O Procurador de Justiça do Estado da Bahia Rômulo de Andrade Moreira emitiu parecer nos autos n. 0324350-78.2011.8.05.0001, em tramitação no TJBA, defendendo a inconstitucionalidade da Súmula n. 231 do STJ. O parecer segue abaixo e merece ser lido. A sofisticada fundamentação demonstra que não se pode aplicar uma Súmula simplesmente por ser súmula, ainda mais quando está equivocada. Rômulo de Andrade Moreira lançou recentemente o livro "O Procedimento Comum" pela Editora do Empório do Direito (confira aqui), além de ser articulista do site, com diversos artigos (confira aqui).
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DA BAHIA
PROCURADORIA DE JUSTIÇA CRIMINAL
PROCESSO Nº. 0324350-78.2011.8.05.0001 – APELAÇÃO CRIMINAL ORIGEM: SALVADOR – BA ÓRGÃO JULGADOR: PRIMEIRA CÂMARA CRIMINAL – PRIMEIRA TURMA APELANTE: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DA BAHIA APELADO: D. S. P. RELATOR: DESEMBARGADOR JOÃO BOSCO DE OLIVEIRA SEIXAS PARECER Nº. 3714/2015“Por fim defendemos que a extensão do modelo de precedentes normativos formalmente vinculantes para o direito penal e para o processo penal exige algumas ressalvas dirigidas a especificidade das garantias penais. (…) Somente respeitadas as características dos direitos fundamentais envolvidos, o sistema de precedentes deixará de resultar no vício do totalitarismo judicial, pelo qual apenas os juízes de vértice serão os senhores do direito e poderá ser considerado uma contribuição no modelo garantista (MG) em prol da artificialidade do direito e da racionalidade jurídica.” [1]
Trata-se de uma apelação criminal interposta pelo Ministério Público do Estado da Bahia, irresignado com a sentença condenatória proferida nos autos da ação penal nº. 0324350-78.2011.8.05.0001, que tramitou perante o Juízo de Direito da 17ª. Vara Criminal de Salvador, cujo teor condenou o apelado a uma pena de um ano e seis meses de reclusão, substituída por uma restritiva de direito e multa, pela prática da conduta tipificada no art. 14, caput, da Lei nº. 10.826/2003.
Recebida a denúncia (fls. 32) e apresentada a resposta à acusação (fls. 48), ocorreu audiência de instrução e julgamento, na qual foram ouvidas as testemunhas arroladas pela acusação (fls. 63, 65 e 67), bem como a testemunha arrolada pela defesa (fls.68), procedendo-se, em seguida, o interrogatório (fls. 71/72), tudo em gravação audiovisual acostada às fls. 70.
Ultimada a instrução criminal e oferecidas as alegações finais, do Ministério Público às fls. 73/75 e do apelado às fls. 77/78, sobreveio sentença (fls. 79/89), que julgou procedente o pedido formulado na denúncia.
Inconformado, o Ministério Público interpôs o presente recurso (fls. 91), pleiteando, em epítome, nas razões recursais de fls. 92/94, a reforma da sentença tão somente no que tange à dosimetria penal, aduzindo que “atenuante genérica não pode diminuir a pena para um patamar abaixo do mínimo legalmente previsto”.
Por sua vez, em sede de contrarrazões (fls. 96/9100), o apelado entendeu que a sentença não deve ser reformada, pugnando seja negado provimento ao recurso de apelação interposto, ratificando in totum a decisão condenatória do Juízo a quo.
Eis um sucinto relatório.
Os autos foram encaminhados ao Ministério Público para o parecer.
Verificada a tempestividade do recurso em tela, bem como os demais requisitos de admissibilidade exigidos para o seu manejo, passamos à análise do mérito.
Inconsteste a materialidade e autoria delitiva, inclusive diante da confissão do apelado, constata-se que a irresignação Ministerial diz respeito, unicamente, à redução do quantum da reprimenda aquém do mínimo em razão da aplicação da atenuante genérica prevista no art. 65, III, “d”, do Código Penal, na segunda fase da dosimetria penal.
É cediço que na aplicação da pena o Magistrado deve ater-se ao conteúdo do injusto e da culpabilidade da ação.
Percebe-se da análise dos autos que a aludida atenuante genérica foi corretamente aplicada, respeitando, assim, o postulado normativo da proporcionalidade que se aplica nas hipóteses em que haja uma relação de causalidade entre um fim e determinado meio escolhido para atingi-lo. A exigência da realização desses fins implica a adoção de medidas adequadas, necessárias e proporcionais em sentido estrito o que nos parece ter ocorrido.
O postulado da proporcionalidade, cujo aprimoramento e autonomia como norma jurídica dissociada das regras e princípios deveu-se, sobretudo, aos esforços da dogmática alemã e da construção pretoriana elaborada pelo Bundesverfassungsgericht, desdobra-se em três outros “sub-princípios”: O sub-princípio da necessidade (Erforderlichkeit), da pertinência ou aptidão (Geeignetheit) e o da proporcionalidade em sentido estrito (Abwägungsgebot). Juntamente com tais “sub-princípios” encontramos as máximas da proibição de excesso ( Übermassverbot) e da exigibilidade da escolha do meio mais suave (der Grundsatz der Wahl des mildesten Mittels). Na verdade todos esses “sub-princípios” constituem aspectos do postulado da proporcionalidade não se cogitando de fórmulas vazias, retóricas ou meramente políticas possuindo indiscutível significação jurídica como valor normativo e, portanto, vinculatividade, devendo orientar o atuar seja do administrador, legislador ou julgador, mormente em se tratando de aplicação de pena cujas finalidades (privação da liberdade, restrição de direitos ou constrição econômica) devem estar de acordo com os meios eleitos para tanto.
Em nosso artigo, conceituamos a confissão, in verbis:
“A confissão é um meio de prova previsto no Código de Processo Penal, disciplinado especificamente entre os arts. 197 a 200. Outrora considerada como a regina probationum, hoje seu valor probatório é relativo, devendo ser corroborada por outros meios de prova também admitidos e avaliada em conformidade com o sistema do livre convencimento (art. 197). Em poucas palavras, podemos conceituar a confissão como a admissão por parte do acusado da veracidade da imputação que lhe foi feita pelo acusador, total ou parcialmente. Para Carlos Duran, “la confesión del acusado consiste en el expreso reconocimiento de haber ejecutado el hecho delictivo de que se le acusa. Existe confesión aun cuando el reconocimiento del acusado sea parcial, bien porque sólo admita una parte del hecho o de los hechos imputados al mismo, bien porque se limite a considerarse como un simple cómplice de la perpetración del delito, rechazando su consideración como autor o como cooperador necesario”.[2] Historicamente a confissão já foi considerada a rainha das provas, a ponto de serem legítimos, para consegui-la, métodos verdadeiramente desumanos, como a tortura. Em reação (e por razões eminentemente humanitárias), muitos passaram a pregar uma posição diametralmente oposta e radicalmente concebida: o desvalor absoluto da confissão, negando-se-lhe legitimidade como meio de prova, taxando-a de imoral e cruel, sob o argumento de que feria a própria natureza humana o admitir a própria culpa. Haveria, portanto, uma impossibilidade moral na confissão. Hoje se valora relativamente tal prova, pois ainda que não possa ser considerada de forma incontestável, tampouco se pode concebê-la como meio de prova imprestável. Relativizou-se, portanto, o seu valor probatório. Esta tendência doutrinária consubstanciou-se no art. 197 do Código de Processo Penal. Pelo sistema do livre convencimento, o Juiz 'deverá confrontá-la com as demais provas do processo, verificando se entre ela e estas existe compatibilidade ou concordância'. Podemos, em linhas gerais e de regra, destacar as seguintes características da confissão: a) É um ato personalíssimo, não podendo ser produzido por terceiro, ainda que portador de uma procuração com poderes especialíssimos. Surge, de regra, na oportunidade do interrogatório. Se for feita em outra ocasião, deve ser tomada por termo nos autos (art. 199, CPP). b) Produz-se oralmente, devendo ser reduzida a termo para se completar validamente, salvo se se tratar de acusado mudo ou surdo-mudo (art. 192, II e III, CPP). c) Deve ser voluntária e espontânea, livre de qualquer coação ou constrangimento ilegal. Sequer as perguntas sugestivas e capciosas devem ser empregadas para se conseguir a confissão, mesmo porque o interrogatório sujeita-se a ”una serie de reglas de lealtad procesal“.