Por Redação - 16/07/2015
A acusada foi submetida à revista íntima vexatória, consistente em se despir e se agachar sobre um espelho, onde seu anus e vagina eram vistoriados, razão pela qual o Juiz de Direito Rudson Marcos, da 4a Vara Criminal da Capital - SC, reconheceu a ilegalidade da obtenção da materialidade do crime (drogas) e absolveu os agentes, já que seu companheiro, interno, respondia pelo mesmo fato. A decisão leva a sério os Direitos Fundamentais, já que em 2015 é impossível tolerar-se práticas medievais nas revistas, no que merece nosso destaque.
Confira a decisão, na íntegra, abaixo.
Autos n° 0000412-91.2015.8.24.0023 Ação: Procedimento Especial da Lei Antitóxicos/PROC Autor: Ministério Público do Estado de Santa Catarina Acusados: J. M. F. da C. e C. H. D. de A.
Vistos, etc...
O representante do MINISTÉRIO PÚBLICO ofereceu denúncia contra J. M. F. da C., brasileira, convivente, do lar, natural de Porto Alegre/SC, nascida em xxxx, filha de S.M. dos S., residente e domiciliado no bairro H., xxx, São José/SC e C. H. D. de A, brasileiro, convivente, desempregado, natural de Porto Alegre/RS, nascido em xxxx, filho de A. C. S. de A., atualmente recolhido na Penitenciária da Capital, Florianópolis/SC imputando-lhes a prática do crime descrito no artigo 33 da Lei n.º 11.343/06, fazendo a seguinte descrição fática:
"Consta do incluso Procedimento que, em data de 26 de dezembro de 2014, por volta das 14:40h, na Penitenciária de Florianópolis, a denunciada J. M. F. da C. foi flagrada na posse, transportando, para o interior do ergástulo, onde seriam comercializadas e distribuídas, 17 (dezessete) papelotes de maconha embaladas individualmente, pesando no total aproximadamente 28,9 (vinte e oito gramas e nove decigramas – laudo fl. 27), substância capaz de causar dependência física e/ou psíquica, cujo uso é proibido em todo o território nacional, de acordo com a Portaria n. 344/98 e alterações subsequentes.
Observa-se que o denunciado C. H. S. de A., companheiro da denunciada J., que já possui envolvimento pretérito com o tráfico, foi quem determinou o transporte, sendo ele o destinatário do produto e o encarregado da distribuição da droga no sistema penal, concorrendo ele, portanto, com o tráfico em questão."
Em 26/12/2014, lavrou-se o auto de prisão em flagrante em desfavor da acusada, sendo homologado o APF e convertida a prisão em flagrante por preventiva, nos termos da decisão de fls. 19/20.
Juntou-se na fl. 28 o laudo de constatação.
De posse do caderno indiciário, o Ministério Público ofereceu denúncia (fls. 40/42).
Deflagrada a ação penal, foi ordenada a citação e notificação dos réus para oferecimento de resposta à acusação (fl. 45).
Devidamente citados (fl. 48/49), os réus juntaram defesa prévia (fls. 55/58), por intermédio da Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina.
A denúncia foi recebida, por meio da decisão de fls. 59/63, oportunidade em que foi instaurada a instrução do feito. Na mesma decisão, foi revogada a prisão preventiva da ré J., concedendo-lhe medida preventiva alternativa à prisão, consistente no comparecimento mensal em juízo. Em consequência, foi expedido o alvará de soltura (fls. 85/87).
Por ocasião da realização da audiência de instrução e julgamento, foram ouvidas testemunhas comuns da acusação e defesa, S. R. M. e M. M. da R., além de os réus terem sido interrogados, conforme consta da ata de fl. 101.
Encerrada a instrução, o Ministério Público apresentou suas alegações finais, na forma de memoriais (fls. 110/115), reiterando o pedido de condenação de ambos os réus, constante da denúncia.
Já a Defesa, em suas alegações finais, também apresentada na forma de memoriais, às fls. 120/135. Arguiu, preliminarmente, a inconstitucionalidade da revista íntima, efetivada na acusada J., razão pela qual a prova dos autos é ilícita. Pugnou pela a absolvição da referida ré, ante a coação moral irresistível, assim como a absolvição do réu C. por atipicidade da conduta e, subsidiariamente, a desclassificação como porte para uso próprio.
Posteriormente, aportou aos autos o laudo pericial definitivo de análise das substâncias apreendidas, documento de fls. 136/139.
Vieram-me os autos conclusos.
É o relatório. Fundamento e decido.
Trata-se de ação penal pública incondicionada, tramitante pelo procedimento especial, previsto na Lei n.º 11.343/06, em que o representante do Ministério Público move contra os acusados C. H. S. de A. e J. M. F. da C., acima qualificados, imputando-lhes a prática dos crimes descritos nos artigos 33, caput, da mencionada lei.
DA INCONSTITUCIONALIDADE DAS PROVAS COLHIDAS DURANTE A REVISTA ÍNTIMA
O amadurecimento das ideias positivadas na Constituição Federal de 1988, ainda não encontra debate profundo em muitas de suas vertentes. Basta analisar as recentes decisões paradigmáticas do Supremo Tribunal Federal sobre liberdade de expressão (ADPF 187), união homoafetiva (ADPF 132 c/c ADIN 4277) etc.
Essas novas ideias que permeiam a Constituição Federal traduzem um sentimento novo, basilar à qualquer Estado Democrático de Direito. No Brasil não é diferente.
Essa "nova forma" de enxergar o Direito diz muito sobre como um Estado vai ao encontro, ou não, dos fins insculpidos pela Lei Maior. Na doutrina, fala-se em interpretação constitucional.
