Rui Barbosa e a pós-eficácia das obrigações do seu tempo – Por Mauricio Mota

16/11/2016

A pós-eficácia das obrigações insere-se no âmbito da função integrativa da boa-fé objetiva como um dever lateral de lealdade. Deveres laterais são aqueles impostos pela boa-fé em vista do fim do contrato, mas não orientados para o interesse no cumprimento do dever principal de prestação.  Caracterizam-se por uma função auxiliar da realização do fim contratual e de proteção aos bens da outra parte contra os riscos de danos concomitantes. Servem o interesse na conservação dos bens que podem ser afetados sem conexão com contrato (Erhaltungsinteresse), independentemente do interesse no cumprimento[1].

Carlos Alberto da Mota Pinto esclarece que os deveres laterais de conduta inerentes à boa-fé são deveres funcionalizados ao fim do contrato e surgem e se superam no desenvolvimento da situação contratual como uma totalidade, autonomizando-se em relação ao dever de prestação principal para assegurarem o implemento do escopo do contrato:

“Não existindo esses deveres desde o início, em número e com um conteúdo fixo, dependendo o seu surgimento e a sua superação da situação material concreta, como emanações do princípio da boa-fé, segundo o fim do contrato, de um fim próprio, diverso do auxílio à consecução do interesse contratual e do impedimento de consequências laterais indesejáveis, surgem-nos segundo a sua essência, como algo de funcional, como elementos de um processo em desenvolvimento para um determinado fim. Nesse seu papel instrumental, não estão, todavia, isolados, antes a sua funcionalidade deve ser transposta para o quadro ou sistema que, em conexão com outros elementos (créditos, débitos, direitos potestativos, deveres acessórios, sujeições, ônus), que integram: a relação contratual. Com efeito, também esta, produto de uma conexão de elementos ligados por uma comunidade de direção final, deve ser caracterizada como um processo (PINTO, Carlos Alberto da Mota. Cessão de contrato. São Paulo: Saraiva, 1985, p. 289).

Tendo esses deveres laterais de conduta a função de auxílio à consecução do interesse contratual, como elementos de um processo orientado para um telos, eles podem subsistir mesmo após o cumprimento da prestação principal, o adimplemento da obrigação, como forma de assegurar que esta produza todas as consequências que poderiam ser legitimamente esperadas. Como descreve com maestria, Clóvis do Couto e Silva:

“Os deveres anexos dividem-se em deveres dependentes e independentes. Esse discrime tem seu fundamento na verificação que alguns deles são suscetíveis de ultrapassar o término da relação principal, de terem assim vida própria.

Em razão dessa particularidade, podem ser acionados independentemente da prestação principal. Em virtude de poderem ser acionados sem com isso acarretar o desfazimento da obrigação principal, é que se lhes denominou de deveres anexos independentes. Dependem, contudo, da obrigação principal para seu nascimento, podendo, porém, como já se mencionou, perdurar ainda depois do cumprimento daquela. As obrigações anexas dependentes são consideradas pertenças das obrigações principais. O seu descumprimento acarretará também o do dever principal. Por esse motivo, não tem acionabilidade própria. Entre os deveres que permanecem, mesmo depois de extinção da relação principal, pode ser mencionado o dever do sócio que se retira de uma sociedade, que tem em consequência, extinto seu vínculo jurídico, de evitar de prejudicar com a sua atividade o funcionamento da sociedade de que participou, revelando circunstâncias que só podia conhecer em razão de sua qualidade de sócio. Outro exemplo é o dever de empregado que, nessa qualidade, tomou conhecimento de alguma circunstância relevante, como um segredo de fabricação, de não levá-lo ao conhecimento, por exemplo, de uma firma concorrente, mesmo depois de haver sido despedido. Alguns desses deveres são, inclusive, objeto de normação específica, como, por exemplo, o de guardar sigilo, dos médicos e advogados, que perdura ainda depois de cumprida a obrigação principal.

As particularidades desses deveres anexos e autônomos, de poderem ser acionados independentemente da obrigação principal e de perdurarem alguns deles, ainda, após o seu término, é a circunstância de terem fim próprio, diverso da obrigação principal. Como já se aludiu, o fim comanda toda a relação jurídica e conforma os deveres e direitos que a relação jurídica produz em contato com a realidade social, no curso de seu desenvolvimento” (SILVA, Clóvis Veríssimo do Couto e. A obrigação como processo. São Paulo: Bushatsky, 1976, p. 118-119).