[3] A propósito, veja-se o art. 8º., 3 do Pacto de São José da Costa Rica - Convenção Americana sobre Direitos Humanos, de 22 de novembro de 1969, já incorporado em nosso ordenamento jurídico, por força do Decreto n.º 678 de 6 de novembro de 1992: “a confissão do acusado só é válida se feita sem coação de nenhuma natureza”. Como diz Mittermaier, “a confissão deve ser o produto da vontade livre do acusado; é preciso que ele tenha tido a intenção firme de dizer a verdade; é preciso que nem o temor, nem o constrangimento, nem alguma inspiração estranha pareça ditar-lhe os meios”.[4] Ademais, é importante que o acusado, ao confessar, esteja física e mentalmente em perfeitas condições e seja imputável. Em respeito à pessoa do imputado e à inviolabilidade de sua consciência, Ferrajoli adverte sobre a proibição “non solo de arrancar la confesión con violência, sino también de obtenerla mediante manipulaciones de la psique, con drogas o con prácticas hipnóticas”.[5] d) É divisível ou cindível, visto que o Juiz, ao julgar, pode levar em conta apenas uma parte da confissão, desprezando uma outra: pode, por exemplo, aceitar a confissão de um homicídio e não se convencer quanto à admissão da lesão corporal também imputada, em concurso, ao réu. Esta característica está expressa no art. 200 do CPP. Nada obstante, encontramos julgados nestes termos: “Indivisibilidade da confissão. Não se pode cindir o interrogatório do acusado, aproveitando-o na parte em que o compromete e afastando-o naquela em que possa favorecê-lo eventualmente”. (JTACrim, 73/23). e) É retratável, contanto que se justifique a negação da confissão anteriormente feita como, por exemplo, se o réu mostrar que, ao confessar inicialmente, incidiu em erro ou não se encontrava em plenas condições de saúde. Veja-se a propósito a jurisprudência: “A confissão pode ser retratada em juízo, mas para que seja aceita essa retratação é mister que, além de verossímil, encontre algum amparo ainda que em elementos indiciários ou circunstanciais dos autos”. (RT, 393/345). A retratabilidade da confissão, assim como a sua divisibilidade, é admitida expressamente pelo código, no mesmo art. 200.” [6]
A propósito, vejamos os seguintes julgados dos Tribunais Superiores:
Confissão espontânea, ainda que parcial, é circunstância atenuante. Seguindo essa jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, a Primeira Turma concedeu Habeas Corpus (HC 99436) para que um condenado a sete anos de reclusão por homicídio tentado, tenha sua pena recalculada. A relatora do caso, Ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha, disse que ao fixar a pena o juiz não considerou a incidência da confissão espontânea como atenuante. Ao julgar o Habeas Corpus 69479, disse a Ministra, o STF acolheu entendimento do relator daquele caso, Ministro Marco Aurélio, no sentido de que “a simples postura de reconhecimento da prática do delito, e portanto da responsabilidade, atrai a observância – por sinal obrigatória – da regra insculpida na alínea “d” do inciso III do artigo 65 do CP”. Ainda de acordo com o Ministro Marco Aurélio, disse a relatora, “tanto vulnera a lei aquele que exclui do campo de aplicação hipótese contemplada como quem inclui requisito nela não contido”. A partir dali, revelou a Ministra Cármen Lúcia, o Supremo passou a reconhecer que a confissão espontânea, ainda que parcial, é circunstância atenuante. Com este argumento, a Ministra votou no sentido de conceder a ordem para que, mantida a condenação, seja considerada, na fixação da pena, a atenuante prevista no artigo 65, III, d, do CP. Todos os Ministros presentes à sessão acompanharam a relatora. (STF - HC 99436, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Primeira Turma, julgado em 26/10/2010, DJe-235 DIVULG 03-12-2010 PUBLIC 06-12-2010 EMENT VOL-02445-01 PP-00113) (grifos nossos).
De toda maneira, ainda que parcial, não pode ser ignorada como atenuante. Assim decidiu o Superior Tribunal de Justiça ao conceder Habeas Corpus 282.572 para reduzir a pena de um réu condenado por roubo de celular no Rio de Janeiro. Seguindo o voto do relator, Ministro Rogerio Schietti Cruz, a 6ª. Turma entendeu que se houve confissão (total ou parcial, qualificada ou não), e se isso foi considerado pelo juiz para embasar a condenação, a atenuante deve ser usada no cálculo da pena. No caso, o réu foi condenado a quatro anos e oito meses de prisão, em regime inicial fechado. O juiz não considerou a confissão porque o réu teria apenas admitido que “pediu” o telefone à vítima, sem ameaçá-la, dizendo a frase “perdeu o telefone” — gíria utilizada em roubos. No entanto, essa informação ajudou a condená-lo. A defesa apelou ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, onde conseguiu o reconhecimento da tentativa, fixando-se a pena em 3 anos, 1 mês e 10 dias. Os advogados recorreram, então, ao Superior Tribunal de Justiça. Sustentou a ocorrência de constrangimento ilegal porque deveria ter sido reconhecida a incidência da atenuante da confissão espontânea, ainda que parcial, em favor do condenado. Além disso, pediu que a confissão, na fase de cálculo da pena, fosse compensada com a agravante da reincidência. Segundo o Ministro Schietti, o Superior Tribunal de Justiça entende que, se a confissão do acusado foi utilizada para corroborar as provas e fundamentar a condenação, deve incidir a atenuante prevista no artigo 65, inciso III, "d", do Código Penal, “sendo irrelevante o fato de a confissão ter sido espontânea ou não, total ou parcial, ou mesmo que tenha havido posterior retratação”. O relator verificou que a confissão contribuiu para a comprovação da autoria do roubo e que o benefício da atenuante foi afastado porque, embora o acusado tenha confirmado a subtração do celular, ele negou ter feito ameaça à vítima. No outro ponto levantado pela defesa, o Ministro Schietti admitiu a compensação da atenuante com a agravante, por “serem igualmente preponderantes”, de acordo com o artigo 67 do CP e conforme julgamento do EREsp 1.154.752 na 3ª Seção. A pena final ficou em 2 anos e 8 meses. A turma fixou o regime inicial semiaberto, seguindo a Súmula 269, ainda que o condenado fosse reincidente. Isso porque a pena é inferior a quatro anos e as circunstâncias judiciais são favoráveis. (Com informações da Assessoria de Imprensa do STJ) (grifo nosso).
“Segundo a jurisprudência desta Corte de Justiça, para haver a incidência da atenuante prevista no artigo 65, inciso III, alínea "d", do Código Penal, mostra-se irrelevante a forma que tenha sido manifestada a confissão, se integral ou parcial, notadamente quando o juiz a utiliza para fundamentar a condenação.” (STJ - HC 202.394/RJ, Rel. Ministro GURGEL DE FARIA, QUINTA TURMA, julgado em 25/11/2014, DJe 03/12/2014) (grifo nosso).
Dessarte, imperioso ressaltar a necessidade da aplicação da atenuante genérica da confissão, mesmo que o quantum da reprimenda seja reduzido para aquém do patamar mínimo previsto em lei, malgrado o disposto no equivocado Verbete nº. 231 da súmula do Superior Tribunal de Justiça, porquanto fere o Princípio Constitucional da Individualização da Pena, previsto no art. 5º., XLVI, da Constituição da República.
