Servidão Voluntária, Sociedades de Controle e produção do ingovernável: ruptura e descontinuidade em Étienne de La Boétie – Por Guilherme Moreira Pires

28/11/2016

"Assim são os tiranos: quanto mais eles roubam, saqueiam, exigem, quanto mais arruínam e destroem, quanto mais se lhes der e mais serviços se lhes prestarem, mais eles se fortalecem e se robustecem até aniquilarem e destruírem tudo. Se nada se lhes der, se não se lhe obedecer, eles, sem ser preciso luta ou combate, acabarão por ficar nus, pobres e sem nada; da mesma forma que a raiz, sem umidade e alimento, se torna ramo seco e morto. (...) Os pés com que ele esmaga as vossas cidades de quem são senão vossos? Tomai a resolução de não mais servirdes e sereis livres. Não vos peço que o empurreis ou o derrubeis, mas somente que o não apoieis: não tardareis a ver como, qual Colosso descomunal, a que se tire a base, cairá por terra e se quebrará."

Étienne de La Boétie, século XVI - França.

Neste ensaio, recobro reflexões do jovem Étienne de La Boétie (século XVI, França - em contexto de avanço do poder real e tributação do sal), ainda atualíssimas, marcadas pela descontinuidade, crítica e ruptura em relação aos discursos legitimantes de uma arrogante "arte de governar", tão celebrada entre autoridades e hierarquias da melancólica história de controles que prosseguimos alimentando; ingredientes ainda incidentes na atualidade das sociedades de controles do nosso século XXI, entre metamorfoses, acoplamentos, sofisticações e aperfeiçoamentos; tempos em que somos recrutados de bom grado a participar de controles (inclusive sobre nós mesmos), expandindo-os, aplaudindo-os.

Na dissolução desse estupor, merece especial realce o pensamento de Étienne de La Boétie, formulador de importante contradiscurso, na contramão das produções do poder, centralidades e universalidades; um discurso de certo modo anti-Maquiavel[1], mas que sobrepuja em muito a crítica e/ou ruptura para com um único pensador (bem como para com os pensamentos usuais de um jovem do século XVI na França).

Trata-se da dramática virada, da "arte de governar", para "a arte de não ser governado", inevitavelmente energizada ao se questionar tão profundamente as estranhas razões que arrastariam os homens a se submeterem aos jugos de autoridades e produções do poder, a ponto de naturalizarem governos e se enxergarem efetivamente como criaturas carentes de "bom controle" (no limite, a ponto até mesmo de aprenderem a gostar da perda da liberdade, permutada por outros elementos doravante abordados na exaltação e celebração de nossas correntes, ainda que de ouro e reluzentes, abarrotadas por bonitos discursos legitimantes).

Nas sociedades de controle, a versatilidade, aprimoramento e sofisticação dos controles resistem (e se expandem), na medida em que as rupturas dogmáticas, falsas rupturas e falsas dicotomias, recusam-se a ampliar a extensão e abrangência de suas críticas, operando encarceradas em fechamentos eternizadores; condicionamentos-para-o-nunca, vendidos à triste sorte da promessa de uma redução gradual legitimante do agora, reféns das utopias consoladoras em tempos de sequestro cool das palavras, sem correspondente conteúdo minimamente condizente; sem profundidade condizente; sem vida condizente; ora, a arte de governar é mesmo fantástica na captura dos que acreditam flertar com "a resistência" (e mesmo representá-la), enquanto celebram capturas e controles. Razão cínica, razão de Estado, razão de governo.

Retornando ao século XVI, num contexto em que Maquiavel cintilava em suas produções sobre a arte de governar, a perspectiva crítica de Étienne de La Boétie, que dele destoava, emerge como uma gota de profundidade entre uma bibliografia anti-Maquiavel, (uma gota-oceano) disposta a pronunciar o não à existência do soberano central como legítimo protetor, comportando o não reconhecimento de sua imprescindibilidade e lógica reitora da realidade; aversão à coordenação de mundo por parte de tal artífice que desconheceria a horizontalidade, se indagando acerca de nossa submissão (que paradoxalmente se daria mesmo após a ausência de força bruta inicialmente incidente nos exemplos que o jovem destaca).