Sobre o tema, valiosas são as palavras de Carlos Maximiliano:
O Direito Constitucional apoia-se no elemento político, essencialmente instável, a esta particularidade atende, com especial e constante cuidado, o exegeta. [...]. Por ser a Constituição também uma lei, que tem apenas mais força do que as outras às quais sobreleva em caso de conflito, contribuem para a inteligência da mesma os processos e regras de hermenêutica [...]. O Código Fundamental tanto prevê no presente como prepara o futuro. Por isso ao invés de se ater a uma técnica interpretativa exigente e estreita, procura-se atingir um sentido que torna efetivos e eficientes os grandes princípios de governo, e não o que os contrarie ou reduza a inocuidade (Maximiliano, Carlos. Hermenêutca e aplicação do direito. 20 ed. - Rio de Janeiro: Forense, 2011, fls. 248/249).
Pelas palavras do doutrinador aludido, percebe-se quão fácil é acertar errando. Em que pese existam muitas normas vigentes no Brasil, hodiernamente, algumas delas não encontram respaldo constitucional. Ainda que não seja uma inconstitucionalidade direta, várias condutas arraigadas na prática de rotinas praticadas no sistema carcerário brasileiro vulneram aos mais comezinhos direitos constitucionais, em especial a dignidade da pessoa.
A questão da hermenêutica, está além da mera subsunção dos fatos à norma, nos termos em que ela se encontra positivada. Vai além, muito além. Tanto o é, que existem na dogmática jurídica métodos de interpretação históricos, teleológicos etc. A mera observância da letra da lei, mormente aquela infraconstitucional, quando não lida pela ótica dos novos valores constitucionais inclina-se ao fracasso.
Sobre esse tema, importa considerar as seguintes ideias de Lênio Streck:
A constituição é um espaço garantidor das relações democráticas entre o Estado e a Sociedade [...]. Desse modo, violar a Constituição ou deixar de cumpri-la é descumprir essa constituição do contrato social. [...] Consequentemente, a Constituição passa a ser, em toda a sua substancialidade, o topos hermenêutico que conformará a interpretação do restante do sistema jurídico. [...]. A partir disso, há que se ter claro que os princípios são deontológicos e governam a Constituição, o regime e a ordem jurídica. Não são (os princípios) apenas a lei, mas o Direito em toda a sua extensão, substancialidade, plenitude e abrangência. [...]. Desse modo, a violação de um princípio passa a ser mais grave que a transgressão de uma regra jurídica (no dizer de Bandeira de Mello), representando a violação de um princípio constitucional na ruptura da próprio Constituição, tendo essa inconstitucionalidade consequências muito mais graves do que a violação de um simples dispositivo [...]. Sendo o texto constitucional, em seu todo, dirigente e vinculativo, é imprescindível ter em conta fato de que todas as normas (textos) infraconstitucionais, para terem validade, devem passar necessariamente, pelo processo de contaminação constitucional [...]. O intérprete/juiz (e o "operador" jurídico" lato sensu) somente está sujeito à lei enquanto válida, quer dizer, coerente com o conteúdo material da Constituição. [...]. É neste sentido que assume importância a força normativa da Constituição. [...] (Streck, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica em crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito.11 ed - Porto Aegre: Livraria do Advogado, 2014, fls. 344/350)
Deve-se dizer, então, que assume relevante papel nessa "nova forma" de dizer o direito, tanto o juiz, quanto o processo. A forma como o Estado chama para si a responsabilidade de compor os litígios, passa necessariamente pelas mãos da instrumentalidade do processo, bem como pela subjetividade do prudente arbítrio do magistrado.
Dessa forma, a questão não está mais em positivar os direitos e garantias fundamentais, mas espraiar esse sentimento por toda a interpretação e aplicação do direito.
Valendo-me novamente dos ensinamentos de Streck, agora colhidos da obra Verdade e Consenso, extrai-se:
Como contraponto, proponho a "tese da descontinuidade" – que penso ser a mais adequada -, pela qual se entende que os princípios constitucionais instituem o mundo prático do direito. Essa institucionalização representa um ganho qualitativo para o direito, na medida em que, a partir dessa revolução paradigmática, o juiz tem o dever (have a duty to, como diz Dworkin) de decidir de forma correta. (Streck, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 5 ed - São Paulo: Saraiva, 2014, fl. 67).
Dentro desse "dever", como dito pelo ilustre doutrinador, ressalto que para atingir os escopos maiores da constituição, o problema moderno da ciência jurídica é aquele que diz respeito à eficácia das normas.
Esse tema ganha relevo quando se quer dar efetividade, notadamente, aos princípios constitucionais. A respeito da eficácia dos direitos fundamentais, discorre Ingo Wolfgang Sarlet:
A problemática da vinculação dos poderes públicos e das entidades privadas aos direitos fundamentais encontra-se estreitamente ligada ao tema da eficácia e aplicabilidade, já que a vinculatividade dos direitos fundamentais constitui precisamente uma das principais dimensões da eficácia [...]. Diversamente do que enuncia o art. 18/1 da Constituição Portuguesa, que expressamente prevê a vinculação das entidades públicas e privadas aos direitos fundamentais, a nossa Lei Fundamental, nesse particular, quedou silente [...]. A omissão do Constituinte não significa, todavia, que os poderes públicos (assim como os particulares) não estejam vinculados [...]. (Sarlet, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10 ed – Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, fls. 365/366)
Nesse ponto, destaco que todo poder público encontra-se tocado por esse mandamento de aplicabilidade imediata, previsto no artigo 5º, § 1º, da CRFB. Tanto o Executivo, quanto o Legislativo e, especialmente, o Poder Judiciário.