A pós-eficácia das obrigações constitui portanto um dever lateral de conduta de lealdade, no sentido de que a boa-fé exige, segundo as circunstâncias, que os contratantes, depois do término da relação contratual, omitam toda conduta mediante a qual a outra parte se veria despojada das vantagens oferecidas pelo contrato[2]. Esses deveres laterais de lealdade se consubstancializam primordialmente em deveres de reserva quanto ao contrato concluído, deveres de segredo dos fatos conhecidos em função da participação na relação contratual e deveres de garantia da fruição pela contraparte do resultado do contrato concluído.

O instituto da pós-eficácia das obrigações ou culpa post pactum finitum (c.p.p.f.) nasceu na jurisprudência alemã da década de 20. Em 26 de setembro de 1925, o Reichsgericht (RG) decidiu que depois de consumada uma cessão de créditos, o cedente continua obrigado a não tolher a posição do cessionário[3]. Em 3 de fevereiro de 1926, o referido Tribunal deu novo alento à essa doutrina ao prever que, expirado um contrato de edição, o titular do direito de publicação fica obrigado a não fazer novas edições antes de esgotadas as anteriores[4].

O Tribunal Federal alemão – BGH (Bundesgerichtshof), instância suprema da justiça ordinária, decidiu em 1956 que num contrato de prestação de serviços, o credor da prestação de serviço que denuncia o contrato por suspeita fundamentada de comportamento criminoso da outra parte, se desfeita por esta a suspeita ou mesmo provada a ausência de culpa, pode ser obrigado a dar-lhe outra vez ocupação[5].

O mesmo BGH (Bundesgerichtshof) decidiu de maneira análoga em 1955. Versava o caso sobre uma fábrica de casacos de senhora que encarregou um indivíduo, trabalhando autonomamente, de fazer um modelo segundo um desenho e, posteriormente, de fabricar uma série de casacos concebidos com base no referido desenho. Do contrato celebrado não havia qualquer cláusula de exclusividade, seja para o desenho dos modelos, seja para os casacos prontos. O referido indivíduo ofereceu em seguida a um concorrente daquela fábrica o mesmo modelo de casaco por ele preparado segundo o desenho. O Tribunal considerou que a venda do modelo, logo a seguir, para empresa concorrente, viola o dever de lealdade contratual, porque, segundo o princípio da boa-fé, impede a contraparte de auferir o resultado legítimo e esperado do contrato[6].

No Brasil, a solução da questão jurídica da pós-eficácia das obrigações mantinha-se obstaculizada no direito civil pela hipertrofia da noção de autonomia privada. Entendia-se, tradicionalmente, que somente poderiam vincular as partes aquelas deliberações expressamente consentidas pelas mesmas e expressas no contrato. Quando muito, poderia se admitir também uma vinculação jurídica naquelas manifestações que, embora não constantes do instrumento contratual, decorressem necessariamente da natureza do contrato.

Um caso paradigmático dessa forma clássica de entendimento da questão da pós-eficácia das obrigações foi o que defrontou como advogados, no início do século XX, dois bastiões das letras jurídicas nacionais: Rui Barbosa e J. X. Carvalho de Mendonça.

Versava este sobre um acordo negocial realizado em 09-09-1907 entre o conde Álvares Penteado, e os industriais Jorge Street, Ildefonso Dutra e Alexandre Leslie, cujo objeto era fundir numa só as fábricas Sant´ana, São João e Santa Luzia, constituindo, para esse efeito, uma sociedade anônima, cujo patrimônio consistiria nesses estabelecimentos.

O conde Álvares Penteado e sua mulher alienaram à nova sociedade, Companhia Nacional de Tecidos de Juta, a sua Fábrica de Juta Sant´ana, na cidade de São Paulo, no bairro da Moóca, pelo valor global de 10.500 contos de réis, sendo 7.500 contos de réis concernentes aos bens componentes da fábrica e 3.000 contos de réis referentes à posição por ela conquistada no mercado com o prestígio e tirocínio negocial do conde Álvares Penteado.