Uma perspectiva tão pouco funcional ao poder, não por acaso seria desqualificada com afinco; mas suas palavras atravessaram o tempo, e cinco séculos depois, sobrevivem marcas e ressonâncias de um contradiscurso potente; enquanto Maquiavel alimentou as produções e discursos dos poderes estabelecidos, Étienne de La Boétie destoou radicalmente, optando por não celebrar a autoridade centralizada do soberano, dissolvendo sua pretensiosa capa retórica e falsas promessas de imprescindibilidade; juras de necessidade, justiça e legitimidade; promessas enquanto legítimo e necessário artífice coordenador do mundo, coordenador das vidas; e tudo pelo mundo, e pelas vidas; governo e controle das vidas sob a estrela de protegê-las (legitimação-base do poder verticalizado do soberano): de fato, poucos contos poderiam ser tão terrivelmente traiçoeiros, a ponto de triturarem e (de)formarem nossas subjetividades, cristalizarem hierarquias envoltas em centralidades e universalidades, propiciando governos que se perduram ainda hoje, nas atualidades do século XXI, em que a razão de governo e Estado bem acastelou-se no que será apontado mais adiante como "produtos finais", nós mesmos, desde uma perspectiva libertária compartilhada por potentes singularidades nesse século, que, assim como Étienne, do referencial dos poderes estabelecidos, bem poderiam ser encaradas como anomalias indesejáveis, eis que não jogam de acordo com as regras das produções dos jogos instituídos.

Étienne de La Boétie, na contramão da arte de governar, lanceia a servidão voluntária, e sublimemente rasga o coro unívoco de artificialidades e tautologias totalizantes, típicos dessa primeira arte, oxigenando uma segunda arte, a de não ser governado.[2]

O jovem francês questiona essas produções do poder, e indaga sobre o porquê de voluntariamente servirmos com tanto afinco uma autoridade, e mais especificamente, a figura do soberano. Teríamos sido enfeitiçados e (não) sabemos? Estaríamos dominados por alguma sorte de encanto? (In)felizmente não, a servidão voluntária não pode ser explicada unicamente por forças exteriores e estranhas ao homem, senão que emerge possibilitada pelo próprio homem produto do poder; é dizer, as pessoas infelizmente têm uma quota de participação nos seus próprios controles. Seria desonesto atribuir todas as contradições dos governos a cada um dos governados, mas também o seria blindá-los de suas tristes participações nisso tudo.  No desenrolar desse escrito, se iluminará que quota é essa, juntamente com o oxigenar de linhas de fuga.

Se exercer o poder corrompe, submeter-se a ele ao longo do tempo facilmente degrada, como lembraria Bakunin e outros libertários.

Em Maquiavel, à conservação do governo do príncipe reside uma necessidade do príncipe conquistar a confiança do povo ou ser seu amigo; uma estranha acepção de amizade, abrangendo obediência e fidelidade, em que, na impossibilidade de ambos, ser temido (virtude do governante) valeria mais que ser amado (embora seja sugerido atentar-se para que o temor não se converta em ódio); o equilíbrio compõe a arte de governar, como ensinam seus artífices: as autoridades e lambe-botas de todos os tempos, legitimantes de culturas repressivas e produções do poder.

Seja na amizade devotada ou no temor experimentado (o que no limite pode vir a ser a mesmíssima coisa), deparamo-nos com o enaltecimento do soberano como figura central dos territórios, coordenando vida e morte, capturando e controlando; incumbido de governar e guiar, adaptando-se no ritmo da versatilidade estratégia da arte de governar; sendo ele próprio um artífice dessa tão celebrada arte pelos representantes de culturas repressivas; arte que abrange aprender a ser "mau" e prudente, reorganizando-se, reconfigurando à luz da "necessidade"; vícios e virtudes em prol da segurança são reconstituídos e reformulados mediante a percepção do cenário, até podem inverter os sinais, permutando-se as fraquezas e pontos fortes, cálculos, táticas e velocidades. Toda sofisticada produção teórica acerca do "bom governo", opera, ainda que secretamente, em nome da versatilidade das formas de (e dos) controles; em nome da conservação e aprimoramento da versatilidade dos controles.

Essa monótona (e mórbida) literatura do governo (Foucault), na qual se insere a produção de Maquiavel no século XVI, implícita ou explicitamente, deixou marcas na consequente propulsão e difusão dessa arte de governar, oxigenando outras produções melancólicas, estruturantes de culturas repressivas; doutrinas sacrificiais ao poder, com liberdades sacrificadas, permutadas por culturas do castigo e da obediência; culturas estruturadas no princípio da autoridade e verticalização social; entre as recompensas: correntes de ouro celebradas.