Dessa forma, cumpre ao legislador no momento de externar a vontade soberana que legitimou o seu mandato político, criar normas constitucionais. Ao Executivo, por intermédio de seus órgãos (O Departamento Penitenciário é um deles), incumbe cumprir de forma constitucional. Já ao Poder Judiciário, caso existam arestas para serem aparadas, fazer com vistas da Constituição.
Afigura-se correto afirmar, então, que ao judiciário quando instigado, cumpre tornar efetivos os direitos e princípios constitucionais, seja de que ordem forem.
Surge, dessa forma, a necessidade de se apontar no caso concreto os direitos envolvidos e, tentar ao máximo, efetivar as diretrizes constitucionais.
No caso em análise, há manifesta colisão direitos fundamentais consagrados, tanto à favor dos réus, quanto do Estado.
Em favor do Estado, tem-se o dever de zelar pela segurança pública, insculpida no art. 144 da Constituição da República, assim:
Art. 144. A segurança pública, dever do Estado direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio [...]
De outro vértice, a Constituição da República tutela os direitos dos Réus, a saber:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
III – A dignidade da pessoa humana;
Art. 3. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
IV – promover o bem de todos [...]
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade [...]
III – ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;
X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas [...]
LVI – são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos;
Pelo exposto acima, conclui-se que não é tarefa fácil a do operador jurídico em efetuar uma escolha. Todavia, dentro desse processo de colisão dos direitos, deve-se preferir no método menos invasivo aos direitos. Essa é a vontade última da própria constituição ao arrolar no artigo quinto, um sem-número de garantias.
Neste contexto, considerando a forma pela qual as provas dos autos foram colhidas, por meio de revista íntima na acusada J., por ocasião de sua visita ao co-réu C., segregado na Penitenciária de Florianópolis, constitui-se em prática manifestamente vexatória e portanto, ilícita, do ponto de vista constitucional, o que conduz à convicção de que a obtenção de provas em Processo Penal, por este meio vulnera diversos princípios constitucionais, em especial, os vetores principiológicos insculpidos nos artigos 1º, III; 3º, IV e 5º, Incisos III, X e LVI, da Constituição da República, acima reproduzidos.
Sobre o tema de provas ilícitas ou moralmente ilegítimas, importante a lição do magistrado do TJSP, Hamid Charaf Bdine Júnior:
Excluem-se, portanto, os meios ilegais e moralmente ilegítimos como meio de demonstrar a verdade dos fatos. A conclusão, porém, a despeito de parecer evidente – provas obtidas ilegalmente não podem se prestar a demonstrar a verdade dos fatos – não é infensa a questionamentos [...]. A proibição de prova ilícita tem comportado exceções e todos os sistemas que a adotam em nome da preservação de determinados valores e bens fundamentais, merecedores de proteção relevante [...]. É de se ver que o direito à produção de prova pode, ele próprio, destinar-se a proteger direitos fundamentais, que não podem sofrer limitação infundada. Tais limitações só são admissíveis se preservarem direitos mais importantes do que os que são protegidos pelo reconhecimento da ilicitude da prova. [...]. Para, portanto, admitir ou não a prova ilícita, será sempre necessário ponderar entre os direitos em conflito – o que veda determinada prova, porque ilícita, e aquele que seria protegido com a admissão do ilícito produção da prova. É certo que a prova ilícita não deve ser autorizada jamais, se o mesmo fato puder ser de outro modo demonstrado, porque, nesta situação específica, não se justificaria, num juízo de proporcionalidade e ponderação, autorizar a violação do direito fundamental para obter a demonstração do alegado. (Silva, Regina Beatriz Tavares da. Grandes temas de direito de família e das sucessões. São Paulo: Saraiva, 2014, fls. 171/178)
Assim sendo, não cabe ao Poder Judiciário chancelar, por quais argumentos forem, práticas inconstitucionais. Ainda mais se essa conduta puder restringir a liberdade, a dignidade ou intimidade de qualquer pessoa.
Outrossim, aponto que dos autos apenas existem informações sobre o procedimento da revista íntima pelas palavras dos agentes penitenciários S. R. M. e M. M. da R., conforme termos de depoimentos constantes da mídia eletrônica produzida na audiência de fl. 101.
Não obstante, dos depoimentos pode-se colher elementos suficientes para verificar quão vexatório é o procedimento adotado. Segundo consta:
O visitante entra em uma sala reservada onde se encontra um agente penitenciário (do mesmo sexo), despe-se totalmente e, ao comando do agente faz movimento sobre um espelho, tudo no afã de que apareça pelo reflexo, quaisquer indícios de drogas no interior do ânus ou vagina. Caso se constate o indício, outro agente é chamado para presenciar a cena, sendo que, caso concordem que exista algo no interior do corpo, exigem que a pessoa permaneça nesse estado até a retirada, tudo ao final registrado por fotos.
Fácil perceber, diante dos relatos indicados, que os direitos constitucionalmente assegurados da dignidade, igualdade, liberdade, não são assegurados, com a execução do procedimento de vistoria vexatória.
Não se está a defender que todas e quaisquer vistorias em visitantes de segregados do sistema carcerário seja proibida. Ao contrário, afigura-se plenamente possíveis tais averiguações, desde que o procedimento respeite os direitos constitucionais mencionados.
Hodiernamente modernos aparelhos de raio-x (localizados em aeroportos, por exemplo), conseguem cumprir essa função, sem causar o constrangimento intimidatório existente na vistoria vexatória, tal qual a empregada nos autos.
Em outras palavras, existem equipamentos tecnológicos aptos e disponíveis no mercado de simples emprego para o desiderato da realização de vistorias em visitantes aos segregados do sistema penitenciário, que não ofendem o patrimônio da dignidade dos usuários do sistema.