Um ano depois da alienação da fábrica, o conde funda nova fábrica, a Companhia Paulista de Aniagens, no mesmo bairro da fábrica Sant´ana, com o mesmo ramo industrial.

A Companhia Nacional de Tecidos de Juta intenta, então, ação contra Álvares Penteado e a Companhia Paulista de Aniagens, argumentando que a mesma destinava-se ao intento manifesto e doloso de fazer concorrência aos produtos da autora. Deveriam assim os réus restituírem os 3.000 contos de réis correspondentes à estimativa da posição e freguesia da fábrica alienada e mais as perdas e danos e os juros de mora.

Argumentou a autora que os que contribuem com determinada coisa, ainda que incorpórea, com bens de qualquer natureza para a formação do capital das sociedades anônimas, não os podem retomar ou subtrair no todo ou em parte, devendo, ao revés, assegurar-lhe o senhorio, gozo e posse, pelas mesmas regras analógicas do artigo 215 do Código Comercial, que obriga um vendedor para com o comprador nos casos de perda por ação ou moléstia, causada por fato próprio ou de terceiros.

A autora perdeu em primeira instância. A sentença considerou que a freguesia não foi objeto da escritura pela qual a Companhia de Juta adquiriu a fábrica Sant´ana e suas dependências, nem os peritos, ao avaliar os bens da fábrica para constituição da Companhia, destacaram a sua posição e clientela com o valor distinto e autônomo, senão que a tomaram em consideração para fixarem o preço global dos bens da usina.

Considerou a sentença que da escritura não consta cláusula ou condição de não poderem os alienantes se restabelecer com indústria similar e, na ausência de cláusula restritiva, não é lícito concluir que tal restrição seja inerente à sua obrigação negativa de não perturbar a posse da compradora ou cessionária. Também aduziu que, ao caso, não tem absolutamente aplicação os artigos 214 e 215 do Código de Comércio. Não se presume a renúncia de direito ao exercício de determinado ramo do comércio ou indústria; a renúncia deve ser expressa ou resultar de modo inequívoco dos termos contratuais, a fim de que não prevaleça contra o princípio soberano da livre concorrência. Argumentou que, se na inteligência dos contratos mercantis podemos, conforme seus termos, presumi-la na hipótese em que a freguesia é atraída pelo local do estabelecimento comercial ou pelas relações pessoais do comerciante, devemos ao contrário excluí-la, tratando-se de estabelecimento industrial, em que a especulação versa sobre a transformação operada na matéria prima, fixada a clientela por motivo da natureza especial do produto.

Considerou ainda a sentença que, se tivesse havido renúncia ou se fosse permitido presumi-la, ela só poderia ser entendida com limitação de tempo, lugar e objeto de acordo com a jurisprudência dos povos cultos, preferentemente a americana e inglesa[7].

A Companhia de Tecidos de Juta apelou e obteve o provimento da apelação no Supremo Tribunal Federal. Foram, em síntese, três os argumentos utilizados:

1) havendo os peritos, ao avaliarem os bens constitutivos da fábrica Sant´ana alienados à Companhia de Juta, incluído na avaliação a posição conquistada pela fábrica graças ao prestígio de seu chefe e à sua freguesia certa e escolhida, torna-se evidente que, na transmissão de bens da fábrica à Companhia, envolveu-se a clientela daquela;

2) na conformidade da doutrina e da jurisprudência dos povos cultos, está o transmitente sujeito à obrigação da garantia imposta ao vendedor pelos artigos 209, 214 e 215 do Código de Comércio contra turbação por fato de terceiro da posse e domínio da coisa vendida, e mais ainda quando por fato próprio;

3) estabelecendo-se com idêntico negócio, na mesma paragem, dentro do raio de ação da Companhia, quebrantou o conde a obrigação a que estava adstrito, devendo por isso compor as perdas e danos consequentes[8].