Produções repressivas, intensas e extensas, que não encontram em Étienne de La Boétie apenas um muro de negação, mas também um sopro presente e prospectivo de vidas livres; uma descontinuidade profundamente construtiva (e constitutiva) de outra arte, a de não ser governado, atreladas à(s) história(s) do(s) pensamento(s) libertário(s) (não obedientes a qualquer historiografia oficial).

Contra a singularidade transcendental, regente e totalizante do príncipe, forjada em universalidades e legitimações retóricas: complexidades libertárias e singularidades não pautadas em artificialidades e sobreposições brutalizantes; contra a manutenção e conservação dos controles da autoridade em relação aos conjuntos capturados e governados, resistências-movimento, intransigências e experimentação de liberdades; arte de não ser governado: produção do ingovernável.

Às doutrinas sacrificiais do poder, adoradoras temerosas e obedientes à razão de Estado, razão de governo, razão cínica, contribui uma atmosfera de ordem religiosa, cujo humanismo, ao invés de liberar, atualmente ainda agrilhoa e captura dentro da racionalidade complacente e submissa às autoridades e centralidades; toda razão de Estado e princípio da autoridade verticalizada nutre embasamentos sacrificiais ao poder, impregnados por abstrações retóricas de ordem religiosa, como asseguram os representantes de culturas repressivas que "muito bem" fizeram uso de tais conhecimentos, seja na produção de montanhas de mortos, seja na regência dos vivos, em seus tempos, deveres, movimentos, subjetividades.

Maquiavel leu tal capacidade de captura, e não por acaso atribuiu especial importância à religião[3] no auxílio do tirano à conservação e aprimoramento dos controles; de uma versatilidade estratégica dos controles, blindagens e garantias de poder. A servidão, a obediência e reconhecimento de uma autoridade poderosa e transcendental como fundamental. Os cativados capturados no jogo, ao invés de questionarem sua produção, questionam os jogadores da vez, como desenvolvido no escrito 'Senso comum democrático: ensaio abolicionista contra a pureza do poder" (pensando na atualidade dos controles).

Étienne de La Boétie notadamente já havia percebido que, nos trilhos da servidão e devoção, as pessoas cobravam reformas e substituições aos jogadores da vez, é dizer, aos governantes e autoridades da vez, sem lancearem a problemática do jogo em si, dos governos e suas gramáticas do poder, bem representadas em Maquiavel e consequentes produções teóricas de uma arte de governar; atualmente, no século XXI, entrelaçada com a reiterada convocação para participar nos fluxos de controle, bem como a alimentar (e ser absorvido por) uma determinada economia política de castigos e governos, que se cristaliza na linguagem e no indivíduo, constituindo-o; assim, trata-se, não de uma coisa simplesmente externa, mas do próprio indivíduo produto das aludidas relações de poder, convertido em servo legitimante da arte de ser governado, celebrando castigos e recompensas, obediências e sacrifícios.

Na sociedade de controle, esse representante da servidão voluntária é convocado (é dizer, recrutado!) a participar. "Participação" (enquanto armadilha e captura) torna-se palavra estruturante das culturas repressivas, absorvendo e diluindo "únicos" no campo do universal e princípio do poder verticalizado radicalmente tensionado e esticado, incidindo sobre as metamorfoses do poder no aprimoramento da arte de governar. Refiro-me, aqui, não ao único totalizante da autoridade central transcendental, mas às singularidades capturadas e sacrificadas nos equacionamentos do universal. Nós mesmos.

Étienne de La Boétie, enquanto potente imagem libertária, destoa dessas imagens e projeções estragadas do poder, ainda na atualidade (já que as artes de governar não ruíram, mas se aperfeiçoaram; seguem produzindo subjetividades e obediências que lhes reafirmam).

Mais que assinala, ele ativa e libera rupturas e descontinuidades para com os fluxos e movimentações obedientes à marcha fúnebre dos poderes estabelecidos, e seus governos (em sentido amplo) (d)e autoridades, ainda na atualidade dos controles do século XXI, energizados pela convocação à participação nos fluxos como versátil mecanismo de captura, mais que legitimado, louvado.

