O Juiz de Direito Daniel R. Surdi de Avelar, de Curitiba, conforme decisão abaixo, não recebeu o recurso interposto pelo Ministério Público que, durante o julgamento em plenário pediu a absolvição e, depois de condenado pelo Júri, interpôs recurso para majorar a pena.
Em brilhante fundamentação o magistrado demonstra a ausência de interesse do Ministério Público que demonstra uma certa "bipolaridade interpretativa", não recebendo o recurso, por via de consequência.
Segue a íntegra do decisum.
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Vistos, etc.
O acusado P.H.C. da S. foi submetido a julgamento pelo Tribunal do Júri em 14/04/2015.
Consoante se infere da ata lavrada às fls. 770/771, na oportunidade o Ministério Público requereu a absolvição do acusado.
Não obstante a tese sustentada pelo parquet, os senhores jurados optaram por condenar o réu como incurso nas sanções do artigo 121, caput, c.c. art. 14, inc. II, ambos do Código Penal.
Ao acusado foi fixada a pena privativa de liberdade de 04 (quatro) anos de reclusão, sendo determinada na sentença que os autos voltassem conclusos após o trânsito em julgado da decisão para análise da prescrição.
À fl. 774, o Ministério Público interpôs recurso de apelação com fundamento no artigo 593, inciso III, alínea “c”, do Código Penal.
DECIDO.
Como cediço, os recursos estão sujeitos a um juízo prévio de admissibilidade, onde deve ser avaliada a presença dos pressupostos para a impugnação.
No caso dos autos, verifico que o mesmo representante ministerial que inicialmente postulou a absolvição do acusado agora pretende o reparo da decisão condenatória em relação à reprimenda privativa de liberdade que lhe fora fixada em face de sua condenação.
Ademais, sendo certo que a pena privativa de liberdade imposta – 4 (quatro) anos – encontra-se prescrita, forçoso concluir que a insurgência do parquet pretende a elevação deste quantum, buscando agora a responsabilização do acusado.
Assim, muito embora o recurso seja, em tese, cabível, tempestivo e esteja adequado do ponto de vista formal, bem como a parte seja legítima para a interposição, entendo que o requisito do interesse recursal não se encontra preenchido.
Com efeito, conforme a lição de Aury LOPES JR. [1], o interesse recursal significa que “deve existir um gravame gerado pela decisão impugnada”. E o autor vai adiante destacando que:
“(...) todo recurso supõe, como fundamento jurídico, a existência de um gravame (prejuízo) para a parte recorrente, isto é, uma diferença injustificada (na perspectiva de quem recorre, é claro), desfavorável para ela, entre a sua pretensão (ou resistência, no caso do réu) e o que foi reconhecido e concedido na sentença impugnada”.
Segundo a lição de BADARÓ:
“O interesse recursal normalmente é identificado com a sucumbência, sob uma ótica retrospectiva, isto é, o que se perdeu com a decisão. Todavia, o interesse deve ser analisado a partir de uma ótica prospectiva: o que se pode vir a ganhar com a futura decisão [2]”.
Não resta dúvida de que o Ministério Público é sucumbente, eis que pretendia a absolvição do acusado e os jurados acabaram por condená-lo.
Ocorre que analisando prospectivamente a pretensão recursal do parquet, nos termos do que dispõe a Súmula 713 do STF [3] e o caráter vinculante da apelação ofertada contra as decisões do Tribunal do Júri, é fácil notar que a busca pela absolvição do acusado nem de longe foi o que motivou sua insurgência, que vem lastreada na alínea “c”, do inciso III, do artigo 593, do CPP, ou seja, o que se pretende com a apelação interposta é a reforma (para pior, conforme já destacado anteriormente) da decisão no tocante à aplicação da pena imposta ao acusado.
Assim, entendo que o órgão ministerial, ao manejar o recurso de apelação com base no fundamento ora invocado carece de interesse, pois, distanciou-se de sua expectativa inicial que era ver cessada a pretensão acusatória contra o acusado com o pedido de absolvição formulado por ocasião do julgamento.
A essência do processo penal está relacionada à ideia de satisfação de uma pretensão (Guasp), qual seja, o desejo de subordinar o interesse do acusado de preservar sua liberdade ao interesse estatal de exercer a persecução criminal e alcançar a punição.
Quando o Ministério Público oferece a denúncia, ele materializa uma pretensão por meio de uma declaração petitória (Guasp) ou afirmação (Leo Rosenberg) no sentido de que existe o direito de acusar e de punir. Mas, como o parquet não é detentor do ius puniendi (exercido exclusivamente pelo Estado-juiz), cabe-lhe tão somente o exercício de uma pretensão acusatória – identificada como o próprio objeto do processo penal – no sentido de invocar a tutela jurisdicional (declaração petitória) após a afirmação da existência, em grau de probabilidade, da ocorrência de um fato (natural) aparentemente punível (elemento objeto da pretensão) e que possa ser imputado ao acusado (elemento subjetivo da pretensão) [4].