Neste sentido, conferir a doutrina: “A incidência de atenuantes remete à individualização da pena, princípio consagrado no art. 5º., XLVI, da Constituição Federal que, como ensina a boa doutrina, expressa-se em três momentos: 1) na tipificação de condutas e previsão abstrata de penas pelo Legislativo, na proporção da gravidade da ação ou omissão; 2) na aplicação da pena pelo Judiciário, consideradas as condições do indivíduo e as circunstâncias em que praticada a conduta incriminada; e 3) na execução das penas previstas pelo Legislativo e aplicadas pelo Judiciário, dependendo a justa retribuição e a melhor prevenção da adequação das formas de cumprimento da reprimenda (arts. 5º., 8º. e outros da Lei de Execução Penal)”.[7]
Outrossim, ensina Luiz Luisi, “o processo de individualização da pena se desenvolve em três momentos complementares: o legislativo, o judicial, e o executório ou administrativo.” (grifo nosso). Explicitando este conceito, o mestre gaúcho ensina: “Tendo presente as nuanças da espécie concreta e uma variedade de fatores que são especificamente previstas pela lei penal, o juiz vai fixar qual das penas é aplicável, se previstas alternativamente, e acertar o seu quantitativo entre o máximo e o mínimo fixado para o tipo realizado, e inclusive determinar o modo de sua execução.”(...) “Aplicada a sanção penal pela individualização judiciária, a mesma vai ser efetivamente concretizada com sua execução.” (...) “Esta fase da individualização da pena tem sido chamada individualização administrativa. Outros preferem chamá-la de individualização executória. Esta denominação parece mais adequada, pois se trata de matéria regida pelo princípio da legalidade e de competência da autoridade judiciária, e que implica inclusive o exercício de funções marcadamente jurisdicionais.”(...) “Relevante, todavia no tratamento penitenciário em que consiste a individualização da sanção penal são os objetivos que com ela se pretendem alcançar. Diferente será este tratamento se ao invés de se enfatizar os aspectos retributivos e aflitivos da pena e sua função intimidatória, se por como finalidade principal da sanção penal o seu aspecto de ressocialização. E, vice-versa.” E conclui o autor: “De outro lado se revela atuante o subjetivismo criminológico, posto que na individualização judiciária, e na executória, o concreto da pessoa do delinqüente tem importância fundamental na sanção efetivamente aplicada e no seu modo de execução.”[8] (grifos nossos).
Segundo o profesor peruano, Luis Miguel Reyna Alfaro, “la individualización judicial de la pena a imponer, es uno de los más importantes aspectos que deben ser establecidos por los tribunales al momento de expedir sentencia. Sostienen por ello con absoluta razón ZAFFARONI/ ALAGIA/ SLOKAR que la individualización judicial de la pena debe servir para ´contener la irracionalidad del ejercicio del poder punitivo`. Este proceso de individualización judicial de la pena es ciertamente un proceso distinto y posterior al de determinación legal de la misma que es realizado por el legislador al momento de establecer normativamente la consecuencia jurídica. Esta distinción es importante porque nos permite marcar la diferencia –a la que recurriremos posteriormente- entre ´pena abstracta` y ´pena concreta`. La primera está relacionada a la pena determinada legalmente por el legislador en el proceso de criminalización primaria, mientras la segunda se refiere a la pena ya individualizada por el operador de justicia penal, dentro del proceso de criminalización secundaria. Adicionalmente, ésta distinción ´pena abstracta- pena concreta` sirve para comprender que el proceso de individualización judicial de la pena es un mecanismo secuencial que pasa, en primer lugar, por establecer cuál es la pena establecida por el legislador para, en segundo lugar y sobre esos márgenes, establecer la aplicable al caso concreto y la forma en que la misma será impuesta. (...) Como se indicó anteriormente, el proceso de individualización judicial de la pena debe necesariamente encontrarse vinculado a los fines de la pena, lo que obliga a introducirnos al inacabable debate sobre el fin de la pena.”[9] (grifo nosso).
Neste mesmo sentido, Rodríguez Devesa afirma que “pueden distinguirse tres fases en el proceso de determinación de la pena aplicable: individualización legal; individualización judicial e individualización penitenciaria.”[10] (Grifo nosso).
Ademais, não esqueçamos que o caput do art. 65 do Código Penal impõe a aplicação das atenuantes genéricas ali indicadas ao afirmar que todas elas “sempre” diminuirão a pena. E não se diga que, usando o mesmo raciocínio, estaríamos concordando com a aplicação de agravantes para aumentar a pena além do máximo legal, já que também consta do art. 61 do Código Penal (quando a lei elenca as circunstâncias que agravam a pena) o vocábulo “sempre”. Tal afirmativa soa estranho à luz do Princípio do Favor Rei ou Princípio do Favor Libertatis.
Tal princípio deve ser observado em toda e qualquer interpretação das normas penais. Lembro, com Giuseppe Bettiol, que em uma “determinada óptica, o princípio do favor rei é o princípio base de toda a legislação penal de um Estado inspirado, na sua vida política e no seu ordenamento jurídico, por um critério superior de liberdade.” (...) Não há, efetivamente, Estado autenticamente livre e democrático em que tal princípio não encontre acolhimento. É uma constante das articulações jurídicas de semelhante Estado, um empenho no reconhecimento da liberdade e autonomia da pessoa humana.” (...) No conflito entre o jus puniendi do Estado por um lado e o jus libertatis do arguido por outro, a balança deve inclinar-se a favor deste último se se quer assistir ao triunfo da liberdade.”[11]
Nesse diapasão, como já escreveu Cappelletti, “a conformidade da lei com a Constituição é o lastro causal que a torna válida perante todas.”[12] Logo, devemos interpretar as leis ordinárias em conformidade com a Carta Magna, e não o contrário!
Como magistralmente escreveu Frederico Marques, a Constituição Federal “não só submete o legislador ordinário a um regime de estrita legalidade, como ainda subordina todo o sistema normativo a uma causalidade constitucional, que é condição de legitimidade de todo o imperativo jurídico. A conformidade da lei com a Constituição é o lastro causal que a torna válida perante todos.”[13]
James Goldshimidt[14] já afirmava no clássico “Problemas Jurídicos e Políticos del Proceso Penal” que a estrutura do processo penal de um país indica a força de seus elementos autoritários e liberais.[15]
Só poderíamos interpretar esses artigos literalmente se este método interpretativo fosse possível à luz da Constituição. A nós nos parece ser possível interpretá-los em conformidade com o texto constitucional, sem que se o declare inválido e sem “ultrapassar os limites que resultam do sentido literal e do contexto significativo da lei.”[16]
Nessa esteira, Jean-Louis Bergel leciona que “o método teleológico fundamentado na análise da finalidade da regra, no seu objetivo social, faz seu espírito prevalecer sobre sua letra, ainda que sacrificando o sentido terminológico das palavras”.[17]
Se verdade é que “por detrás da lei está uma determinada intenção reguladora, estão valorações, aspirações e reflexões substantivas, que nela acharam expressão mais ou menos clara”, também é certo que “uma lei, logo que seja aplicada, irradia uma acção que lhe é peculiar, que transcende aquilo que o legislador tinha intentado. A lei intervém em relações da vida diversas e em mutação, cujo conjunto o legislador não podia ter abrangido e dá resposta a questões que o legislador ainda não tinha colocado a si próprio. Adquire, com o decurso do tempo, cada vez mais como que uma vida própria e afasta-se, deste modo, das idéias dos seus autores”: teoria objetivista ou teoria da interpretação imanente à lei.[18]