A potência desse jovem perpetra um importante abolir, para além das defesas e buscas de habilidades de uma autoridade, acerca da conservação e aprimoramento da versatilidade de controles e governos; contra  a manutenção  do principado em Maquiavel, a abolição de hierarquias e autoridades estruturantes de governos e controles, que séculos adiante erigiriam as prisões as quais igualmente nos opomos, como produções do poder derivadas e atreladas à arte de governar, interpretada, nas singularidades desta analítica anarquista, de forma mais ampla e abrangente; quer-se dizer, ideias que para muitos "juristas da resistência" e pensadores diversos, poderiam ser lidas como uma oposição à arte de governar, a nós nos soam como aperfeiçoamento, ou outro braço dos controles; por isso, parte dos críticos de Maquiavel, que se colocam como descontinuidade, nos soam como continuidade, aprimoramento, aperfeiçoamento;  aliás, o destino das celebridades e pensadores das ciências criminais, na atualidade dos controles do século XXI, só não é mais triste, porque dificilmente passam de um século; somos limitados pelo tempo.

Mas, para além dessas existências, há quem não entre na roda dos controles (e consequentemente dos aplausos), ainda que em decorrência disso precise também enfrentar as autoridades da autoproclamada resistência progressista, premiada e parabenizada diariamente. Os que verdadeiramente destoam da marcha fúnebre das autoridades, caçados e perseguidos à exaustão, malditos e odiados, os expulsos, os "suicidados", os marcados para morrer, a esses desejo saúde e maravilhas indizíveis, inexprimíveis.

Não celebrando a marcha fúnebre das autoridades, e rindo da ideia de alguma sorte de comutador central ideológico, ou o instituir de uma instância de poder, essas potências, ainda que feridas, têm mais brilho que toda a história das autoridades; e isso, toda essa marcha não pode tolerar; não pode engolir.

O escrito selecionado de Étienne de La Boétie, sobre a servidão voluntária, ao indagar sobre essa estranha contradição de voluntariamente permutar a liberdade pela sujeição, recorda mais que apenas o poder triturador e adestrador dos governos, a partir dos hábitos reiterados, e de uma linguagem propícia aos controles; o jovem navega ainda mais, observando que além das asneiras da arte de governar, e sua versatilidade de técnicas bem sucedidas no controle e (re)produção de subjetividades, existe a grosseira contradição que compõe o título, sem a qual, o governo, como produção do poder inquestionável, simplesmente "não fecha".

Os equacionamentos, assim, não se devem apenas à arte de governar, e muito menos são compreendidos apenas com a compreensão da força bruta aplicada e/ou aplicável num determinado contexto; também constitui chave do assegurar dos controles o complacente e reativo reacionar dos seduzidos pela obediência; o reacionar dos que, sacrificando liberdades, ganham, em troca, servidão, a obediência,  aprendendo a gostar de tais coisas; gradativamente sendo adestrados com essa linguagem (os abolicionistas podem estabelecer relações evidentes com a linguagem-crime, diga-se de passagem; linguagem colonizadora fundamentada em controles e governos, não por acaso).

 Nas sociedades de controle, a convocação pela "participação" e "representação" alimenta as chamas da servidão voluntária; convidados capturados por um senso comum democrático (dentre coisas piores), dispostos a se submeterem e elegerem "o bom governo".

Quem abre mão da liberdade ganha algo no campo da servidão voluntária, o adestramento, a obediência, as linguagens totalizantes e de governo incidentes sobre si, o governado, produto final dessas relações de poder, adestrado a sentir-se mais tranquilo sem o "peso da liberdade"; subjetividades que, com os hábitos e o passar do tempo, bombardeadas por conteúdo repressivo, reafirmam tais conteúdos; indivíduos que aprendem a gostar dessa linguagem, desse conteúdo, naturalizando-o.

Os tiranos (em sentido mais amplo que nas definições rasteiras dos manuais e fichamentos de filosofia política) precisam de outros tiranos, precisam do apoio de algumas autoridades dispostas a tiranizarem; por detrás da autoridade central existe uma rede de tiranos e tiranias, bem como uma rede de energizadores de sua razão, de sua lógica e linguagem; razão de governo que acompanha razão de governado, que no limite até aprende a gostar de tal coisa, não imaginando outros mundos ou possibilidades para além da encarcerada imaginação permitida pelas correntes do instituído; correntes dos poderes estabelecidos.

Mas Étienne de La Boétie também nos brinda com dicas subversivas de abolir tais culturas repressivas e produções do poder (embora recuando em alguns pontos); ele nos recorda, com toda sua potência, que o conteúdo incorporado e cristalizado, naturalizado, também pode ser "desnaturalizado", desconstruído, demolido (sua simples existência constitui prova disso); abolir as culturas repressivas de si, reverter costumes e reinventar movimentações libertárias.

