AJD pede que CNJ evite a degeneração da audiência de custódia

17/05/2017

Por Redação - 17/05/2017

A Associação Juízes para a Democracia (AJD), preocupada com o resultado dos últimos estudos acerca das audiências de custódia no Brasil, encaminhou ofício à Presidente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Ministra Cármen Lúcia, enunciando a necessidade de se envidar esforços no sentido de conscientizar e internalizar, dentre os agentes do sistema de justiça, o legítimo propósito da audiência de custódia, "inclusive no que diz respeito às especificidades que o recorte de gênero (e raça e classe) traz à realização do ato em questão".

Leia o inteiro teor do documento:

Excelentíssima Senhora Presidenta,

A Associação Juízes para a Democracia, entidade não governamental e sem fins corporativos, que tem dentre suas finalidades o respeito absoluto e incondicional aos valores jurídicos próprios do Estado Democrático de Direito, ao tempo em que se congratula com os ingentes esforços deste egrégio Conselho na missão de implantar e expandir a realização das audiências de custódia em todo o território nacional, nos exatos termos do artigo 9°, item 3, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas, e artigo 7°, item 5, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, vem à honrosa presença de Vossa Excelência manifestar sua preocupação sobre o tema, nos termos em que seguem.

Recentemente, foi divulgada, pelo Instituto Conectas de Direitos Humanos, pesquisa denominada Tortura Blindada, resultado de observação e colheita de dados em 393 casos de audiência de custódia, no Estado de São Paulo, em que os presos apresentavam sinais de tortura ou maus-tratos. O estudo concluiu que, em 1/3 dos casos, a juíza/o juiz não perguntou à pessoa presa se ela havia sido vítima de agressão ou violência no momento da prisão. Levantou-se, ainda, que, em 80% dos casos em que a pessoa presa relatou ter sido vítima de agressão, o Ministério Público não fez qualquer intervenção, sendo que, quando o fez, em 60% das vezes a intervenção foi no sentido de deslegitimar os relatos. Em 72% dos casos, a juíza/o juiz determinou que as próprias Corregedorias das polícias investigassem a violência.

Tais dados unem-se a outras pesquisas já realizadas, como, por exemplo, as que dizem respeito à questão do (des)encarceramento das mulheres. Vem-se demonstrando, cada vez mais claramente, a intensa vinculação do sistema penal brasileiro a uma matriz histórica patriarcal, levando à incompreensão dos problemas de gênero e, consequentemente, fazendo com que estigmas e discriminações socialmente sofridas pelas mulheres sejam reforçados no momento em que a presa é trazida à presença da autoridade judiciária nas audiências de custódia: cita-se, nesse sentido, a inobservância das normas processuais penais que obrigam a juíza/o juiz a perquirir acerca das hipóteses de gravidez, filhos e dependentes (art. 8º da Resolução CNJ n. 213/2015) e os autorizam a substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando se trata de gestante ou de mulher com filhos (art. 318 do Código de Processo Penal e regras de Bangkok).

O resultado dessa prática é conhecido: o DEPEN noticia monitoramento realizado pelo IDDD durante dez meses de realização de audiências de custódia, período durante o qual não houve uma única vez em que uma juíza/um juiz tenha perguntado se a presa estava grávida.

A AJD, receosa de que tais estatísticas venham a ser, em lamentável retrocesso, utilizadas como argumento contrário às audiências de custódia, sob o pretexto de não serem idôneas aos fins a que se destinam, vem reforçar a importância da medida na contenção de abusos estatais e garantia de direitos humanos.

As audiências de custódia, como sabido, têm como seus objetivos principais reverter a cultura de banalização da prisão provisória, uma das causas da situação de superlotação carcerária no país, e prevenir, mediante a criação de mecanismo fiscalizatório mais dinâmico e imediato, a prática de tortura e maus-tratos a pessoas sob custódia estatal.

Nesse contexto, as audiências de custódia, por seu caráter público e mandatório, já tiveram o mérito de facilitar o acompanhamento e fiscalização, por organismos da sociedade civil, do tratamento dispensado pelo Estado a pessoas presas. De fato, a colheita de dados concretos sobre o cenário de aparente subnotificação de situações de maus-tratos e abusos, conforme o levantamento realizado, não poderia de outra maneira, a não ser por meio das audiências, vir à tona, o que inviabilizaria o debate público amplo e crítico sobre tão sensível tema.

Dessa forma, é necessário que sejam envidados esforços no sentido de conscientizar, aprofundar e internalizar, dentre os atores do sistema de justiça (trabalho que pode ser realizado sobre juízas/juízes por este CNJ), os reais propósitos da audiência de custódia, inclusive no que diz respeito às especificidades que o recorte de gênero (e raça e classe) traz à realização do ato em questão. Pretende-se, assim, evitar a degeneração da audiência de custódia em ato meramente burocrático e formal, com vistas apenas a evitar nulidades processuais.

Sabe-se, a propósito, que a burocratização de instrumentos de garantias de direitos, como a própria audiência de custódia, é um risco permanente com que se depara grande parcela dos membros da magistratura de todo o Brasil, submetida, de modo geral, ao trabalho estafante de milhares de processos que tem de presidir e julgar em tempo razoável, sob verdadeira escala industrial.

Exatamente com base nessas considerações, vê-se, com extremada preocupação, o surgimento de propostas que buscam esvaziar a medida, distanciando-a de suas finalidades originais, como, por exemplo, a possibilidade de realização das audiências por videoconferência, que vem a inviabilizar o contato detido entre o Poder Judiciário e o sujeito de direitos.

Dessa forma, a Associação Juízes para a Democracia vem registrar a sua firme posição no sentido de que as audiências de custódia, importante instrumento de contenção de abusos do poder estatal, venham a ser mantidas e aprofundadas nos termos de suas reais finalidades, com o imprescindível apoio desta Corregedoria, e com o necessário acompanhamento, fiscalização e debate com os demais setores da sociedade civil.

Reiterando a Vossa Excelência votos de estima e consideração, subscrevemo-nos.

De São Paulo para Brasília,

André Augusto Salvador Bezerra

Presidente do Conselho Executivo da AJD

 À Sua Excelência

A Sra. Presidenta do Conselho Nacional de Justiça

Cármen Lúcia

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Fonte: Associação Juízes para a Democracia


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