Ainda que o Estado alegasse não possuir condições econômicas de investir em tais equipamentos, ainda assim não se justificaria. Mas nem isso é alegado no caso dos autos! O vergastado argumento da "reserva do possível", ademais, já foi afastado inúmeras vezes pelo judiciário, inclusive pelo STF ( e.g. ADPF 45), não bastando a mera alegação de falta de recursos.
Por conseguinte, importante que o Poder Judiciário garanta aos cidadãos os direitos mais básicos previsto na CRFB.
Sobre a dignidade da pessoa humana, as palavras de Ingo Sarlet são esclarecedoras:
Ao consagrar a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado Democrático (e social) de Direito (art. 1º, III), a CF de 1988, além de ter tomado uma decisão fundamental a respeito do sentido, da finalidade e da justificação do próprio Estado e do exercício do poder estatal, reconheceu categoricamente que o Estado existe em função da pessoa humana, e não o contrário [...]. A partir do exposto e sedimentado o entendimento de que também no ordenamento brasileiro a dignidade da pessoa humana ostenta o status de valor e princípio constitucional fundamental [...] (Canotilho, JJ Gomes et al. Comentários à constituição do Brasil. - São Paulo: Almedina, 2013, p. 124 e 126).
Por sua vez, Luiz Alberto David Araújo ensina sobre o tratamento degradante:
A proteção já estaria contida no direito à vida, já consagrado em todas as constituições brasileiras. No entanto, a explicitação tem caráter didático e pretende relembrar os destinatários da norma e, especialmente, as autoridades encarregadas do processo de investigação criminal. (Canotilho, JJ Gomes et al. Comentários à constituição do Brasil. - São Paulo: Almedina, 2013 ,fl. 249).
Sobre a intimidade, comenta José Adércio Leite Sampaio:
O direito à intimidade se apresenta como direito à liberdade, marcado por um conteúdo mais determinado ou determinável conjugado a um complexo de princípios constitucionais [...]. O direito à intimidade pode, em vista das circunstâncias do caso, ceder a um outro direito ou liberdade ou mesmo em face da saúde ou segurança públicas, da punibilidade ou de outro bem coletivo. [...]. Quando haverá de superar o interesse oposto ou a ele sucumbir? As peculiaridades do caso com a força de suas evidências é que responderão. (Canotilho, JJ Gomes et al. Comentários à constituição do Brasil. - São Paulo: Almedina, 2013 fls. 281/282)
Por fim, Araken de Assis e Carlos Alberto Molinaro comentam a proibição das provas ilícitas:
Um direito fundamental à prova não comporta a ilicitude na sua produção. Como direito fundamental, o direito à prova não comporá sequer arbítrio do legislador, que não poderá editar normas que possam de alguma forma comprometer o núcleo essencial desse direito [...]. Toda obtenção de prova ilícita, reprise-se à exaustão, por consequência, agride direitos fundamentais constitucionais expressamente reconhecidos. (Canotilho, JJ Gomes et al. Comentários à constituição do Brasil. - São Paulo: Almedina, 2013 ,fl. 440).
De todas essas indicações doutrinárias, bem como daquelas expostas anteriormente, infere-se do caso em tela que o procedimento adotado para obtenção da prova de tráfico de entorpecentes, principalmente aquela colhida durante revistas íntimas de visitantes às penitenciárias, notoriamente vexatórias, encontra-se ao arrepio da norma constitucional.
No que toca ao Estado de Santa Catarina, a atribuição para regulamentar a vistoria íntima é do Departamento de Administração Prisional, conforme já decidiu o Egrégio Tribunal de Justiça de Santa Catarina (MS 2013.050141-6).
Dessa forma, válida é a Instrução Normativa n. 01/2010 do DEAP. Desta instrução depreende-se o procedimento de revista:
Após averiguação dos procedimentos exigidos, o visitante será conduzido até a sala de busca pessoal;
A revista pessoal é feita individualmente por um Agente Penitenciário do mesmo sexo do visitante, independentemente da idade;
Com o uso de luvas descartáveis o Agente Penitenciário revistará o visitante, solicitando que o mesmo retire todo seu vestuário, revistando-o em seguida;
O Agente Penitenciário que realizar a busca pessoal, não deverá tocar no revistado como também, sempre que efetuar a revista em menor de idade deverá exigir a presença do acompanhante no interior da sala durante o procedimento, salvo nos menores que possuam dispensa judicial para acompanhante;
Com a utilização de um espelho no chão e outro na parede, para melhor observação das partes íntimas, é feita a revista pessoal objetivando impedir entrada de objetos proibidos;
Durante o procedimento de revista com o auxílio do espelho, o Agente Penitenciário posicionado de frente para o visitante deverá olhar a parte de trás através do espelho fixado na parede, observando com muita atenção costas, pernas e/ou locais que possibilitem ao visitante burlar a segurança;
O Agente Penitenciário deverá solicitar ao visitante que mostre a sola dos pés, unhas e erga seus braços ou qualquer parte do corpo que possa ser utilizada para colagem de objetos não permitidos;
É feita também a revista na boca do visitante, pedindo para que abra a mesma e levante a língua pra cima e depois para fora da boca;
Do excerto, verifica-se a forma constrangedora a que se submete o visitante. Tal procedimento, em que pese estipulado já no ano de 2010 e, de reprodução em muitas outras unidades da federação, vai de encontro ao texto constitucional, conforme já citado alhures.
Neste particular, consigne-se que, em recente decisão monocrática, prolatada em 04/03/2015, a ilustre Desª. Cláudia Lambert de Faria, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, deferiu pedido formulado pela Defensoria Pública, nos autos do Agravo de Instrumento n.º 2015.013400-8 contra o Estado de Santa Catarina, concedendo antecipação de tutela, para o fim de declarar a ilegalidade do procedimento de revista íntima manual, disciplinada na IN 001/2010 do DEAP/SC.