Quem cessa de oxigenar essas produções, contribui para suas dissoluções, sem a necessidade de banhos de sangue ou alguma sorte de projeto científico político-partidário implementado com planos ocupacionais de de controle; não!, apartado desses planos repressivos, pairam possibilidades libertárias não capturáveis, existências não domesticáveis, não adestradas, não incorporadas na triste marcha fúnebre de governantes e governados.

Tais dejetos sedimentados, produções do poder, com data e história: se podem ser incutidas, despertadas, ensinadas, afloradas, no insano ritmo de adestramento obediente aos governos, controles e capturas, hierarquias e autoridades. Tais aprendizados, tais linguagens, também podem ser significativamente suprimidas, dissipadas, dissolvidas, até abolidas, no oxigenar e energizar de outras linguagens não repressivas; reverberando (n)outras subjetividades.

Nessa esteira, Étienne de La Boétie expande os horizontes da imaginação, ativando complexidades e ressoando com a experimentação de liberdades e pensamentos que sobrepujam as limítrofes linhas pontilhadas da razão de Estado, da razão de governo, da razão e produção de autoridades e suas hierarquias; libera, ativa, atiça imaginações e máquinas desejantes libertárias, com sonhos e desejos maiores que o campo oficial das possibilidades do real instituído permite; campos forjados pelos limites do possível vendidos, campos artificiais forjados pelo temor das pessoas um dia dilacerarem as linhas falsificadas implementadas, vendidas como substância única do real designado, não por acaso, pelos poderes estabelecidos.

Sonhos e desejos (como sublinhado no surrealismo) para além dos sonhos e desejos "do príncipe", dos governos e autoridades de todos os tempos; além dos combos retóricos de legitimação envoltos em mentiras e tautologias capturadoras e massacradoras do possível; encarceradoras de possibilidades libertárias.

Étienne de La Boétie nos recorda que o campo do possível não se limita ao campo do instituído; não se limita às verdades dos poderes estabelecidos e suas cartografias oficiais da violência; cartografias do poder; não se limita às redes de saberes e poderes de um tempo.

A permuta desses sonhos, desejos e liberdades por fabricações de governos, adestramentos e imposições (diríamos, hoje, prisões), atrelada às máquinas (de)formadoras e trituradoras de subjetividades, não sobrevive sem o oxigênio da razão de governo e seu rebanho de devotos governados, adestrados obedientes ao próprio chicote, treinados a se encantarem e regozijarem-se com ele, sempre em busca de justificacionismos, num apego quase infinito a nele encontrarem pontos positivos.

Assim operam os treinados a tanto, adestrados nessa linguagem, como se embriagados estivessem; enfeitiçados; o poder como a pior droga, e a que mais vicia, sem dúvidas passa longe de ser um enunciado equivocado e trivial.

A arte de não ser governado, assim, não é apenas negativa, mas profundamente positiva, atrelada à produção do ingovernável (uma arte de vida, uma arte do viver); contra os hábitos domesticados e gélidos rostos gosmificados dos reativos de imaginação encarcerada, paira o indeterminável campo das liberdades e imaginações sublimes, potentes, subversivas, poeticamente incendiárias, devoradoras da fabricada tranquilidade oficialmente apresentada no campo da lei, da ordem e da moral;  produções de autoridades; produções do poder, produções repressivas.

A questão da servidão voluntária é bastante complexa; o equacionamento não fecha sem a naturalização e cristalização de culturas repressivas por parte dos governados; governados não podem ser blindados de críticas, imunizados; todavia, tampouco merecem ser sobremaneira alvejados, eis que são bombardeados com adestramentos extremamente poderosos, sendo, o mais comum, render-se às produções desses grandes fluxos, incorporando-os, naturalizando-os, tornando-se parte dos mesmos; e assim vislumbramos com a linguagem-crime.

Exemplificativamente, o sujeito punitivo naturalizador da linguagem-crime, não é necessariamente "o sujeito mau", mas também não é um ser sem vontade e desprovido de pensamento, programado como uma máquina; assim, ainda que bombardeado com essas linguagens desde criança, a equação não fecha sem essa fração que parte do indivíduo, de render-se às aludidas produções e programações.