Coube então a Rui Barbosa embargar o Acórdão do Supremo Tribunal Federal. Rui elaborou um enorme arrazoado de 300 páginas com os seguintes argumentos principais:

1) na constituição da sociedade anônima Companhia Nacional de Tecidos de Juta, seu capital só se constituiu de imóveis, sem inclusão explícita ou implícita da clientela da fábrica Sant´ana ou mesmo simples referência à ela;

2) na avaliação preliminar da fábrica Sant´ana, que constituiu o capital da nova sociedade anônima, não incluíram os peritos a clientela, a qual tomaram apenas como elemento atestatório de sua reputação e justificativa do preço que deram à usina em seu conjunto;

3) desde que no cômputo do capital não se incluiu a clientela, é óbvio que o conde Álvares Penteado e seus parentes não a transferiram, nem se obrigaram a não restabelecer-se;

4) não se presume na cessão de estabelecimento comercial ou industrial a renúncia, da parte do cedente, ao direito de restabelecer-se com estabelecimento similar; esta renúncia deve ser expressa ou resultar de modo inequívoco dos termos do contrato, a fim de que não prevaleça contra o princípio soberano da livre concorrência;

5) não é verdadeira a doutrina de Aubry e Rau e de alguns escritores que lhes repetem a lição, de que na alienação de um fonds de commerce (fundo ou estabelecimento de comércio) se entende implícita a cessão do achalandage (clientela) e, como consequência desta, a interdição ao vendedor, ao menos em data próxima à venda, de abrir na vizinhança outro estabelecimento da mesma natureza; a boa doutrina, na torrente dos intérpretes e de da jurisprudência, é exatamente a oposta;

6) dado, entretanto, que não existisse diferença entre casas de comércio e fábricas e que na hipótese ocorresse expressamente ou se admitisse por inferência necessária cláusula obstatória de restabelecimento, ela seria nula, por irrestrita quanto ao tempo e quanto ao lugar;

7) pelo sistema britânico e americano, mais severo que o continental, são irritas e nulas, além das absolutas, até as próprias limitações restritas só ao tempo ou só ao espaço, se desarrazoadas e anormais;

8) pelo sistema continental, são absolutamente nulas as cláusulas ou convenção que encerrarem interdição de liberdade comercial ou industrial, ilimitada no tempo, no espaço e no objeto[9].

O Supremo Tribunal Federal acatou os embargos de Rui Barbosa, julgando improcedente a ação da Companhia, sob o fundamento de que não havendo no contrato compromisso expresso de cessão de clientela, não caberia se falar em direito a ressarcimento. Votaram vencidos os Ministros Pedro Lessa, Guimarães Natal e Godofredo Cunha.

Interessa ao nosso tema de pós-eficácia das obrigações daquele tempo considerar os fundamentos da decisão e verificar os pressupostos que a informaram, sobretudo, a concepção de autonomia privada então reinante.

Inicialmente, cabe considerar que o problema em apreço envolvia uma questão fática que não interessa aqui abordar: a de se verificar se o contrato envolvia concretamente uma cessão de clientela ou se foram exclusivamente alienados máquinas e equipamentos e um valor imaterial constituído pelo prestígio que o conde granjeou para o estabelecimento.

O âmago jurídico do caso era o de se saber se a cessão de clientela podia ser considerada implícita na natureza do negócio avençado (venda de fundo ou estabelecimento industrial) e se, sendo positiva a resposta, isso implicava no dever pós-eficaz ao cumprimento da obrigação principal (compra e venda) de renúncia da parte do cedente ao direito de restabelecer-se com estabelecimento similar. Uma questão relevante, ainda levantada, era a de saber se tal dever pós-eficaz sofreria restrições quanto ao tempo e quanto ao lugar.

O advogado da embargada, J. X. Carvalho de Mendonça, argumentou com denodo que a obrigação de garantia da coisa vendida era ínsita à natureza do contrato de compra e venda de estabelecimento comercial, norma de ordem pública, e assim não poderia ser renunciada no próprio contrato. Importava isso na proibição do vendedor de restabelecer-se com o mesmo ramo de indústria, dentro do mesmo raio de ação da empresa vendida:

“aqueles que contribuem com coisa certa e determinada, ainda que  incorpórea, para o capital das sociedades anônimas transferem-na a essas sociedades e assumem pleno iure a obrigação de garantir o gozo pacífico e a posse dessa coisa, respondendo, conforme as mesmas regras que obrigam o vendedor para com o comprador nos casos de moléstia ou turbação, causadas pelo fato pessoal do próprio vendedor.