Pela pertinência da decisão, transcreve-se a sua conclusão:
"Em face do exposto, admito o processamento do agravo na sua forma de instrumento e, nos termos do artigo 527, inciso III, do Código de Processo Civil, defiro a antecipação da tutela recursal, a fim de suspender o procedimento generalizado de revista pessoal em visitantes previsto na Instrução Normativa n. 001, de 25/08/2010, no ponto em que permite o desnudamento total ou parcial, a observação de órgãos genitais nus e os agachamentos, sob pena de multa diária no valor de R$ 2.000,00, até análise do mérito pela Câmara especializada". (Agravo de Instrumento n. 2015.013400-8, da Capital. Relatora: Desa. Cláudia Lambert de Faria, julgado em 04 de março de 2015).
Essa nova visão sobre a forma como o Estado deve proceder à revista íntima, permeada pelo direito constitucional, não é nova e nem mesmo de exclusividade dos magistrados catarinenses. Aliás, a discussão deste tema vem ocorrendo em diversos Estados da Federação.
No Estado de São Paulo, a Lei Estadual 15.552/14 regula a revista íntima. Já no seu artigo primeiro apregoa:
Artigo 1º - Ficam os estabelecimentos prisionais proibidos de realizar revista íntima nos visitantes. Parágrafo único - Os procedimentos de revista dar-se-ão em razão de necessidade de segurança e serão realizados com respeito à dignidade humana.
Já no Estado do Rio de Janeiro, a Assembleia Legislativa fluminense revogou o veto do Governador e aprovou o projeto de Lei n. 77/15, respeitando as normas constitucionais em detrimento das visitas íntimas. Consta do artigo 1º da referida Lei:
Art. 1º - A revista de visitantes, necessária à segurança interna dos estabelecimentos prisionais do Estado, será realizada com respeito à dignidade humana e segundo o disposto nesta lei.
A crescente preocupação sobre o assunto chegou, inclusive, ao Congresso Nacional, no qual se encontra tramitando o PL 7085/14. Caso o texto fosse aprovado, regulamentaria da seguinte forma a revista íntima:
Art. 1º - A revista de visitantes, necessária à segurança interna dos estabelecimentos prisionais estaduais e federais, será realizada com respeito à dignidade humana e segundo o disposto nesta lei.
Parágrafo Único - Considera-se visitante todo aquele que ingressa no estabelecimento prisional para manter contato direto ou indireto com detento ou para prestar serviço de administração ou de manutenção, na condição de funcionário terceirizado.
Art. 2º - Todo visitante que ingressar no estabelecimento prisional será submetido à revista mecânica, para a qual é proibido o procedimento de revista manual.
- 1º - O procedimento de revista mecânica é padrão e deve ser executado através da utilização de equipamentos necessários e capazes de garantir a segurança do estabelecimento prisional, tais como detectores de metais, aparelhos de raio-x, entre outras tecnologias que preservem a integridade física, psicológica e moral do revistado.
Vê-se, pelos exemplos dados, que a forma atual de fazer as vistorias afronta a dignidade da pessoa humana, razão pela qual o tratamento da matéria que hoje é estabelecida pela IN n. 10/2010 do DEAP/SC ofende frontalmente a Constituição Federal.
Não é demais ressaltar, a resolução n. 5/14 do CNPCP:
Art. 1º. A revista pessoal é a inspeção que se efetua, com fins de segurança, em todas as pessoas que pretendem ingressar em locais de privação de liberdade e que venham a ter contato direto ou indireto com pessoas privadas de liberdade ou com o interior do estabelecimento, devendo preservar a integridade física, psicológica e moral da pessoa revistada.
Parágrafo único. A revista pessoal deverá ocorrer mediante uso de equipamentos eletrônicos detectores de metais, aparelhos de raio-x, scanner corporal, dentre outras tecnologias e equipamentos de segurança capazes de identificar armas, explosivos, drogas ou outros objetos ilícitos, ou, excepcionalmente, de forma manual.
Art. 2º. São vedadas quaisquer formas de revista vexatória, desumana ou degradante.
Parágrafo único. Consideram-se, dentre outras, formas de revista vexatória, desumana ou degradante:
I - desnudamento parcial ou total;
II - qualquer conduta que implique a introdução de objetos nas cavidades corporais da pessoa revistada;
III - uso de cães ou animais farejadores, ainda que treinados para esse fim;
IV - agachamento ou saltos.
De todos estes argumentos, pode-se concluir que existem sólidas razões para o Poder Judiciário reconhecer a inconstitucionalidade das provas obtidas durante as revistas íntimas, ofensivas à dignidade da pessoa.
Não se pode concluir de outra forma quando se depara a fundo a dogmática penal e processual penal moderna, notadamente aquela conjugada com os valores constitucionais vigentes.
Ressalte-se o atual cenário nacional de produção legislativa, que sofre grande pressão de setores da sociedade. A pulverização da representação no Congresso Nacional vem, ao longo do tempo, incluindo na agenda dos congressistas temáticas polêmicas. Exemplo disso é a redução da maioridade penal, reformas políticas, dentre outras.
Neste cenário, ganha destaque a área penal. Dentro dos mais variados grupos (Feministas, GLBT, segurança pública, minorias), uma ferramenta vem sendo constantemente utilizada: a lei penal.