Assim, Étienne de La Boétie nos recorda da quota de participação dos que voluntariamente servem, no limite até gostando dessa rendição ao poder, permutando suas liberdades por outras coisas; e aí estão questões difíceis, eis que esses são treinados e ensinados a desfrutarem dos sacrifícios, orgulhosos de suas correntes de ouro, não fechando as equações sem suas naturalizações e participações; Étienne é inconveniente aos que não desejam voltar olhares para si, eis que ataca as produções do poder, sem abrir mão do lembrete, de que uma quota de tudo isso ainda é nossa, ao celebrarmos nossas correntes de ouro. Grosso modo, parte dessa conta terrível é nossa. Somos parte dos cálculos do macabro, das equações dos poderes estabelecidos.

Em nota de rodapé na obra "Anarquismos e sociedade de controle", Passetti (2003, p. 101), sublinha que a inspiração para o escrito de Étienne de La Boétie sobre a contradição da servidão voluntária, veio de constatar que os habitantes da Ásia governados por um único senhor não pronunciavam o "não", como conta Montaigne[4], grande amigo a quem Étienne de La Boétie confiou sua produção intelectual.

É preciso aprender a dizer não às autoridades de cada tempo, não apenas à autoridade central do soberano, mas a cada autoridade que se crê governadora de alguma área e/ou âmbito jurisdicional, no controle de um ínfimo território, sobre o qual incidem seus tentáculos de autoridade, anunciando a morte de liberdades.

Mesmo a menor das autoridades locais de um microespaço tem o condão de anunciar tal morte de liberdades, sentindo-se incrível no exercício de seu apequenado poder. E, em tal ínfimo território sobre o qual incide sua influência, não seria estranho se o ego dessa minúscula autoridade, se assemelhasse à grandiosidade da imagem de um ofuscante deus.

As crianças percebem essas apequenadas figuras autoritárias que, nos microterritórios que governam, se veem grandiosas. E percebem nas ruas, nas creches e escolas, nas famílias, em todos os espaços, mas os adultos não lhes ouvem (!!!), não lhes dão razão (!!!). Já estão capturados por outras razões; pela razão de Estado, razão de governo, razão de morte das liberdades. Razão cínica.

Serão, muito possivelmente, essas crianças, as novas autoridades do futuro, repetindo um passado melancólico, imagens perdidas de vozes não ouvidas quando possuíam alguma potência mais vívida.

Étienne de La Boétie morreu cedo, mas sua potência não será perdida; ela atiça a nossa.

O tirano anula horizontalidades e celebra, no princípio da autoridade, seu poder verticalizado exercido; não deseja auto-organização, ação direta ou qualquer sopro de vida transgressor aos lindes das centralidades e universalidades instituídas; anseia, sim, movimentações previsíveis e capturadas dos governados, assegurando-se da manutenção (e mesmo expansão) de seus domínios e controles; seus poderes exercidos ligados a centralidades, representações repressivas. Segundo Étienne, suas conspirações não se escoram em amizades, mas em cumplicidades; apoiar-se-iam enquanto reciprocamente se temem (ainda que secretamente); a amizade é valiosa demais para Étienne, atrelada à estima mútua, e até entre ladrões deve existir mais confiança e amizade que acerca do tirano, eis que nem seus próprios favoritos nele podem confiar.

Nas sociedades de controle, a servidão voluntária não desapareceu, senão que se sedimentou em proporções dificilmente concebíveis no século XVI (ainda que por Étienne de La Boétie), sofisticando-se na produção planetarizada de culturas repressivas, estruturadas no princípio da autoridade e poder verticalizado; cristalizadas, naturalizadas, incorporadas; o que nos remete à produção de subjetividades, máquinas e corpos, linguagens, sonhos e desejos, imaginação.

Nas sociedades de controle, os tentáculos totalizantes estão em toda parte; estão dentro de nós. Somos nós.


Notas e Referências: 

