que não tenha dado causa, ganham especial relevo as causas de exclusão do nexo causal, também chamadas de exclusão de responsabilidade. É que, não raro, pessoas que estavam jungidas a determinados deveres jurídicos são chamadas a responder por eventos a que apenas aparentemente deram causa, pois, quando examinada tecnicamente a relação de causalidade, constata-se que o dano decorreu efetivamente de outra causa, ou de circunstância que as impedia de cumprir a obrigação a que estavam vinculadas. E, como diziam os antigos, 'ad impossibilia nemo tenetur'. Se o comportamento devido, no caso concreto, não foi possível, não se pode dizer que o dever foi violado.(...)" (pág. 63). E mais: "(...) é preciso distinguir 'omissão genéria' do Estado e 'omissão específica'(...) Haverá omissão específica quando o Estado, por omissão sua, crie a situação propícia para a ocorrência do evento em situação em que tinha o dever de agir para impedi-lo. Assim, por exemplo, se o motorista embrigado atropela e mata pedestre que estava na beira da estrada, a Administração (entidade de trânsito) não poderá ser responsabilizada pelo fato de estar esse motorista ao volante sem condições. Isso seria responsabilizar a Administração por omissão genérica. Mas se esse motorista, momentos antes, passou por uma patrulha rodoviária, teve o veículo parado, mas os policiais, por alguma razão, deixaram-no prosseguir viagem, aí já haverá omissão específica que se erige em causa adequada do não-impedimento do resultado. Nesse segundo caso haverá responsabilidade objetiva do Estado.(...)" (pág. 231) (Sérgio Cavalieri Filho, in "Programa de Responsabilidade Civil", 7ª Edição, Editora Atlas).

8. In casu, o dano ocorrido, qual seja o incêndio em casa de shows, não revela nexo de causalidade entre a suposta omissão do Estado. Porquanto, a causa dos danos foi o show pirotécnico, realizado pela banda de música em ambiente e local inadequados para a realização, o que não enseja responsabilidade ao Município cujas exigências prévias ao evento não foram insuficientes ou inadequadas, ou na omissão de alguma providência que se traduza como causa eficiente e necessária do resultado danoso.

9. Neste sentido, bem preconizou a sentença a quo: "em face dos elementos carreados aos autos, verifica-se que a causa do incêndio foram as fagulhas provocadas pelo show pirotécnico dentro do estabelecimento, evidentemente promovido e autorizado pelos seus administradores que não observaram, devidamente, o aviso do fabricante, estampado na caixa dos fogos para soltá-los em local amplo e aberto, ou seja, ao ar livre 'sendo desaconselhável seu uso perto de produtos inflamáveis'. f. 151. Diante disto, não restaram dúvidas que o ato culposo foi praticado por terceiros que, de forma inescrupulosa decidiram promover o show pirotécnico, sem qualquer zelo com as 1.500 pessoas que superlotaram aquela casa noturna, não obstante terem conhecimento possuía capacidade para 270 pessoas." (fl. 329)

10. O contexto delineado nos autos revela que o evento danoso não decorreu de atividade eminentemente estatal, ao revés, de ato de particulares estranhos à lide. […] (RESP 888.420 – MG. Superior Tribunal de Justiça. Relator Min. Luiz Fux. Julgado em 07/05/2009).

Em âmbito local, o TJ/RS já firmou jurisprudência no sentido de que, mesmo que o Estado possua o dever de fiscalizar a condução de veículos de via terrestre, não possui o dever de indenizar eventual dano causado por motorista que dirige, em razão de fiscalização ineficiente, sem habilitação, justamente por haver rompimento do nexo de causalidade:

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE REPARAÇÃO DE DANOS MATERIAIS E MORAIS. ATROPELAMENTO POR CONDUTOR NÃO HABILITADO. PRETENSÃO À RESPONSABILIZAÇÃO DO ESTADO. INEXISTÊNCIA DE NEXO CAUSAL. Tratando-se de ato imputado ao Estado por falha do serviço, o dever de indenizar deve ser analisado sob o prisma da teoria subjetiva, sendo imprescindível a demonstração de uma conduta dolosa ou culposa por parte do agente público. O fato de o autor ter sido vítima de atropelamento por condutor de veículo não habilitado não enseja responsabilidade do Estado, por suposta falta de fiscalização e policiamento. Inexistência de liame causal entre a ação estatal e ocorrência do evento danoso. Fato de terceiro que elide o dever de indenizar. Impossibilidade de se atribuir ao Estado o dever de segurador universal, para coibir todas as práticas ilícitas ocorridas no âmbito de sua circunscrição territorial. Sentença de improcedência mantida. APELAÇÃO DESPROVIDA. (Apelação Cível Nº 70059640268, Décima Câmara Cível, TJ/RS, Relator: Paulo Roberto Lessa Franz, Em 26/03/2015)

Também já se posicionou a Corte Local no sentido de inexistir dever de indenizar do Município por falha no dever de fiscalização de estabelecimento que explorava prostituição infantil.