A interpretação literal efetivamente deve ser o início do trabalho, mas não o completa satisfatoriamente.[19] Como nos ensina o Professor Miguel Reale, “a norma é sempre momento de uma realidade histórico-cultural, e não simples proposição afirmando ou negando algo de algo. (...) Se a regra jurídica não pode ser entendida sem conexão necessária com as circunstâncias de fato e as exigências axiológicas, é essa complexa condicionalidade que nos explica por que uma mesma norma de direito, sem que tenha sofrido qualquer alteração, nem mesmo uma vírgula, adquire significados diversos com o volver dos anos, por obra da doutrina e da jurisprudência. É que seu sentido autêntico é dado pela estimativa dos fatos, nas circunstâncias em que o intérprete se encontra. (...) Dizemos, assim, que uma regra ou uma norma, no seu sentido autêntico, é a sua interpretação nas circunstâncias históricas e sociais em que se encontra no momento o intérprete. Isto não quer dizer que sejamos partidários do Direito Livre. (...) Assim, o Juiz “não pode deixar de valorar o conteúdo das regras segundo tábua de estimativas em vigor no seu tempo. (...) E, concluindo, arremata o nosso filósofo: “o reajustamento permanente das leis aos fatos e às exigências da justiça é um dever dos que legislam, mas não é dever menor por parte daqueles que têm a missão de interpretar as leis para mantê-las em vida autêntica.”[20]
Carlos Maximiliano, a propósito, ensinava que o “Direito objetivo não é um conglomerado caótico de preceitos; constitui vasta unidade, organismo regular, sistema, conjunto harmônico de normas coordenadas, em interdependência metódica, embora fixada cada uma no seu lugar próprio.”[21]
Para finalizar, recorremos, mais uma vez, a Larenz:
“Mediante a interpretação ‘faz-se falar’ o sentido disposto no texto, quer dizer, ele é enunciado com outras palavras, expressado de modo mais claro e preciso, e tornado comunicável. A esse propósito, o que caracteriza o processo de interpretação é que o intérprete só quer fazer falar o texto, sem acrescentar ou omitir o que quer que seja. Evidentemente que nós sabemos que o intérprete nunca se comporta aí de modo puramente passivo.”[22]
Saliente-se, então, a lição de Cezar Roberto Bitencourt:
“O entendimento contrário à redução da pena para aquém do mínimo cominado partia de uma interpretação equivocada, que a dicção do atual art. 65 do CP não autoriza. Com efeito, esse dispositivo determina que as circunstâncias atenuantes “sempre atenuam a pena”, independentemente de já se encontrar no mínimo cominado. É irretocável a afirmação de Carlos Caníbal quando, referindo-se ao art. 65, destaca que “se trata de norma cogente por dispor o Código Penal que ‘são circunstâncias que sempre atenuam a pena’... e – prossegue Caníbal – norma cogente em direito penal é norma de ordem pública, máxime quando se trata de individualização constitucional de pena”. A previsão legal, definitivamente, não deixa qualquer dúvida sobre sua obrigatoriedade, e eventual interpretação diversa viola não apenas o princípio da individualização da pena (tanto no plano legislativo quanto judicial) como também o princípio da legalidade estrita. (…) Enfim, deixar de aplicar uma circunstância atenuante para não trazer a pena para aquém do mínimo cominado nega vigência ao disposto no art. 65 do CP, que não condiciona a sua incidência a esse limite, violando o direito público subjetivo do condenado à pena justa, legal e individualizada. Essa ilegalidade, deixando de aplicar norma de ordem pública, caracteriza uma inconstitucionalidade manifesta. Em síntese, não há lei proibindo que, em decorrência do reconhecimento de circunstância atenuante, possa ficar aquém do mínimo cominado. Pelo contrário, há lei que determina (art. 65), peremptoriamente, a diminuição da pena em razão de uma atenuante, sem condicionar seu reconhecimento a nenhum limite; e, por outro lado, reconhecê-la na decisão condenatória (sentença ou acórdão), somente para evitar nulidade, mas deixar de efetuar sua atenuação, é uma farsa, para não dizer fraude, que viola o princípio da reserva legal. Seria igualmente desabonador fixar a pena-base acima do mínimo legal, ao contrário do que as circunstâncias judiciais estão a recomendar, somente para simular, na segunda fase, o reconhecimento de atenuante, previamente conhecida do julgador. Não é, convenhamos, uma operação moralmente recomendável, beirando a falsidade ideológica. Por fim, e a conclusão é inarredável, a Súmula 231 do STJ, venia concessa, carece de adequado fundamento jurídico, afrontando, inclusive, os princípios da individualização da pena e da legalidade estrita.”[23] (grifos nossos).
Outra não é a opinião de Paulo de Souza Queiroz, Procurador Regional da República e Professor de Direito Penal:
"A pergunta a formular e responder é a seguinte: pode o juiz aplicar pena abaixo do mínimo legal ainda quando não concorram causas de diminuição de pena ou circunstâncias atenuantes? A resposta é, decididamente, sim!Primeiro, porque, ao fazê-lo, não se dá, em tal caso, qualquer violação ao princípio da legalidade. Segundo, porque aplicar a pena justa, não importando se no mínimo legal, aquém ou além dele, é uma exigência de proporcionalidade.Justifico. O princípio da legalidade, como de resto todos os princípios, constitui autêntica garantia, que, como tal, existe (historicamente) para proteger o cidadão contra os excessos do Estado, e não o contrário, para prejudicá-lo.Representa, portanto, constitucionalmente, uma poderosa garantia política para o cidadão, expressivo do imperium da lei, da supremacia do Poder Legislativo – e da soberania popular – sobre os poderes do Estado, de legalidade da atuação administrativa e da escrupulosa salvaguarda dos direitos e liberdades individuais. Por isso é que não há cogitar de afronta ao princípio sempre que a lei tiver de retroagir para beneficiar o réu, por exemplo, pois, em tal caso, não há ofensa ao caráter garantidor que o informa e justifica.Aliás, é justamente em razão deste caráter garantístico do princípio que o contrário não pode acontecer, vale dizer, fixar o juiz a pena acima do máximo legal.Já o princípio da proporcionalidade, que compreende os subprincípios da necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito (sentido tradicional), exige que a pena seja, a um tempo, necessária, adequada e compatível com o grau de ofensividade do delito cometido. Por isso que é dado ao juiz, por exemplo, socorrer-se do princípio da insignificância para decretar a absolvição, sempre que se achar diante de uma lesão ínfima ao bem jurídico que a norma quer tutelar.Nem poderia ser diferente, uma vez que a missão do juiz já não é, como no velho paradigma positivista, sujeição à letra da lei, qualquer que seja o seu significado, mas sujeição à lei enquanto válida, isto é, coerente com a Constituição.Pois bem, se o juiz pode mais – absolver, dada a irrelevância – pode menos, evidentemente: aplicar pena aquém do mínimo legal. Fundamental é fixar, sempre, uma pena justa para o caso, proporcional ao delito, conforme as múltiplas variáveis que o envolve (CP, art. 59), ainda que, para tanto, tenha o juiz de fixá-la aquém do mínimo legal. É legítima, pois, a aplicação de pena abaixo do mínimo. Entender o contrário é adotar uma postura anti-garantista.Obviamente que, com maior força de razões, legítima será a aplicação da pena abaixo do mínimo legal se concorrerem circunstâncias atenuantes, como já reconheceu o (então) Ministro Cernicchiaro, contrariamente à Súmula 231 do STJ: STJ, Resp. 151.837/MG- 6ªT –STJ –Rel. Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro – j. 28.05.1998. No mesmo sentido, Carmen Silva de Moraes Barros: “Assim, adotados os princípios de individualização da pena e da culpabilidade, não se pode mais falar em impossibilidade de fixação da pena abaixo do mínimo legal – qualquer vedação nesse sentido é inconstitucional. Assim não fosse, e a aplicação de pena poderia seguir critérios exclusivamente matemáticos. No entanto, a análise do caso individual, em razão de sua complexidade e diversidade, obsta a culpabilidade vinculada a limites mínimos. Portanto, cabe ao juiz, relevando as circunstâncias do caso concreto: grau de exposição do agente à criminalidade, suas condições pessoais, a situação particular em que levou a cabo a prática delitiva, forma de execução e conseqüências do crime, comportamento da vítima, estabelecer a medida da pena compatível com a culpabilidade vista sob a ótica do direito penal mínimo, “A fixação da pena abaixo do mínimo legal: corolário do princípio da individualização da pena e do princípio da culpabilidade.”[24] (grifos nossos).
