Ausência de provas de violência real torna Ministério Público parte ilegítima para propor ação penal no crime de estupro, de acordo com TJ/SC. Leia a decisão aqui!

10/08/2015

Por Redação - 10/08/2015

O Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina proferiu julgamento na Apelação Criminal n. 2012.059479-3 em que anulou o processo, inclusive a denúncia, por ausência de legitimidade do Ministério Público para propor ação penal pública em caso de estupro quando ausentes provas de materialidade da prática de violência real.

Em que pese o art. 225, caput, do Código Penal dispor que se procede mediante ação penal pública condicionada à representação no que se refere aos crimes contra a liberdade sexual e aos crimes sexuais contra vulneráveis, a Súmula 608 do Supremo Tribunal Federal atribuiu legitimidade ativa ao Ministério Público nos casos de estupro praticados mediante violência real, uma vez que os definiu como de ação penal pública incondicionada.

Contudo, no presente caso, a não realização de exame de corpo de delito acarretou em ausência de provas de materialidade da prática de efetiva violência real. Sem tais provas, o Ministério Público não pode propor a ação penal, uma vez que esta é pública condicionada à representação em estupros praticados sem violência. Por fim, o feito foi inteiramente anulado, bem com extinta a punibilidade do acusado, face à decadência do direito de representação do ofendido (art. 103 do CP).

Confira abaixo a íntegra da decisão de Relatoria do Des. Jorge Schaefer Martins


Apelação Criminal n. 2012.059479-3, de Correia Pinto

Relator: Des. Jorge Schaefer Martins

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ESTUPRO. SENTENÇA CONDENATÓRIA. RECURSO DA DEFESA.

PRETENSÃO DE ABSOLVIÇÃO EM FACE DA PRECARIEDADE DO CONJUNTO PROBATÓRIO. PREJUDICIALIDADE.

REPRESENTAÇÃO EM DESFAVOR DO ACUSADO POR PARTE DA VÍTIMA. POSTERIOR RETRATAÇÃO, ANTES DO OFERECIMENTO DA DENÚNCIA. VÍTIMA QUE DECLARA TEXTUALMENTE, PERANTE A AUTORIDADE POLICIAL, NÃO TER INTERESSE NA DEFLAGRAÇÃO DA PERSECUTIO CRIMINIS. AÇÃO PENAL INICIADA POR DENÚNCIA, ANTE A AFIRMAÇÃO DO PROMOTOR DE JUSTIÇA DA PRESENÇA DE VIOLÊNCIA REAL. AUSÊNCIA DE EXAME DE CORPO DE DELITO A CONFIRMAR TAL ASSERTIVA, COMO NÃO EFETIVAÇÃO DE LAUDO DE CONJUNÇÃO CARNAL. ILEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA PROPOR A AÇÃO CONFIGURADA. ANULAÇÃO DO PROCESSO AB OVO, POR ILEGITIMIDADE DE PARTE. APLICAÇÃO ANALÓGICA DO ART. 267, INCISO VI DO CPC. CONSEQUENTE EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE COM FULCRO NO ARTIGO 107, IV, DO CÓDIGO PENAL, QUE SE IMPÕE.

RECURSO PREJUDICADO.

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Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Criminal n. 2012.059479-3, da comarca de Correia Pinto (Vara Única), em que é apelante E.C. e apelado o Ministério Público do Estado de Santa Catarina e Assistente da Acusação:

A Quarta Câmara Criminal decidiu, por unanimidade, anular o processo desde a denúncia, inclusive e, na sequência, julgar extinta a punibilidade com fulcro no artigo 107, IV, do Código Penal, restando prejudicado o recurso. De acordo com o artigo 201, § 2°, do Código de Processo Penal, o Juízo de origem deverá tomar as providências para que o conteúdo do presente acórdão seja comunicado à vítima. Custas legais.

Participaram do julgamento, realizado em 3 de abril de 2014, os Excelentíssimos Desembargadores Roberto Lucas Pacheco e Rodrigo Collaço. Emitiu parecer pela Procuradoria-Geral de Justiça o Dr. Norival Acácio Engel.

Florianópolis, 16 de abril de 2014.

Jorge Schaefer Martins

Presidente e Relator

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Relatório

O Ministério Público ofereceu denúncia contra E.C. pelo cometimento, em tese, do delito descrito no artigo 213 do Código Penal.