APELAÇÃO CÍVEL. ECA. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL QUE PROMOVIA EXPLORAÇÃO SEXUAL DE ADOLESCENTES. ALEGAÇÃO DE OMISSÃO DO MUNICÍPIO NO DEVER DE FISCALIZAÇÃO. RESPONSABILIDADE SUBJETIVA DO ESTADO. NECESSIDADE DE DEMONSTRAÇÃO DA CULPA DO PODER PÚBLICO. NEGLIGÊNCIA ADMINISTRATIVA NÃO CARACTERIZADA. MUNICÍPIO QUE EFETUOU DIVERSAS FISCALIZAÇÕES NO ESTABELECIMENTO DEMANDADO EM CURTO PERÍODO DE TEMPO. DESCABIMENTO DA CONDENAÇÃO DO ENTE PÚBLICO AO PAGAMENTO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS COLETIVOS. 1. De acordo com o entendimento emanado dos Tribunais Superiores, tratando-se de responsabilidade do Estado por omissão, não se aplica o disposto no § 6º do art. 37 da Constituição Federal, esteio normativo da responsabilidade objetiva da Administração Pública, devendo se perquirir e comprovar a ocorrência de culpa por parte do Poder Público. 2. Na espécie, não restou demonstrada a negligência administrativa do ente público municipal, que efetuou diversas fiscalizações no estabelecimento demandado em curto período de tempo, de modo que não se pode atribuir à municipalidade a responsabilidade pela conduta dos demais requeridos, que praticavam a exploração sexual de adolescentes no estabelecimento, que possuía alvará para funcionamento de atividades de bar noturno. Desse modo, ausente um dos requisitos necessários para a responsabilização do Estado por omissão - a demonstração da culpa -, é descabida a sua condenação ao pagamento de indenização por danos morais coletivos. DERAM PROVIMENTO. UNÂNIME. (Apelação Cível Nº 70058146531, TJ/RS, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Em 24/04/2014)

Esses dois últimos casos referidos, embora com menos consequências danosas do que o incêndio ocorrido na “Boate Kiss”, refletem o mesmo entendimento jurídico no sentido de que, mesmo que haja falha na fiscalização de incumbência do Poder Público, não há nexo de causalidade quando o dano é ocasionado por ato exclusivo e absolutamente independente de terceiro.

Caso não prevalecesse tal entendimento, aliás, o Poder Público converter-se-ia em reparador da quase totalidade dos danos ocorridos, por exemplo, no mercado de consumo. É que o Estado (lato sensu) tem o dever de zelar pela segurança de todo e qualquer produto ou serviço colocado à disposição dos consumidores, de modo que eventual fiscalização ineficiente poderia levar à obrigação estatal de reparar quaisquer danos ocasionados por falhas nesses produtos ou serviços.

Além do já até aqui referido, a irrelevância jurídica da conduta omissa da Administração Pública pode ser comprovada pelo seguinte exercício de lógica: mesmo que tivesse havido fiscalização eficiente, mesmo que a “Boate Kiss” funcionasse com todos os alvarás válidos e cumprisse todas as exigências legais, não há garantia alguma de que o incêndio não teria acontecido, e nem que teria menores proporções. Por outro lado, há certeza absoluta de que se não tivesse sido utilizado o artefato pirotécnico pela banda dentro do estabelecimento de diversão o evento fatídico não teria ocorrido.

Dito isso, reconhecida a culpa exclusiva de terceiros, há rompimento do nexo de causalidade entre o dano e a falha na fiscalização promovida pelo Poder Público.

Ressalto que, embora o dever de reparar o dano não seja juridicamente atribuído aos Entes Públicos, o fato é que os cofres públicos  contribuíram, e continuarão por muito tempo contribuindo com grande parte do custo para minimizar as sequelas do sinistro. A começar pelo atendimento inicial às vítimas, ocasião em se mostraram eficientes,  superaram a falta de recursos financeiros e somaram forças prestando socorro eficiente. Foram incansáveis no atendimento, inclusive psicológico. Formaram uma corrente, contando com total solidariedade da população que não mediu esforços para tentar diminuir o sofrimento das vítimas e familiares. Os atingidos receberam pronta assistência médica, medicamentosa, internações hospitalares e tratamento psicológico.

III – DISPOSITIVO.

JULGO PARCIALMENTE PROCEDENTE a presente AÇÃO INDENIZATÓRIA movida por F. de S.F. e J.K.C., a fim de condenar SANTO ENTRETENIMENTOS LTDA ME ao pagamento de indenização por danos morais fixada em R$20.000,00 para cada um dos autores. Os valores serão corrigidos pelo IGP-M desde a data da sentença, e terão incidência de juros de 1% ao mês desde a citação.

JULGO IMPROCEDENTES os pedidos em relação ao MUNICÍPIO DE SANTA MARIA e ao ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL.

Condeno a parte autora ao pagamento de 60% das custas processuais e honorários aos procuradores do Município e Estado fixados em R$2.000,00 para cada um. Suspensa a exigibilidade em razão da gratuidade de justiça já deferida. Condeno a Santo Entretenimentos ao pagamento de 40% das custas processuais e honorários ao procurador da autora fixados em 10% do valor atualizado da condenação. Suspensa a exigibilidade em razão da gratuidade de justiça ora deferida, já que a empresa encontra-se com o seu patrimônio todo bloqueado.

Publique-se.

Registre-se.

Intimem-se.

Recebo eventuais apelações tempestivamente interpostas, sem que isso signifique “delegação de Juízo de admissibilidade”. Não está presente a hipótese do §1º do art. 518 do CPC. O prazo de interposição será conferido pelo servidor, utilizando a ferramenta disponibilizada na intranet pela Corregedoria-Geral da Justiça, e o efeito será devolutivo e suspensivo (artigo 520 do CPC). O serviço cartorário diligenciará os demais atos (contrarrazões, preparo, intimação do MP) até remessa à superior instância. A formalidade estabelecida pelo CPC se mostra sem respaldo na prática da condução célere processual, acarretando morosidade sem causa.

Sentença não sujeita a reexame necessário. Com o trânsito, arquive-se.

Santa Maria, 09 de setembro de 2015.

Eloisa Helena Hernandez de Hernandez,

Juíza de Direito


Fonte: http://www.tjrs.jus.br/site/imprensa/noticias/?idNoticia=283756


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