Sobre esse fenômeno, Jesús-María Silva Sánchez escreveu:
Pois bem, ante tais posturas doutrinárias, realmente não é nada difícil constatar a existência de uma tendência claramente dominante em todas as legislações no sentido da introdução de novos tipos penais, assim como um agravamento dos já existentes, que se pode encaixar no marco geral da restrição, ou a "reinterpretação" das garantias clássicas do Direito Penal substantivo e do Direito Processual Penal. Criação de novos "bens jurídico-penais", ampliação dos espaços de riscos jurídico-penalmente relevantes, flexibilização das regras de imputação e relativização dos princípios político-criminais de garantia não seriam mais do que aspectos dessa tendência geral, à qual cabe referir-se com o termo "expansão". (Sánchez, Jesús-Maía Silva. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. 3 ed - São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, fl. 28)
Percebe-se de forma cristalina como essa "expansão" tem se materializado na sociedade moderna. O Estado, de forma leniente, não faz mudanças sociais básicas e não implementa condições estruturantes. Em síntese: não cumpre grande parte das promessas sociais inseridas na Constituição da República, após o transcurso de mais de um quarto do século. Efetivamente, a omissão estatal vem, gradativamente, refletindo-se no incremento da criminalidade. Consequência disso, também, são as chamadas mudanças sociais contemporâneas, notadamente aquelas advindas de uma "sociedade de risco", expressão cunhada por Ulrich Beck.
Todavia, cumpre destacar, pela missão institucional atribuída ao Poder Judiciário, que esta forma de resolver os conflitos agrava a situação. O Direito Penal surgiu como forma última de resolução dos conflitos. Para atuar onde nenhuma outra norma alcançou.
Nesse sentido, fazem-se importantes as palavras de Aury Lopes Jr.:
O movimento da lei e ordem (Law and order) é a mais clara manifestação penal do modelo neoliberal, dos movimentos de extrema direita. É a "velha megera Direita Penal", na expressão de Karam. [...]. Não é necessário maior esforço para ver que exemplo claro do fracasso nos dá o próprio modelo brasileiro. [...]. É sempre importante destacar que a criminalidade é fenômeno complexo, que decorre de um feixe de elementos (fatores biopsicossociais), em que o sistema penal desempenha um papel bastante secundário na sua prevenção. [...]. Dessarte, quanto maior for o narcisismo penal, maior deve ser nossa preocupação com o instrumento processo. Se o direito penal falha em virtude da panpenalização, cumpre ao processo penal o papel de filtro, evitando o (ab)uso do poder de perseguir e punir. (Jr, Aury Lopes. Fundamentos do processo penal: introdução crítica. São Paulo: Saraiva, 2015, fls. 45/48).
Nesta ordem de ideias, o processo penal desponta como instrumento eficaz a afastar o arbítrio do Estado em atitudes atentatórias contra os cidadãos, em suas diversas rotinas e procedimentos adotados.
A pena de prisão, aquela que tanto se quer implantar com o modelo de Estado Policial em que vivemos, há muito se encontra defasado. Sólida a doutrina de Bitencourt sobre o assunto:
Um dos argumentos que mais se mencionam quando se fala na falência da prisão é o seu efeito criminógeno. Muitos autores sustentam essa tesa, que, aliás, já havia sido defendida pelos positivistas e que se revitalizou no II Congresso Internacional de Criminologia (Paris, 1950). Considera-se que a prisão, em vez de frear a delinquência, parece estimulá-la, convertendo-se em instrumento que oportuniza toda espécie de desumanidade. Não traz nenhum benefício ao apenado; ao contrário, possibilita toda sorte de vícios e degradações. (Bitencourt, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. 4 ed - São Paulo: Saraiva, 2011, fl. 165).
Percebe-se, então, que não é o recrudescimento da lei penal e, o consequente entulhamento de seres humanos em sistemas penitenciários falidos que resolverão os problemas sociais no Brasil.
Por isso, ressalte-se, merece ainda mais destaque a função do processo penal. Permeado pelos princípios constitucionais, esta ferramenta encontra-se disponível como fiel da balança. Instrumento poderoso nas mãos dos juristas para sanar falhas terríveis de Estado.
Nessa toada, ganha relevo o papel dos direitos humanos. A concepção de um direito processual penal como instrumento último de uma garantia constitucionalista dos valores mais preciosos do ser humano, passa necessariamente pela imbricação do direito processual penal com os direitos humanos.
Sobre o tema esclarece Ana Elisa Liberatore S. Bechara:
A relação entre direito penal e direitos humanos sempre foi ambígua, exprimindo uma tensão antinômica entre dois polos. Tal antinomia reside na própria essência do ius puniendi, que atinge direitos fundamentais do indivíduo, a começar por sua liberdade. De outro lado, o sistema penal exerce também uma função de proteção dos direitos fundamentais, por meio da incriminação de comportamentos, no contexto de um movimento duplo, afirmando positivamente valores e atribuindo sentido delitivo à sua transgressão, tudo com o fim de resguardar a segurança e a convivência harmônica no âmbito de determinada sociedade. A busca do ponto de equilíbrio entre os interesses envolvidos (segurança social e direitos individuais) revela-se, assim, uma das mais sérias dificuldades no estabelecimento do conteúdo e da legitimidade da intervenção jurídico-penal, estando, justamente por isso, sempre sujeita à revisão. (Direito Penal Contemporâneo. Mendes, Gilmar Ferreira e Bottini, Eugênio Pacelli Pierpaolo Cruz. São Paulo: Saraiva, 2011, fl. 153).
A dogmática penal e processual penal tendem, cada vez mais, a assumir um viés "garantista", nos moldes propostos por Luigi Ferrajoli, o qual propõe:
Cada uma das implicações deônticas – ou princípios – de que se compõe todo modelo de direito penal enuncia, portanto, uma condição sine qua non, isto é, uma garantia jurídica para a afirmação da responsabilidade penal e para a aplicação da pena. Tenha-se em conta de que aqui não se trata de uma condição suficiente, na presença da qual esteja permitido ou obrigatório punir, mas sim de uma condição necessária, na ausência da qual não está permitido ou está proibido punir. [...]. A função específica das garantias no direito penal [...] na realidade não é tanto permitir ou legitimar, senão muito mais condicionar ou vincular e, portanto, deslegitimar o exercício absoluto da potestade punitiva. (Ferrajoli, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3 ed.- São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, fl. 90/91).