[1] Étienne de La Boétie nasceu em 1530, três anos após a morte de Nicolau Maquiavel, com 58 anos. La Boétie morreu jovem, em 18 de agosto de 1563, com 33 anos, mas sua potência sobrevive, inspirando o pensamento libertário, bem como a atualidade dos anarquismos no século XXI, com profundidades que provocam e lanceiam esquerdas e direitas a apartarem-se das produções do poder, dissolvendo hierarquias e autoridades, dissipando as tentativas de absorção do único pelo totalizante campo do universal redimensionado pelas centralidades do presente. Contra as capturas do único, e contra uma concepção de coletividade que pouco se diferencia de um exército, saúde. Que as associações de únicos não sejam engolidas, e nem absorvam; que não sejam dotadas de planos ocupacionais de colonização e controle, e, principalmente, que não se destruam por uma suposta hegemonia das significações fantasmagórica. As perspectivas classicamente lidas como "individualistas" e "coletivistas" podem nutrir mais aproximações que o aparente pelo qual nossos olhos estão acostumados a captar; sobretudo em decorrência dos torpes limites dos cortes dogmáticos e suas artificialidades. Os únicos aludidos, respondem não às acepções totalizantes do único transcendental e autoritário do soberano, mas aos indivíduos interessados em experimentarem liberdades, sem um encarceramento hierárquico em relação a centralidades e universalidades que lhe seriam superiores: não! Aos poderes estabelecidos, hierarquias e autoridades, é preciso saber pronunciar o não.

[2] Antes de retornar às pessoas, Étienne muito destaca sobre os (outros) animais: "Alguns há que, dos maiores aos menores, ao serem presos, opõem resistência com as garras, os chifres, as patas e o bico, demonstrando assim claramente o quanto prezam a liberdade perdida. E uma vez no cativeiro, dão evidentes sinais do conhecimento que têm da sua desgraça e deixam ver perfeitamente que se sentem mais mortos do que vivos, continuando a viver mais para lamentarem a liberdade perdida do que por lhes agradar a servidão. O que quer dizer o elefante que, depois de se defender até mais não poder, sentindo-se impotente e prestes a ser apanhado, espeta as presas nas árvores e as quebra, assim mostrando o grande desejo que tem de continuar livre como nasceu? Assim dá a entender que deseja negociar com os caçadores, dando-lhes os dentes para que o soltem, entregando-lhes o marfim em penhor da liberdade. Começamos a domesticar o cavalo, desde o momento em que ele nasce, preparamo-lo para nos servir e não podemos glorificar-nos de que, uma vez domado, ele não morde o freio e não se empina quando o esporeamos, como se (assim parece) quisesse mostrar à natureza e testemunhar por essa forma que serve não de boa vontade mas por ser obrigado a servir. Que dizer perante isto? Que Até os bois sob o jugo andam gemendo. E na gaiola as aves vão chorando. (...) Todas as coisas que têm sentimento sentem a dor da sujeição e suspiram pela liberdade; as alimárias, feitas para servirem o homem não são capazes de se habituar à servidão sem protestarem desejos contrários. A que azar, pois, se deverá que o homem, livre por natureza, tenha perdido a memória da sua condição e o desejo de a ela regressar?" (p. 10); e mais a frente complementa  "a primeira razão da servidão voluntária é o hábito: provam-no os cavalos sem rabo que no princípio mordem o freio e acabam depois por brincar com ele; e os mesmos que se rebelavam contra a sela acabam por aceitar a albarda e usam muito ufanos e vaidosos os arreios que os apertam. Afirmam que sempre viveram na sujeição, que já os pais assim tinham vivido. Pensam que são obrigados a usar freio, provam-no com exemplos e com o fato de há muito serem propriedade daqueles que os tiranizam" (p. 15); retornando às pessoas, reflete: "a primeira razão que leva os homens a servirem de boamente é o terem nascidos e sido criados na servidão" (p.17); "O camponês e o artesão, embora servos, limitam-se a fazer o que lhes mandam e, feito isso, ficam quites. Os que giram em volta do tirano e mendigam seus favores, não se poderão limitar a fazer o que ele diz, têm de pensar o que ele deseja e, muitas vezes, para ele se dar por satisfeito, têm de lhe adivinhar os pensamentos. Não basta que lhe obedeçam, têm de lhe fazer todas as vontades, têm de se matar de trabalhar nos negócios dele, de ter os gostos que ele tem, de renunciar à sua própria pessoa e de se despojar do que a natureza lhes deu. Têm de se acautelar com o que dizem, com as mínimas palavras, os mínimos gestos, com o modo como olham; não têm olhos, nem pés, nem mãos, têm de consagrar tudo ao trabalho de espiar a vontade e descobrir os pensamentos do tirano. Será isto viver feliz? Será isto vida? Haverá no mundo coisa mais insuportável do que isto? (...) Haverá condição mais miserável do que viver assim, sem ter nada de seu, sujeitando a outrem a liberdade, o corpo, a vida?" (p. 26); "vêem o brilho dos tesouros do tirano e ficam olhando espantados para o fulgor das suas suntuosidades, deslumbrados com tanto esplendor; aproximam-se e não vêem que estão a atirar-se para o meio de uma fogueira que não tardará a consumi-los. O Sátiro indiscreto (reza a fábula), ao ver aceso o lume descoberto por Prometeu, achou-o tão belo que foi beijá-lo e se queimou. A borboleta que, esperando encontrar algum prazer, se atira ao fogo, vendo-o luzir, acaba por ser vítima de uma outra qualidade que o fogo tem: a de tudo queimar (diz o poeta lucano)." (p. 29).