Recebida a denúncia em data de 1º-10-2009 (fl. 46), o réu foi regularmente citado (fl. 49) e, por intermédio do defensor constituído, apresentou resposta escrita (fls. 52-56).

Finda a instrução a apresentadas as alegações finais, o Dr. Juiz de Direito proferiu sentença nos seguintes termos:

Diante do exposto, JULGO PROCEDENTE a denúncia, para o fim de CONDENAR o réu E.C., já qualificado, ao cumprimento de 6 (seis) anos de reclusão, pela infração ao artigo 213 do CP, a ser cumprida em regime inicial semiaberto. CONDENO o réu ao pagamento das custas processuais. CONCEDO ao réu o direito de apelar em liberdade, vez que respondeu solto durante toda a instrução processual e não estão presentes os motivos que autorizam a prisão preventiva. DENEGO a substituição da pena por restritivas de direito, já que o réu foi condenado a pena superior a 4 anos, não preenchendo, assim, um dos requisitos do artigo 44 do CP. DENEGO a concessão do sursis, tendo em vista que o réu foi condenado a pena superior a 2 anos. Transitada em julgado, LANCE-SE o nome do réu no rol dos culpados; COMUNIQUEM-SE à e. Corregedoria-Geral da Justiça e à Justiça Eleitoral, assim como EXECUTE-SE a pena, expedindo-se o respectivo mandado de prisão. FIXO os honorários da defensora nomeada ao acusado em 15 URH, enquanto que para a advogada da assistente da acusação em 10 URH, devendo ser expedidas as certidões (fls. 108-114).

Realizada a intimação da sentença, o réu interpôs recurso de apelação, requerendo a absolvição com base na aplicação do princípio in dubio pro reo.

Com as contrarrazões, ascenderam os autos a este Tribunal.

Instada, a Procuradoria-Geral de Justiça, em parecer da lavra do Dr. Norival Acácio Engel, opinou pelo desprovimento do recurso.

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Voto

O recurso sequer pode ser analisado, ante a constatação de situação que fulmina o processo, desde o seu nascedouro.

Observa-se nos autos, que o fato narrado na denúncia teria ocorrido em data de 28 de junho de 2008, e ter a vítima, em data de 27 de agosto de 2008, quando inquirida pela autoridade policial, manifestado seu interesse na deflagração penal contra a pessoa do ora apelante (fl. 12). No dia 30 de outubro do mesmo ano, retornando à Delegacia de Polícia, manifestou inequívoca vontade em NÃO REPRESENTAR em desfavor do autor "J." (fl. 15).

Não obstante, o dr. Promotor de Justiça, entendendo haver a configuração da violência real, o que torna a ação penal de iniciativa pública incondicionada (fl. 18), requereu o prosseguimento das investigações, indicando providências.

Assim foi feito, tendo inclusive sido ouvida a vítima em data de 22 de maio de 2009, quando disse objetivar não prosseguir na ação penal em razão das ameaças que lhe foram feitas pelo apelante, por não ter realizado o auto de exame de corpo de delito à época e por vergonha de seus familiares.

Há que se verificar, portanto, como se interpreta juridicamente a posição da vítima, ante a oferta da representação, sua retirada posterior, como a manifestação feita mais de 10 (dez) meses após o fato.

Sobre o assunto, extrai-se da doutrina de Nucci:

Retratabilidade da representação: a representação, que é a comunicação de um crime à autoridade competente, solicitando providências para apurá-lo e punir o seu autor, deve ser feita pela vítima, seu representante legal ou sucessor. Realizada, autoriza a instauração de inquérito policial para investigar o fato criminoso. Entretanto, ao dispor este artigo que ela será considerada irretratável, após o oferecimento da denúncia, está considerando, mutatis mutandis, que a representação é retratável, desde que a vítima ou quem de direito o faça até o promotor oferecer a denúncia, que é o início da ação penal (NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. 10. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 138-139).

Verificado que a retratação era possível, e que a manifestação posterior a ela (22 de maio de 2009), mesmo que interpretada como indicativa do interesse na responsabilização criminal já não mais poderia gerar efeitos, ante a óbvia caracterização da decadência, resta a analisar a ponderação do dr. Promotor de Justiça, de que se trata de ação penal de iniciativa pública incondicionada.