Pelas lições de Ferrajoli, tem-se que o garantismo penal é uma corrente doutrinária que acende o debate sobre os limites do poder de punir. Conforme o autor, estes limites são encontrados por uma série de princípios, especialmente, os princípios insculpidos nas constituições, tratados e convenções internacionais.
Afigura-se compreensível que o processo penal, tomado por esse sentimento de garantir os direitos fundamentais mais básicos de qualquer cidadão, perfilha-se com a dogmática constitucional, aqui antes exposta, tudo para evitar que a instrumentalidade processual legitime o abuso, a transgressão de direitos constitucionalmente garantidos.
Nesse sentido, expõe Salo de Carvalho:
A discussão sobre criminologia, direitos humanos e garantismo penal será proposta a partir de dois vínculos que, desde a perspectiva crítica que orienta a investigação, possibilitarão compreender as virtudes e os limites do paradigma garantista na composição de modelo político-criminal de tutela dos direitos fundamentais. [...]. O segundo vínculo é estabelecido no plano da instrumentalidade, das práticas jurídicas cotidianas. Para além dos discursos de (des)legitimação das políticas públicas que afetam os direitos humanos (ferramenta proporcionada pela abordagem teórica), o paradigama garantista contemporâneo apresenta mecanismos que devem ser valorados em sua (in)idoneidade para impulsionar ações cotidianas de efetivação de direitos. [...]. (Carvalho, Salo de. Antimanual de criminologia. 6 ed. - São Paulo: Saraiva, 2015, fls. 202/203).
E mais:
A teoria do garantismo penal, apesar de marcada pelo ideário iluminista e naturalmente pela pretensão universalista típica dos paradigmas científicos, apresenta no contexto global de violações aos direitos humanos interessante mecanismo de fomento à minimização dos poderes punitivos. Desta maneira, visualiza-se a otimização dos direitos fundamentais desde a perspectiva crítica da dogmática jurídico-penal, ou seja, percebe o sistema normativo como instrumental eminentemente prático que deve ser pensado e desenvolvido para a resistência ao inquisitorialismo nas práticas judicias e administrativas cotidianas. (Carvalho, Salo de. Antimanual de criminologia. 6 ed. - São Paulo: Saraiva, 2015 fl. 228).
De todas essas observações, cabe um cotejo analítico com os fatos narrados nos autos.
Efetivamente, os órgãos de persecução penal do Estado encontraram drogas em posse de J. M. F. da C. Precisamente, esta droga foi apreendida após a ré passar pela revista íntima, procedimento administrativo frontalmente contrário à dignidade e liberdade de qualquer ser humano. Desta apreensão surgiu o processo em testilha, onde se acusa a ré e seu companheiro C. H. S. de A. por tráfico de drogas, tudo nos termos da denúncia de fls. 40/42.
Ora, diz respeito a toda a matéria discutida até o presente momento, a forma como a prova foi produzida.
Em uma análise meramente formal e fria da letra da lei, possivelmente este caso, ao fim e ao cabo, resultaria na condenação dos réus.
Todavia, a constitucionalidade da prova produzida é frágil. Tão frágil que não passa incólume pela exauriente análise tratada supra.
Rezam os artigos 155 e 157 do Código de Processo Penal:
Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova [...]
Art. 157. São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais.
Destes preceitos, emana ordem clara: o juiz é livre para apreciar as provas produzidas pelas partes, bastando fundamentar de forma coerente, desde que, todavia, não utilize provas ilícitas.
Pelas razões já expostas, a prova dos autos afronta diretamente a Constituição. Seja por não respeitar a dignidade humana, seja por ferir a igualdade, a liberdade, a intimidade etc.
Não é razoável, ademais que, por intermédio do processo. O Estado através de seus órgãos de persecução penal queira validar, ou melhor, perpetuar a prática inconstitucional levada à cabo diuturnamente.
Ressalte-se a importância do enfrentamento da matéria por meio de um processo penal de matriz constitucional, o que, necessariamente, envolve todos os seus fatores e, nitidamente, as provas.
Antonio Scarance Fernandes, estudioso sobre o tema, ensina:
A história do processo penal é marcada por movimentos pendulares, ora prevalecendo ideias de segurança social, de eficiência repressiva, ora predominando pensamentos de proteção ao acusado, de afirmação e preservação de suas garantias. [...]. Para isso, os países inseriram em suas Constituições regras de cunho garantista, que impõe ao estado à própria sociedade o respeito aos direitos individuais, tendo o Brasil, segundo José Afonso da Silva, sido o primeiro a introduzir em seu texto normas desse teor. [...]. Disso tudo extrai-se que o processo penal não é apenas um instrumento técnico, refletindo em si valores políticos e ideológicos de uma nação. (Fernandes, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 6 ed - São Paulo, Revista dos Tribunais, 2010, fls. 19 e 22).