José Antônio Paganella Boschi, ao tratar da dosimetria penal, em artigo publicado no Boletim nº. 242 do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCrim, leciona com proficiência:
“Com frequência, as expressões “individualização” e “dosimetria” das penas são utilizadas sinonimamente, embora seus diferentes objetos. A individualização, como garantia (art. 5.º, inc. XLVI), projeta dever de respeito às singularidades próprias e características do indivíduo certo (e não de um homem médio) e do fato a ele imputado. Desses dois aspectos limitadores, deduz-se que a garantia da individualização previne abusos, por impedir tratamento de massa em Direito Penal. A dosimetria, outrossim, é o procedimento regrado que efetiva a garantia da individualização da pena. Ela resulta da técnica e não da arte de julgar e tem por fim estabelecer a relação compensatória entre duas grandezas conhecidas:(1) o crime praticado, de um lado, e o castigo oficial, de outro, tendo por nortes os princípios da culpabilidade e da proporcionalidade, entre outros. Tal procedimento, no sistema do Código, desdobra-se em três fases distintas e sucessivas (art. 68 do CP – método trifásico proposto por Nelson Hungria) específicas para os cálculos da pena-base, da provisória e da pena definitiva. A pena-base não encontra definição em lei, ao contrário do CP de 1969, mas deve ser entendida como a primeira referência quantitativa, isto é,que serve de base “(...) para alguma coisa... surgindo como uma necessidade prática e vinculada à aplicação mesma do sistema”.(2) O seu cálculo é realizado mediante a valoração das circunstâncias judiciais previstas no art. 59 do CP – haja vista a remissão a esse dispositivo feita pelo legislador no art. 68 do mesmo Estatuto. É por causa disso que as circunstâncias do art. 59 são chamadas de “judiciais”, ao contrário das circunstâncias “legais” (agravantes, atenuantes, qualificadoras etc.), cuja carga de valor foi conferida a priori pelo legislador.As circunstâncias judiciais são de valores insitamente positivos. Para inverter essa polaridade o prolator da sentença precisará se apoiar em elementos e convicção existentes no bojo dos autos. Não são admissíveis suposições ou argumentos de autoridade. Não atende, pois, a exigência do inciso IX do art. 93 da CF, sendo daí absolutamente nula, a sentença que fizer “(...) simples menção aos critérios enumerados em abstrato pelo art. 59 do CP”, sem propiciar a identificação dos “(...) dados objetivos e subjetivos a que eles se adequariam, no fato concreto, em prejuízo do condenado”(3) ou que invocar fórmulas vagas ou preguiçosas,(4) do tipo “as circunstâncias judiciais são desfavoráveis ao réu”.(5) Como não há regras explícitas sobre os procedimentos a utilizar depois de realizada a valoração das circunstâncias judiciais, a doutrina e a jurisprudência recomendam a utilização das seguintes diretivas gerais: a) quando todas elas forem valoradas positivamente, a pena-base será estabelecida no mínimo legalmente cominado, por ser essa a tendência dos países em todo o mundo; b) quando algumas delas (duas ou três) receberem cargas negativas de valor, ela deverá ser fixada um pouco acima do mínimo legal; e, por último, c) quando o conjunto das circunstâncias judiciais for considerado desvalioso, a pena-base será estabelecida em quantidade próxima à do termo médio (obtido com soma do mínimo com o máximo abstratamente cominados e a divisão por dois desse resultado aritmético). Na segunda fase serão consideradas as agravantes e atenuantes previstas em lei (arts. 61 a 65) e também as inominadas (art. 66), com destaque para as preponderâncias previstas no art. 67, observada, em qualquer caso, a proibição da Súmula 231, em que pese a contrariedade à garantia da individualização da pena e aos arts. 61 e 65 do CP. O sistema penal não admite, outrossim, quantificação de agravante em volume tal que conduza a pena provisória ao limite máximo cominado em abstrato ao crime, pois ela não possui a força punitiva própria das causas especiais de aumento.” (grifos nossos).[25]
Nesse sentido:
“TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MATO GROSSO -PRIMEIRA CÂMARA CRIMINAL - RECURSO DE APELAÇÃO CRIMINAL Nº 77060/2006 - CLASSE I - 13 – Número do Protocolo: 77060/2006 - Data de Julgamento: 05-12-2006 – “Se ocorre desproporcionalidade entre a pena, mínimo cominado, e o fato concreto, face à garantia da individualização judicial da pena, como proporcional, ‘necessária e suficiente’, e diante da dicção da Lei Material Penal (art. 59), não se vislumbra legítimo entender-se que a atenuante não possa vencer o mínimo legal previsto para determinado delito.” (Tribunal de Justiça do Mato Grosso - 1ª Câmara Criminal. Apelação Criminal nº. 35.795/04).”
Veja-se este trecho do voto:
“(...) Outrossim, o juízo singular reconheceu a confissão, mesmo que parcial, por parte do apelante e deixou de conceder a redução da pena-base na segunda fase da dosimetria da pena, sobre a argumentação que iria reduzir a mesma aquém do mínimo legal. Inobstante, esta Colenda Primeira Câmara Criminal tem reconhecido que mesmo através das atenuantes genéricas pode chegar-se ao rompimento da pena-base fixada no mínimo legal, quando ocorra desproporcionalidade entre a pena, mínimo cominado, e o fato concreto, em face da garantia da individualização judicial da pena, como proporcional, “necessária e suficiente”, e diante da dicção da Lei Material Penal (art. 59), não se vislumbra legítimo entender-se que a atenuante não possa vencer o mínimo legal previsto para determinado delito. relação à primariedade do apelante, tal circunstância foi analisada pelo juízo a quo quanto à fixação da pena-base no seu mínimo legal, nas circunstâncias judiciais, com personalidade, conduta social, e a não presença de antecedentes, não podendo ser a mesma novamente trazida na segunda fase da fixação da pena, o que traria bis in idem.Quanto à confissão espontânea do delito, reconhecida e deixada de se aplicar, observa-se os julgados abaixo transcritos:“Se ocorre desproporcionalidade entre a pena, mínimo cominado, e o fato concreto, face à garantia da individualização judicial da pena, como proporcional, ‘necessária e suficiente’, e diante da dicção da Lei Material Penal (art. 59), não se vislumbra legítimo entender-se que a atenuante não possa vencer o mínimo legal previsto para determinado delito.’ ( TJMT - 1ª C. Crim. APCrim. nº 35.795/04).Considerando-se que o estelionato consumado e o conatus de estelionato apresentaram semelhantes condições de tempo, lugar, modo de execução e semelhança de propósitos para o cometimento das ações, de ofício aplica-se a solução humanitária viabilizada pela censura penal amenizada através da continuidade delitiva.” (APCrim. 5.017/06. - Rel. Desembargador Rui Ramos Ribeiro - j. 28.03.2006) “É de ser mantida atenuante inominada reconhecida na sentença, ainda que configurada simultaneamente à execução do delito, diante da lacuna da lei penal, que prevê sua incidência apenas antes ou depois do delito, porém, a possibilidade restou ressalvada na Exposição de Motivos e por isso deve ser aplicada por analogia.A circunstância atenuante pode e deve trazer a sanção privativa de liberdade abaixo do mínimo legal cominado à espécie, quando se trata de assegurar ao agente a aplicação da garantia constitucional da individualização da pena.O fato de um dos réus ser menor é peculiaridade do agente e circunstância do delito, mas não tem o condão de afastar o concurso, bastando para tanto que na execução do crime concorra um imputável.A ausência de perícia técnica na arma utilizada no evento não descaracteriza a respectiva causa de aumento se a pistola foi apreendida e toda a prova testemunhal é uníssona em reconhecer sua utilização e poder intimidativo.”