Nos autos verifica-se a ausência de auto de exame de corpo de delito, a demonstrar tenha a vítima sofrido lesões de qualquer natureza, assim como inexiste auto de conjunção carnal, que poderia implicar no reconhecimento da prática criminosa atribuída.

Nessa conformidade, não se faz possível aceitar o argumento do representante do Parquet Estadual, de que poderia aquele órgão impulsionar a ação penal, independentemente da vontade da vítima.

A legislação penal estabelece que crimes contra a liberdade sexual definidos nos Capítulos I e II do Título VI (Crimes contra a dignidade sexual), são de ação penal de iniciativa pública condicionada (art. 225, do CP).

A possibilidade de agir independentemente da vontade da vítima, pressupõe a existência de violência real, como já sedimentado na jurisprudência:

APELAÇÕES CRIMINAIS. CRIME CONTRA A LIBERDADE SEXUAL. ESTUPRO TENTADO (ART. 213 C/C ART. 14, II, DO DO CÓDIGO PENAL). SENTENÇA CONDENATÓRIA. APELO DEFENSIVO. PRELIMINAR. SUSTENTADA FALTA DE CONDIÇÃO DE PROCEDIBILIDADE, EM RAZÃO DA AUSÊNCIA DE REPRESENTAÇÃO DA VÍTIMA. ELEMENTOS DOS AUTOS QUE EVIDENCIAM A PRÁTICA DO CRIME MEDIANTE VIOLÊNCIA REAL. CRIME QUE PODE SE PROCESSAR MEDIANTE AÇÃO PÚBLICA INCONDICIONADA. EXEGESE DA SÚMULA N. 608 DO STF. REPRESENTAÇÃO QUE DISPENSA FORMALISMO. BOLETIM DE OCORRÊNCIA SUFICIENTE PARA DEFLAGRAR A INVESTIGAÇÃO CONTRA O RÉU. PREFACIAL AFASTADA.

[...] (Apelação Criminal n. 2013.002276-9 da Capital, Rel. Des. Volnei Celso Tomazini, Segunda Câmara Criminal, j. 13-8-2013).

Mas a total ausência de provas acerca da suposta violência, impede a admissão do procedimento adotado, isto é, denúncia a descoberto de representação, evidenciando-se a ilegitimidade de parte do Ministério Público.

Tal circunstância faz incidir, por analogia, o preconizado no art. 267, inciso VI do Código de Processo Civil, que trata da extinção do processo por ilegitimidade de parte, sendo imperativa a anulação do processo desde a denúncia, inclusive.

Por conseguinte, também obrigatória a extinção da punibilidade do apelante pela configuração da decadência, prevista no art. 107, inciso IV, do Código Penal.

Nesse sentido:

APELAÇÃO CRIMINAL. CRIME DE DANO QUALIFICADO. SENTENÇA QUE DESCLASSIFICOU A CONDUTA IMPUTADA NA DENÚNCIA PARA DANO SIMPLES [ART. 163, CAPUT, DO CP]. RECURSO DA ACUSAÇÃO. ALEGAÇÃO DE PROVAS SUFICIENTES PARA A CONDENAÇÃO NA MODALIDADE QUALIFICADA. DÚVIDAS EXISTENTES ACERCA DA OCORRÊNCIA DA AMEAÇA NO MESMO CONTEXTO DOS DANOS. APLICAÇÃO NA ESPÉCIE DO IN DUBIO PRO REO. DESCLASSIFICAÇÃO PARA A SUA FORMA SIMPLES. ILEGITIMIDADE ATIVA DO REPRESENTANTE DO MINISTÉRIO PÚBLICO. DECADÊNCIA DO DIREITO DE QUEIXA. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE [ART.107, IV, DO CÓDIGO PENAL]. RECURSO DESPROVIDO (Apelação Criminal n. 2013.016656-6 de Canoinhas, Relª Desª Cinthia Beatriz da Silva Bittencourt, Quarta Câmara Criminal, j. 13-11-2013).

Assim, com fulcro no artigo 267, VI DO CPC, reconhece-se a ilegitimidade de parte do Ministério Público para proporá a ação penal, anulando-se o processo desde a denúncia, inclusive, e com suporte no art. 107, inciso IV, do Código Penal, julga-se extinta a punibilidade pela ocorrência da decadência do direito de representação.


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