Assim, a “declaração petitória contida na ação penal solicitará que o órgão jurisdicional: declare a existência do fato narrado, afirmando sua tipicidade, ilicitude e culpabilidade; declare a responsabilidade penal do acusado pelos fatos narrados e provados; condene ao acusado pela prática do fato típico e imponha a respectiva penal ou medida de segurança aplicável; e determine a execução da pena ou medida de segurança imposta” [5].
Dessa forma, quando o titular da ação penal pública pede a absolvição do réu ele abdica do exercício da pretensão acusatória, não sendo lícito no futuro, ao mesmo (sequer talvez a outro membro do parquet) promotor de justiça buscar a condenação do réu ou o incremento do seu apenamento. Destaco:
“O poder punitivo estatal está condicionado à invocação feita pelo MP através do exercício da pretensão acusatória. Logo, o pedido de absolvição equivale ao não-exercício da pretensão acusatória, isto é, o acusador está abrindo mão de proceder contra alguém” [6].
O presente caso não tangencia a discussão a respeito da possibilidade (ou não) do juiz (mesmo o júri) condenar quando houver pedido de absolvição pela acusação e, tampouco alcança a aplicação do princípio da independência funcional, eis que tanto o pedido de absolvição, quanto agora, a interposição do recurso de apelação para a majoração da pena foram capitaneados pelo mesmo promotor de justiça.
Assim, quando a acusação deixa de exercer a pretensão acusatória e pede a absolvição do denunciado, o processo perde seu próprio objeto, não sendo mais lícito a renovação da pretensão pelo mesmo membro do parquet. Nesse sentido:
“Convém recordar que a base indispensável do processo não é a lide ou o conflito de interesses, mas sim o exercício de uma pretensão (logo, se o acusador deixar de exercê-la, o processo perde sua sustentação)” [7].
Em conclusão que, em certo ponto avança os limites da cognição que se busca alcançar para deixar de receber a presente apelação, mas, que é de todo oportuna quando se discute as consequências do não-exercício da pretensão acusatória, destaco, mais uma vez a pena de Aury Lopes Jr.:
“O Estado realiza seu poder de penar no processo penal não como parte, mas como juiz, e esse poder punitivio está condicionado ao prévio exercício da pretensão acusatória. A pretensão social que nasceu com o delito é elevada ao status de pretensão jurídica de acusar, para possibilitar o nascimento do processo. Nesse momento também nasce para o Estado o poder de punir, mas seu exercício está condicionado à existência prévia e total do processo penal. Se o acusador deixa de exercer a pretensão acusatória – desistindo ou pedindo absolvição -, cai por terra a possibilidade de o Estado-juiz atuar o poder punitivo e a extinção do feito é imperativa”.
Assim, devemos ter clara a diferença entre a independência funcional, ou, a possibilidade de retratação, e o interesse processual. Como já explicitado pelo Min. Nilson Naves:
“(...) O que não me parece saudável nem elegante (...) é o representante voltar sobre os seus próprios passos, ou outrem, em nome ministerial, desdizer o que já se havia dito em benefício do réu. (...). Feita uma coisa, feita está; desfazê-la significa ou ter dois pesos e duas medidas, ou lhe conferir sabor lotérico, porque um representante pode não recorrer, outro pode. (...)” [8].
Desta forma, se ainda não guarda unanimidade as consequências do pedido de absolvição feito pelo acusador em face do Estado-juiz (especialmente diante do que dispõe o art. 385 do CPP), dúvida não pode existir quanto à impossibilidade do mesmo membro do parquet buscar em grau recursal o recrudescimento da punição do réu quando anteriormente houver pedido a sua absolvição. Seria o mesmo que o ressuscitar da própria pretensão desistida!
Assim, considerando que o recurso manejado pelo parquet nestes autos carece de um interesse direto na reforma ou modificação da sentença, uma vez que o órgão ministerial pretende levar ao Tribunal o reexame de matéria divorciada de sua pretensão inicial, não conheço do recurso de apelação interposto à fl. 774.
Diligências necessárias.
Curitiba, 08 de maio de 2015.
DANIEL R. SURDI DE AVELAR
JUIZ DE DIREITO
Notas e Referências:
[1] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 10ª Ed., São Paulo, Saraiva, 2013. P. 1206/1207.
[2] BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Processo penal [recurso eletrônico]. Rio de Janeiro : Campus : Elsevier, 2012. P. 613.
[3] “O efeito devolutivo da apelação contra decisões do júri é adstrito aos fundamentos da sua interposição”.
[4] Cf. LOPES JR., Aury. (Re)discutindo o objeto do processo penal com Jaime Guasp e James Goldschmidt. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 39, p. 103, julho-2002.
[5] LOPES JR., Aury. (Re)discutindo o objeto do processo penal com Jaime Guasp e James Goldschmidt. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 39, p. 103, julho-2002.
[6] LOPES JR., Aury. (Re)discutindo o objeto do processo penal com Jaime Guasp e James Goldschmidt. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 39, p. 103, julho-2002.
[7] LOPES JR., Aury. Op. cit.
[8] STJ, 06ª Turma, HC nº 39.780/RJ, Rel. Min. Nilson Naves, j. 10/08/2009.
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