(APCrim.46188/05 - Rel. Desembargador Paulo Inácio Dias Lessa - j. 04.4.06 -nosso grifo)Sobre o tema nos leciona Julio Fabbrini Mirabete:“Diante da redação dada ao Código pela Lei nº 7.209, porém, pode-se defender solução diversa, com a da conclusão de que é possível a violação dos limites máximo e mínimo da pena aplicável na hipótese de reconhecimento de agravantes ou atenuantes, respectivamente. Enquanto para a fixação da ‘penabase’ se determina que devem ser obedecidos os ‘limites previstos’ da pena aplicável (art. 59, inciso II), o art. 68 não apresenta essa restrição ao dispor que,após essa fixação, ‘serão consideradas as circunstâncias atenuantes e agravantes’, liberando-se o julgador para a aplicação de pena superior ao máximo ou inferior ao mínimo. Tal interpretação não era possível durante a lei anterior, visto que se entendia serem consideradas na fixação da ‘pena-base’ as circunstâncias judiciais e as atenuantes e agravantes. Além disso, o art. 42 da lei anterior, referente à fixação da ‘pena-base’, mencionava as ‘circunstâncias do crime’, entendendo-se que se referiam elas às agravantes e atenuantes. Tal obstáculo já não existe porque as ‘circunstâncias’ previstas no art. 59 não se referem a elas, como deixa claro o art. 68 ao estabelecer as fases do cálculo de aplicação da pena. Nesse sentido: STJ: Resp. 68.120-D-MG DJU de 09-12-96, p. 49.296-7; TUBENCHLAK, James. Atenuantes, Informativo Adv., 1987, p. 416; MACHADO, Agapito. As atenuante podem fazer descer a pena abaixo do mínimo legal. RT 647/388-9; JSTJ 20/318; LOEBMANN, Miguel. As circunstâncias atenuantes podem sim fazer descer a pena abaixo do mínimo legal. RT 676/390-3. Contra: GARCIA, Dionísio. As circunstâncias atenuantes e agravantes continuam adstritas aos limites punitivos do tipo.” RT 653/403-4. O posicionamento mais consentâneo com o Estado Democrático de Direito, notadamente em respeito ao princípio da individualização da pena e à garantia de uma condenação justa, deve ser aplicada a circunstância atenuante mesmo quando fixada a pena-base no mínimo legal, ainda que, assim sendo feito, leve a pena aquém do mínimo legal, ‘pois o que a lei busca é o estímulo ao autor da infração para que reconheça sua conduta como um ato pessoal, visando à busca da verdade real e limitando-se o risco de erro judiciário’ (TRF, 5.ª Região, 1.ª Turma, DJU 22.10.97). À dicção do art. 65, caput, do CP, as circunstâncias sempre atenuam a pena. Nesse sentido, é o entendimento doutrinário: “Constituem as circunstâncias genéricas verdadeiras circunstâncias legais, uma vez que constam expressamente do texto do Código Penal. Ademais, são de incidência obrigatória, impondo-se sua consideração pelo magistrado no momento da aplicação da pena, visto que sempre atenuam a pena, consoante dispõe o próprio texto legal” (PRADO, Luiz Regis. Comentários ao Código Penal, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 250). “Como indica o caput do artigo, as atenuantes são de aplicação obrigatória (‘sempre atenuam’) em favor do agente” (DELMANTO JUNIOR, Roberto. et. all. Código Penal Comentado, 6. ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 129.). “Pena abaixo do mínimo legal. O direito, não se esgota na lei; voltando-se, ademais, para o dever-ser, como expressão cultural, reclama dointérprete sentir a finalidade da norma. (...) O penalista nem sempre se dá conta de que seu raciocínio se afasta da busca da teleologia da lei e fica aprisionado em esquemas conceituais, restrito ao plano formal. (...) O direito, com efeito, é norma e fato (valorados). (...) O legislador fornece o metro do comum das coisas. O Juiz considera as particularidades do fato. Caso uma circunstância relevante agaste-o do comum, o magistrado deverá adaptar a medida ao caso concreto. (...) Adaptar axiologicamente a lei não é repudiar a lei. (...) A culpabilidade (reprovabilidade) enseja gradação. Mais intensa. Menos intensa. (...) Coloca-se, então, esta hipótese. (...) se apesar de aplicada no mínimo, a pena, dada excepcional circunstância (não é excludente de ilicitude, nem excludente de culpabilidade) recomendar sanção ainda mais mitigada, pode o Juiz fixá-la em patamar favorável ao réu? Impõe-se resposta positiva. O Juiz promove a adequação do normativo com a experiência jurídica. A lei, insista-se, não esgota o Direito. Inexiste, por isso, qualquer afronta ao princípio da individualização. Ao contrário, consagra a eficácia do próprio princípio. (...) O legislador trabalha com o gênero. Da espécie cuida o magistrado. Só assim ter-se-á o Direito dinâmico e sensível à realidade, impossível ser descrita em todos os pormenores por quem elabora a lei.Não se trata de mero pregüismo. (sic) Ao contrário, realização de justiça material . O Judiciário, com essa orientação, realizará o Direito Justo”.(CERNICCHIARO, Luiz Vicente. Questões Penais. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 188 a 190).A fixação da pena, muito mais do que a concretização do jus puniendi, deve refletir, na sua quantificação, o objetivo visado pelo Estado ao impor aquela reprimenda.Em outras palavras: a pena é a medida da ofensa à sociedade.Por essa razão, não se justifica balizamento tão rígido, petrificado,como este que obriga o magistrado, embora reconhecendo uma circunstância atenuante a favor do réu, desconsiderá-la por não poder reduzir a pena abaixo do mínimo legal.O Projeto de Reforma da Parte Geral do Código Penal, nº 3473/00, em tramitação no Congresso Nacional, denominado Projeto Miguel Reale, consagra a discricionariedade do magistrado na fixação da pena, ao estabelecer, no seu artigo 68-A, a possibilidade de diminuição da pena mínima, até a metade, se, após todo o procedimento de fixação da pena, o juiz reconhecer desproporcionalidade entre a sanção aplicada e o fato concreto. Pode-se afirmar que o Projeto de Lei aproxima-se das legislações comparadas, principalmente a Alemã e a Portuguesa, que prevêem o chamado ‘mínimo geral’, ou seja, uma pena genérica a ser aplicada quando houver desproporção entre a pena mínima prevista abstratamente e o delito realmente praticado pelo agente. Essa inovação legislativa, com certeza, ventila ares de maior liberdade ara o magistrado na fixação da pena, liberdade esta que não viola o princípio da legalidade, nem outras conquistas garantidas do Direito Penal, ao contrário, confiando em um Judiciário comprometido com os direitos fundamentais do cidadão, possibilita maior amplitude na tutela das garantias constitucionais, aqui, em destaque, os princípios da individualização da pena e da culpabilidade. Não diverge desse entendimento esta egrégia Corte de Justiça:“ Se ocorre desproporcionalidade entre a pena, mínimo cominado, e o fato concreto, face à garantia da individualização judicial da pena, como proporcional, ‘necessária e suficiente’, e diante da dicção da Lei Material Penal (art. 59), não se vislumbra legítimo entender-se que a atenuante não possa vencer o mínimo legal previsto para determinado delito” (TJMT, 1.ª C. Crim., Acr n.º 37.795/04, minha relatoria, j. em 28.09.2004, DJMT de 10.09.2004, p. 12). “A pena pode ser fixada abaixo do mínimo legal pela atenuante da confissão, em obediência ao princípio da individualização da pena” (TJMT, 1.ª C. Crim., Ap. n.º 9.607/04, Rel. Des. Paulo Inácio Dias Lessa, j. em 17.08.2004, DJ de 30.08.2004). Com efeito, no momento da aplicação da pena, deve-se analisar detidamente as circunstâncias do fato concreto, bem como seu autor, a fim de que a sanção infligida seja a suficiente e necessária para a reprovação e prevenção do delito. Concluo, portanto, pela possibilidade da redução da pena privativa de liberdade abaixo do mínimo legal cominado como pretendida, sob pena de configurar ofensa ao princípio da individualização judicial da pena. É como voto.”
“Assim sendo, passo à revisão das penas. (...) Esclareço que atenuei a pena aquém do mínimo por ser este o entendimento desta Câmara e do Terceiro Grupo Criminal. E, com efeito, a restrição é construção doutrinária e jurisprudencial que tem base em interpretação sistemática (não a melhor) e traz sérios inconvenientes. O art. 59, inciso II do Código Penal impõe expressamente ao juiz fixar a pena-base "dentro dos limites previstos". Ora, se o art. 65 (logo a seguir) não repete o dito e, ainda por cima, estabelece que as atenuantes sempre devem operar, é fácil concluir que o juiz não está adstrito ao limite mínimo na segunda fase. Não convence o argumento de que seria concedido excessivo arbítrio ao juiz, na medida em que a atenuação não tivesse limites, pois é sabido que a atenuante não deve reduzir tanto quanto reduziria uma causa de diminuição, que é um plus. Tampouco convence o argumento de que as agravantes poderiam levar a pena além do máximo, sepultando a garantia representada pelo princípio da legalidade das penas. Primeiro, porque as penas nunca atingem o limite superior, constituindo sofisma invocar garantias dos jurisdicionados para restringir-lhes direitos. Segundo, porque há motivos diversos para interpretar como insuperável o limite superior que não cabe aqui declinar. O que não se justifica, em absoluto, é a mesma circunstância operar ou não efeito conforme seja prevista como atenuante ou causa de diminuição. Tampouco é razoável que dois réus sejam condenados pelo mesmo delito à mesma pena, embora apenas um deles seja menor, haja confessado e demonstrado arrependimento, reparando o dano, por exemplo. Se a maioria da doutrina e da jurisprudência pensa de modo diverso, o só fato não lhe confere razão. A crônica judiciária é rica em casos de opiniões isoladas se converterem em tese dominante.” (Tribunal de Justiça do Rio Grande doSul – Apelação Criminal nº. 70013458963/05 – Relator João Batista Marques Tovo – 6ª. Câmara Criminal, grifo nosso).