[3] Se em Maquiavel a religião integra as equações de governo, explorada na arte de governar, em Étienne de La Boétie se percebe uma esquiva em lancear a abolição de tal ponto, reduzindo o alcance de suas formulações, o que não impede, claro, que seus intérpretes optem por ativar mais complexidades na extensão da abolição dos aludidos dejetos sedimentados, contra o anseio por castigos e produções do poder, prosseguindo com o olhar (também) para si; cobrindo, assim, mais aspectos integrantes e estruturantes de culturas repressivas, que veem, atualmente, na anarquia, um ressurgir do temor sempre cristalizado em cada autoridade adoradora de si. Étienne de La Boétie inverte o apontamento de Maquiavel, nos recordando que o tirano teme a todos. O tirano tem medo (e não me limito, por "tirano", às tipologias de alguns filósofos; não estamos presos na linguagem de Platão e Aristóteles (e nem na de Étienne, que celebra, sim, algumas autoridades).  Embora não coloque a religião no campo das culturas repressivas, a reflexiva produção avessa à governamentalidade de Étienne de La Boétie permite que sigamos repensando, como adiante fizeram libertários, com especial atenção à relação entre razão de Estado, Estado Moderno e religião, sobretudo acerca da inexistência de religião monoteísta dissociada de governo (em sentido amplo) e razão de Estado. O anseio de Étienne de La Boétie, de que certas autoridades sejam torturadas após a morte, sob coordenação divina, outra autoridade transcendental, não merece jamais ser positivamente exaltado, mas, considerando a historicidade, seria de fato surpreendente que um jovem no século XVI propiciasse mais essa grande ruptura, inclusive linguística, estendendo tais anseios às produções e doutrinas sacrificiais do (e ao) poder. A religião é um porto seguro de Étienne, como se esperaria mesmo de um pensador-demolidor no/do século XVI. Ainda assim, é impossível não se sentir um pouco decepcionado com seu desejo de castigo divino (escamoteado enquanto acepção de justiça universal). Felizmente, essa ruptura seria muitíssimo bem tensionada nos séculos subsequentes no pensamento libertário, sem perder de vista a mensagem de Étienne de La Boétie sobre sermos resolutos em não servir; pensando ainda com maior amplitude e abrangência que seu próprio emissor; é dizer, abrangendo mesmo os senhores das gaiolas de ouro e dos pomposos e sofisticados discursos legitimantes, estruturantes de culturas repressivas. Que os tesouros dos tiranos não nos ofusquem, não nos seduzam, não nos ceguem! Saúde.

[4] Há quem afirme que o escrito divulgado teve alguma interferência de Montaigne, mas isso não nos é possível afirmar/aferir. O indubitável, é que saber pronunciar o não também é preciso, para não ser governado e/ou violentado, explorado, (ab)usado, encarcerado em reificações e redes de poderes, capturas e violências. Que o presente ensaio suscite reflexões.

BOÉTIE, Étienne de La. Discurso sobre a Servidão Voluntária. Apresentação Cultura Brasileira. Publicações LCC Eletrônicas, 2004.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.

PASSETTI, Edson. Anarquismos e sociedade de controle. São Paulo: Cortez, 2003.

PIRES, Guilherme Moreira. Senso comum democrático: ensaio abolicionista contra a pureza do poder (parte 2). Empório do Direito, 2016. Disponível em: http://emporiododireito.com.br/senso-comum-democratico-ensaio-abolicionista-contra-a-pureza-do-poder-parte-2-por-guilherme-moreira-pires/ ISSN 2446-7405.

PIRES, Guilherme Moreira. Estado Moderno, Escolas e Universidades: conservação e aprimoramento da versatilidade dos controles no presente. Empório do Direito, 2016. Disponível em: http://emporiododireito.com.br/estado-moderno-escolas-e-universidades/ ISSN 2446-7405.


 

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