E vai além o festejado doutrinador:
O tema da prova ilícita vem ganhando espaço entre as preocupações fundamentais do direito processual moderno. Em virtude do grande desenvolvimento da tecnologia, a vida privada, a intimidade, a honra da pessoa humana tornou-se mais facilmente vulnerável. Isso impõe ao legislador cuidado para, na outorga de mecanismos hábeis a eficiente repressão à criminalidade, não autorizar invasões desnecessárias ou desmedidas na vida da pessoa. [...]. Não se pode, em nome da segurança social, compreender uma garantia absoluta da privacidade, do sigilo, no processo penal, mas também não se pde conceber, em homenagem ao princípio da verdade real, que a busca incontrolada e desmedida da prova possa, sem motivos ponderáveis e sem observância de um critério de proporcionalidade, ofender sem necessidade o investigado ou o acusado em seus direitos fundamentais e no seu direito a que a prova contra si produzida seja obtida por meios ilícitos. [...]. São várias as inviolabilidades postas como garantias na Constituição Federal para o resguardo dos direitos fundamentais da pessoa: inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra, da imagem (art. 5º, X) [...]. A carta Magna protege, ainda, o homem contra a tortura ou tratamento desumano ou degradante (art. 5º, III) [...]. A violação destas e de outras garantias individuais de natureza constitucional para a produção de prova acarreta a formação de prova ilítica. (Fernandes, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 6 ed - São Paulo, Revista dos Tribunais, 2010 , fl. 83).
De todo o arrazado, não restam dúvidas acerca do tema: a prova colhida durante a revista íntima, de cunho nitidamente vexatória, é inconstitucional, por infringência ao postulado da dignidade humana, por ser degradante o tratamento, além de outros fundamentos. Nessa medida, há de se concluir, com fulcro nos artigos 157, CPP c/c 5º, LVI, CRFB, pela ilicitude da prova colhida nos presentes autos, razão pela qual a absolvição dos réus é a medida que se impõe.
Em sede de conclusão, anuncia-se que a própria jurisprudência pátria está acordando para a realidade inconstitucional das provas obtidas durante as revistas íntimas, de cunho vexatória, rechaçando-a como modalidade probatória apta a embasar condenação penal.
Neste particular, colhe-se do julgado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:
APELAÇÃO-CRIME. TRÁFICO DROGAS. PRELIMINARES REJEITADAS. INGRESSO NO PRESÍDIO. ATIPICIDADE. REVISTA VEXATÓRIA. ABSOLVIÇÃO. Crimes de perigo abstrato. Descabe a arguição de inconstitucionalidade dos crimes de perigo abstrato. Questão já enfrentada no âmbito dos Tribunais Superiores e com entendimento firmado nesta Câmara Criminal. Inversão da ordem dos questionamentos. A declaração de nulidade processual em razão de violação ao artigo 212 do Código de Processo Penal depende de irresignação tempestiva da parte, isto é, de registro de inconformidade na ata de audiência - o que não ocorreu. Preliminar rejeitada. Ingresso em casa prisional. Crime impossível. A Portaria nº 138 da SUSEPE determina que todos os visitantes serão submetidos à revista pessoal e minuciosa. Logicamente, portanto, não é possível a entrada de entorpecentes em casas prisionais, pois deve existir aparato estatal suficientemente eficiente para impedi-la. Entendimento já consolidado no sentido de que, teoricamente, a tentativa de ingresso em casa prisional portando substâncias entorpecentes é conduta que configura crime impossível, pela ineficácia absoluta do meio utilizado para consumação do fato. A responsabilidade sobre eventuais e consabidas ineficiências do Estado em gerir as casas prisionais e inibir o comércio de drogas em suas dependências - muitas vezes o próprio fator de manutenção da "ordem" do estabelecimento - não pode recair sobre terceiros. Precedentes da Câmara. A par da impossibilidade acima delineada, deve-se atentar para o caráter vexatório e degradante da revista íntima, como ocorreu no caso concreto, em violação à dignidade e à intimidade. Projetos de Lei aprovados, pela Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro e pelo Senado Federal, no sentido de decretar a inconstitucionalidade da revista íntima manual, salvo exceções previstas. Precedente da Câmara que declarou ilícita a prova colhida sob violação da dignidade humana e determinou o trancamento do processo. Absolvição operada, com fundamento na atipicidade. RECURSO PROVIDO. ABSOLVIÇÃO. POR MAIORIA. (Apelação Crime Nº 70057905069, Terceira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Diogenes Vicente Hassan Ribeiro, Julgado em 25/06/2015. Grifo não-original)
Dessa forma, pelas razões de fato e de direito, amplamente expostas e debatidas nesta sentença, concluo pela declaração de ilicitude da prova colhida por meio da vistoria manual procedida na acusada J. e, em consequência, absolvo os réus do crime de narcotraficância lhe imputados.
DISPOSITIVO
Ante o exposto, JULGO IMPROCEDENTE o pedido formulado na denúncia movida pelo Ministério Público contra J. M. F. da C. e C. H. S. de A., já qualificados nos autos, para o fim de declarar ilícita a prova colhida por ocasião da revista íntima manual realizada na primeira ré, quando em visita ao segundo réu na Penitenciária de Florianópolis, com base na Instrução Normativa n. 01/2010 do DEAP/SC, por afronta ao disposto nos arts 1º, Inciso III; 3º, Inciso IV e 5º, Incisos III, X e LVI da Constituição da República. Em consequência, ABSOLVO ambos os réus da acusação da prática do crime de tráfico de entorpecentes, previsto no artigo 33, caput, da Lei 11.343/06, com fulcro no artigo 386, VII, do Código de Processo Penal.
REVOGO a medida cautelar de comparecimento periódico, imposta à ré J., nos termos da decisão de fls. 59/63.
Sem condenação ao pagamento das custas e despesas processuais, bem como desnecessária a fixação de honorários advocatícios, tendo em conta que a defesa dos réus foi patrocinada pela Defensoria Pública Estadual.
Determino a destruição da droga apreendida nos autos, conforme disposto nos art. 50, §§ 3º, 4º e 5º da Lei n. 11.343/06. Oficie-se à Delegacia de Polícia, para tanto.
Publique-se. Registre-se. Intimem-se.
Transitado em julgado, certifique-se e arquive-se.
Florianópolis (SC), 16 de julho de 2015.
Rudson Marcos
Juiz de Direito
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