Vale destacar a decisão de um dos mais renomados criminalistas que já compuseram o Superior Tribunal de Justiça, Luiz Vicente Cernicchiaro, ainda que se trate de julgado anterior ao Verbete nº. 231 da súmula supracitada, in verbis:
“RESP - PENAL - PENA - INDIVIDUALIZAÇÃO - ATENUANTE - FIXAÇÃO ABAIXO DO MINIMO LEGAL - O PRINCIPIO DA INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA (CONSTITUIÇÃO, ART. 5., XLVI) MATERIALMENTE, SIGNIFICA QUE A SANÇÃO DEVE CORRESPONDER AS CARACTERISTICAS DO FATO, DO AGENTE E DA VITIMA, ENFIM, CONSIDERAR TODAS AS CIRCUNSTANCIAS DO DELITO. A COMINAÇÃO, ESTABELECENDO GRAU MINIMO E GRAU MAXIMO, VISA A ESSE FIM, CONFERINDO AO JUIZ, CONFORME O CRITERIO DO ART. 68, CP, FIXAR A PENA "IN CONCRETO". A LEI TRABALHA COM O GENERO. DA ESPECIE, CUIDA O MAGISTRADO. SO ASSIM, TER-SE-A DIREITO DINAMICO E SENSIVEL A REALIDADE, IMPOSSIVEL DE, FORMALMENTE, SER DESCRITA EM TODOS OS PORMENORES. IMPOSIÇÃO AINDA DA JUSTIÇA DO CASO CONCRETO, BUSCANDO REALIZAR O DIREITO JUSTO. NA ESPECIE "SUB JUDICE", A "PENA BASE" FOI FIXADA NO MINIMO LEGAL. RECONHECIDA, AINDA, A ATENUANTE DA CONFISSÃO ESPONTANEA (CP, ART. 65, III, D). TODAVIA, DESCONSIDERADA PORQUE NÃO PODERA SER REDUZIDA. ESSA CONCLUSÃO SIGNIFICARIA DESPREZAR A CIRCUNSTANCIA. EM OUTROS TERMOS, NÃO REPERCUTIR NA SANÇÃO APLICADA. OFENSA AO PRINCIPIO E AO DISPOSTO NO ART. 59, CP, QUE DETERMINA PONDERAR TODAS AS CIRCUNSTANCIAS DO CRIME.” (REsp 151.837/MG, Rel. Ministro FERNANDO GONÇALVES, Rel. p/ Acórdão Ministro LUIZ VICENTE CERNICCHIARO, SEXTA TURMA, julgado em 28/05/1998, DJ 22/06/1998, p. 193).
Acerca do tema “súmulas de jurisprudência dos Tribunais”, é de extrema relevância a leitura do texto do Professor Marcelo Neves, cujo trecho (ainda que longo) transcrevemos abaixo:
"O título deste artigo tem como referência uma passagem de Jacques Derrida no ensaio Fazer Justiça a Freud, em que ele faz objeções às críticas de Michel Foucault à psicanálise freudiana. Derrida sustenta que, diferentemente de René Descartes e do iluminismo, Freud põe a “razão em diálogo com a desrazão”. É claro que não se trata, nesse contexto, de um diálogo no sentido da teoria do discurso ou da democracia deliberativa, orientado contrafactualmente para o consenso ou para a busca do melhor argumento. Trata-se de reconhecer a precariedade da “razão”, pronta para aprender com a sua contraparte, a desrazão, em processo paradoxal de reconstruções ou ressignificações permanentes. Uma “razão” sem “diálogo” com a “desrazão” seria opressora e excludente. A ironia expressa no título supõe a seguinte questão: e quando a “desrazão” for incapaz de “dialogar” com a “razão”? A resistência ao diálogo impede, nesse caso, qualquer aprendizado, reconstrução ou ressignificação transformadora na direção da autonomia.No plano jurídico, parece-me que essa é a situação do Supremo Tribunal Federal. No entanto, a esse respeito, antes da referência à “desrazão” ou “razão” em um sentido abarcante, cabe falar de irracionalidade sistêmica do ponto vista jurídico, fechada ao aprendizado com argumentos de consistência jurídica e adequação social do direito. Essa situação importa um desempenho limitado no sentido da institucionalização constitucional, apesar da retórica constitucionalista excessiva dos ministros e doutrinadores. Em breve exposição, apresentarei alguns aspectos da “desrazão” jurídica e constitucional do Supremo Tribunal Federal, fechada ao aprendizado transformador.Na perspectiva do desenho institucional formal, o fato de que cada voto é elaborado separadamente e constitui parte do acórdão torna altamente improvável qualquer aprendizado colegiado. A esse respeito, o que conta é o dispositivo. Em casos de alta relevância constitucional, a decisão é tomada por unanimidade, mas os fundamentos são diversos e, às vezes, contraditórios. Não há ratio decidendi comum. Configura-se um decisionismo em relação à maioria convergente em torno do dispositivo. Em matéria de declaração de inconstitucionalidade, que exige maioria absoluta do pleno, é comum alcançar-se essa maioria quanto ao dispositivo, sem que isso ocorra em relação aos fundamentos. Nesse sentido, a construção de precedentes fica prejudicada e, portanto, o aprendizado constitucional bloqueado. Muitas vezes, a própria ementa não consegue expressar o fundamento e resultado da decisão, dadas as incongruências argumentativas no procedimento decisório.Do ponto de vista da prática institucional, chama a atenção o acesso unilateral de advogados a audiências fechadas como os ministros, sem que a parte adversa seja convidada nem sequer informada. Nesse particular, viola-se o princípio constitucional do contraditório. Normalmente, as partes e os advogados que têm acesso são aqueles mais poderosos, seja do ponto de vista econômico, político ou relacional. As partes e advogados menos influentes dificilmente conseguem audiência, que depende do arbítrio do respectivo ministro. Um caso interessante diz respeito a um advogado americano que veio para atuar em uma ação contra o uso do amianto. Ao entrar no salão branco do STF para ter uma audiência com o ministro, ele perguntou à jovem advogada brasileira que o acompanhava: ‘onde está o representante da outra parte?’ A advogada brasileira respondeu: ‘em regra, não se convida a outra parte para essas audiências’. O ingênuo advogado americano perguntou: ‘Isso não pode levar à nulidade?’. A advogada brasileira riu e disse: ‘não’. Na linguagem vulgar do meio jurídico, esses são os “embargos auriculares”, muitas vezes bem mais eficazes do que os atos processuais formais e públicos.Sob a ótica da carga de trabalho, a impossibilidade de selecionar os casos constitucionalmente relevantes, aliada ao incremento excessivo de competências, torna a própria capacidade decisória do Tribunal muito limitada. Onze ministros sobrecarregados, cada um deles com dezenas de milhares de processos para decidir anualmente, sendo setenta por cento agravos de instrumento, delegam para um número enorme de assessores e analistas a competência para “decidir”, sem que haja condições práticas para rever as respectivas “decisões”. Os ministros reduzem-se, em grande parte das decisões, a carimbadores de documentos. A propósito, a Emenda Constitucional 45/2004, supostamente destinada a reduzir a sobrecarga processual do Supremo Tribunal Federal, parece ter viabilizado o acesso mais amplo ao STF. A Súmula Vinculante permite que reclamações contra qualquer autoridade administrativa ou judiciária que a desrespeite seja levada imediatamente ao Supremo. Como as súmulas, analogamente às chamadas “leis interpretativas”, precisam ser interpretadas, a possibilidade de questionamento perante o STF multiplicou-se. Da mesma maneira, a exigência da repercussão geral em recurso extraordinário é controversa quanto ao efeito de diminuir a carga de trabalho do Tribunal. A possibilidade recursal de questionar a decisão do juízo a quo perante a Suprema Corte leva a que uma avalanche de processos seja submetida a esse Tribunal. A Emenda Constitucional nº 45/2004, por fim, transferiu competências do Superior Tribunal de Justiça para o STF, expandindo ainda mais seu campo de atuação. Nesse contexto, portanto, a irracionalidade funcional resulta de que o aumento da demanda relaciona-se com o declínio da capacidade decisória do próprio Supremo Tribunal Federal.Quanto ao aspecto técnico-jurídico, destaca-se a falta manifesta de coerência e consistência da cadeia decisória. Proliferam decisões que se incompatibilizam entre si, muitas vezes em curtíssimo período de tempo. Neste contexto, destaca-se o abuso do que seria o overruling ou o distinguishing implícito, sem que o Tribunal explicite ou justifique a mudança de posição ou o enquadramento jurídico diferente do novo suporte fático concreto. Esse problema se agrava tendo em vista o déficit institucional referido acima, envolvendo decisões internamente inconsistentes. Também é relevante a esse respeito a carga de trabalho discutida no parágrafo anterior, importando incongruências na cadeia decisória de um mesmo ministro, submetido às idiossincrasias decisórias de uma multiplicidade de assessores e analistas. Essa não é propriamente uma questão de incerteza do direito, inerente a qualquer ordem jurídica moderna, mas sim um problema que pode levar a grave insegurança jurídica. Sob o aspecto da adequação social, desenvolve-se a ilusão, fortificada por doutrinadores, cientistas políticos e sociólogos, de que a judicialização, em si mesma, resulta na observância, execução e realização da Constituição, ou, em termos da linguagem jurídica brasileira, à efetividade da Constituição. Nessa perspectiva, a judicialização significaria o enquadramento das instituições ao marco jurídico-constitucional. Mas nem sempre judicialização significa juridificação, muito menos constitucionalização. A atuação do Poder Judiciário pode promover decisões que levam a práticas de difícil compatibilidade com o modelo constitucional. (...). Nesse contexto, não se observa que a efetivação constitucional depende da atuação de outras esferas estatais, inclusive o Executivo, assim como de condições sociais, não se restringindo a decisões judiciais espetaculares e pontuais. O cotidiano das instituições estatais, especialmente da polícia e das penitenciárias, mas também de outras instâncias do Executivo, Judiciário e Legislativo, desenvolve-se, em grande parte, à margem da Constituição e da legalidade. Mas essa não é simplesmente uma questão de incapacidade institucional do Judiciário, pois envolve uma postura seletiva e discriminatória que, estruturalmente, beneficia os setores socialmente mais fortes em detrimento dos mais fracos na estrutura da estratificação social. Relacionado a essa postura seletiva negativa, verifica-se, do ponto de vista da autonomia sistêmica, que preferências e imperativos econômicos, políticos e relacionais sobrepõem-se diretamente à jurisdição constitucional, em detrimento de uma argumentação jurídico-constitucional apropriada e consistente. Nesse caso, não se pode totalmente excluir a “corrupção” sistêmica no nível da jurisdição constitucional, na medida em que particularismos políticos, econômicos e relacionais podem estar vinculados a decisões ancoradas em argumentos retóricos ad hoc manifestamente insustentáveis do ponto de vista jurídico-constitucional, em favor de privilégios incompatíveis com a Constituição. Às vezes, liminares monocráticas, concedidas às pressas, podem ser vistas como indícios da sobreposição de preferências externas (corporativas, econômicas, político-partidárias, relacionais etc.) aos critérios jurídicos que deveriam ser aplicados, fugindo de qualquer baliza razoável da argumentação jurídica. Talvez seja possível enquadrar nessa hipótese as recentes decisões que concederam o auxílio moradia a praticamente todos os magistrados brasileiros. Um aspecto que se aponta como positivo consiste na publicidade e transparência que decorreria da transmissão televisiva das sessões do pleno por meio da TV Justiça. Em princípio, não caberia nenhuma restrição a essa opção, pois ela teria a finalidade de abrir o STF à esfera pública. Parece-me, porém, que a transmissão ao vivo dessas sessões, na forma atual, serve menos à transparência do que à espetacularização. Além disso, a prática institucional de votos longuíssimos lidos perante as câmeras televisivas sobrecarrega temporalmente um órgão já exposto a uma extrema pressão temporal. Não se trata de uma sessão de trabalho produtiva e eficiente, mas antes de uma boa diversão para o público. Por fim, o próprio custo da TV-Justiça como um todo deveria ser questionado em um país com amplas demandas em áreas carentes de recurso. Essa situação de um decisionismo ad hoc do Supremo Tribunal Federal, marcado por forte teor de irracionalidade, é tanto mais forte na medida em que a doutrina jurídica não se apresenta como um contraponto crítico relevante. Faltam irritações ao Supremo Tribunal Federal pela doutrina jurídica. Ocupada na maior parte por advogados, magistrados e membros do Ministério Público envolvidos regularmente nas contendas judiciais de natureza constitucional, as faculdades de direito tendem a reproduzir as decisões do STF em um tipo de dogmática ingênua, transformada em “casuística” à brasileira: soma de decisões sem análise da cadeia decisória, como se houvesse uma racionalidade evidente na solução dos casos. A construção de uma doutrina jurídica mais crítica em relação ao desempenho do Supremo Tribunal Federal não levará à superação de irracionalidades decisórias sedimentadas historicamente, mas pode servir como “irritações” que forcem, em certa medida, à abertura da “desrazão” à “razão”.[26]
Ante o exposto, o parecer do Ministério Público é pelo conhecimento da presente apelação e pelo seu improvimento, mantendo-se incólume o édito condenatório.
Por fim, prequestionamos, para efeito de recurso especial e extraordinário, os artigos 59, 65, III, “d”, e 68, todos do Código Penal, bem como o art. 5º., LVII, da Constituição Federal.
Salvador, 07 de maio de 2015.RÔMULO DE ANDRADE MOREIRA
Procurador de Justiça
[1] Hermes Zaneti Jr., O Valor Vinculante dos Precedentes. Salvador: Editora Juspodivm, 2015, p. 392. [2] Carlos Climent Durán, La Prueba Penal, Valencia: Tirant lo Blanch, 1999, p. 277. [3] Luigi Ferrajoli, Derecho y Razón, 3ª. ed., Madrid: Trotta, 1998, p. 607, tradução de Perfecto Andrés Ibáñez e outros. [4] Tratado da Prova em Matéria Criminal, 3ª. ed., Campinas: Bookseller, 1996, p. 206. [5] Luigi Ferrajoli, ob. cit., p. 607. [6] MOREIRA, Rômulo de Andrade. Curso Temático de Direito Processual Penal, 2ª edição. Curitiba: Juruá Editora, 2012, p. 358/362. [7] Domingos Barroso da Costa. Um pouco mais sobre as atenuantes e a possibilidade de fixação da pena aquém do mínimo legal. Revista do IBCCRIM, ANO 21, N. 243, Fevereito, 2013. ISSN 1676-3661, p. 11. [8] Os Princípios Constitucionais Penais, Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1991, pp. 37 e segs. [9] “La individualización judicial de la pena. Especial referencia al artículo 46 CP peruano”, encontrado no site www.eldial.com – 13 de junho de 2005. [10] Apud Nicolas Gonzalez-Cuellar Serrano, “Proporcionalidad y Derechos Fundamentales en el Proceso Penal”, Madri: Editorial Colex, 1990, p. 30. [11] Instituições de Direito e Processo Penal, Coimbra: Editora LDA, 1974, p. 295. Tradução para o português de Manuel da Costa Andrade. [12] Apud José Frederico Marques, in Elementos de Direito Processual Penal, Campinas: Bookseller, 1998, Vol. I, p. 79. [13] Elementos de Direito Processual Penal, Vol. I, Campinas: Bookseller, 1998, p. 79. [14] Para Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, “nunca foi tão importante estudar os Goldschmidt, mormente agora onde não se quer aceitar viver de aparências e imbrogli retóricos.” (O Núcleo do Problema no Sistema Processual Penal Brasileiro, Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, nº. 175, junho/2007, p. 12). [15] Apud José Frederico Marques, in Elementos de Direito Processual Penal, Vol. I, Campinas: Bookseller, 1998, p. 37. [16] Idem, p. 481 [17] Teoria Geral do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2001, pg. 332. [18] Idem, ibidem, p. 446. [19] "Toda a interpretação de um texto há-de iniciar-se com o sentido literal” (idem, p. 450). [20] Filosofia do Direito, São Paulo: Saraiva, 7ª. ed., 1975, pp. 508 e ss. (apud Luiz Flávio Gomes, Estudos de Direito Penal e Processo Penal, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 217). [21] Idem, p. 165. [22] Ob. cit., p. 441. [23] Limites da pena-base e a equivocada Súmula (231) do STJ. Revista do IBCCRIM, ANO 22, N. 262, Setembro, 2014. ISSN 1676-3661, p. 08. [24] Revista do IBCCrim-Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, Ano 7, nº. 26, Abril-Junho, 1999. [25] A dosimetria das penas privativas de liberdade. http://www.ibccrim.org.br/boletim_artigo/4806-A-dosimetria-das-penas-privativas-de-liberdade. Acesso em 02 de novembro de 2014. Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - Boletim nº 242 (Ano 21) – Janeiro de 2013. ISSN 1676-3661. [26] A “desrazão” sem diálogo com a “razão”: teses provocatórias sobre o Supremo Tribunal Federal (http://www.conjur.com.br/2014-out-18/desrazao-dialogo-razao-teses-provocatorias-stf, acessado no dia 02 de novembro de 2014).