O artigo 214 do Código Comercial, invocado no venerando acórdão embargado dispõe: o vendedor é obrigado a fazer boa ao comprador a coisa vendida, ainda que nos contratos estipule que não fica sujeito a responsabilidade algum. A obrigação de garantia é de rigor, é essencial, não precisa ser estipulada no contrato, porque decorre legal e naturalmente deste, porque é uma obrigação de ordem pública que não pode ser renunciada no próprio contrato.

(..) Importava isso na obrigação de Álvares Penteado não se restabelecer, direta ou indiretamente, com um mesmo ramo de indústria, dentro do mesmo raio de ação da sua sucessora. Era essa a zona proibida, para evitar a concorrência, que inquietava a sucessora no gozo do bem incorpóreo, do elemento que vivificava o seu estabelecimento e permitia colher o resultado das suas funções” (BARBOSA, Rui. op. cit., p. 341).

Combatia Rui Barbosa com veemência tal assertiva, afirmando a absoluta vinculação do negócio jurídico ao que estivesse disposto no instrumento contratual. Para Rui, somente através de convenção especial expressa no contrato o vendedor poderia renunciar a não explorar o mesmo negócio em outro estabelecimento. Só o contrato, como veículo da autonomia privada, poderia criar tal obrigação, no entendimento do jurista baiano:

“na ausência da cláusula expressa, onde se convencione a interdição, ao cedente, de exercer negócio semelhante ao do estabelecimento comercial cedido, a cessão de um fonds de commerce não impõe necessariamente ao alienante essa interdição.

(..) ou argumentando com a jurisprudência francesa: na ausência de uma cláusula expressa, onde o vendedor de um estabelecimento comercial estipule a interdição de se restabelecer com comércio similar, a alienação do estabelecimento, ainda mesmo com a clientela, não acarreta necessariamente, para o vendedor, tal interdição” (BARBOSA, Rui. op. cit., p. 329-330).

Rui, no entanto, tinha razão quando argumentava que a obrigação de não restabelecer-se, se fosse considerada implícita ao negócio avençado, não poderia ser ilimitada quanto ao tempo e ao espaço. Não obstante o acerto desse argumento, o mesmo não tinha a consequência jurídica que ele procurava emprestar-lhe: tornar nula e írrita tal obrigação desmesurada. Caberia ao juiz, na interpretação da convenção e no sopesamento dos fatos na subsunção, adequar o dever de garantia aos seus limites temporais (a fruição dos resultados da coisa vendida expressa na consolidação do negócio) e espaciais (o raio de atuação imediato do negócio vendido). Percebe-se com nitidez as limitações que o dogma da autonomia privada, tal como era entendido nesse período, impõe ao debate.

O fato em questão era que o conde Álvares Penteado havia vendido sua fábrica (com ou sem cessão de clientela, não importa) e, logo a seguir, após um ano, inaugura nova fábrica no mesmo local (o bairro da Moóca), com o mesmo ramo de indústria. Era evidente, ao contrário do que sustentava Rui, que o conde estava a descumprir um dever de garantia do negócio realizado, qual seja: o de omitir toda conduta mediante a qual a outra parte se veria despojada ou veria essencialmente reduzidas as vantagens oferecidas pelo contrato[10].

Entretanto, a hipóstase da autonomia privada, do contrato expresso como única fonte legítima de convenções vinculantes para as partes, levou o debate a desviar-se do dever de garantia do resultado do negócio avençado, para a discussão acerca da existência ou não de cessão de clientela implícita numa compra e venda mercantil. A própria argumentação do advogado da embargada, J. X. Carvalho de Mendonça, enredou-se nessa trama ao sustentar como alegação principal o caráter implícito da cessão de clientela na compra e venda mercantil e não o dever de garantia, referido aos artigos 214 e 215 do Código Comercial.

Registre-se que, mesmo naquele período, a solução da lide, com a garantia expressa do resultado (a fruição pelo comprador) do negócio realizado, era possível com o recurso à legislação então vigente e foi mesmo ventilada na doutrina constante nos autos.

O Código Comercial de 1850 expressamente dispunha em seu art. 131, I, que:

“Art. 131 – Sendo necessário interpretar as cláusulas do contrato, a interpretação, além das regras sobreditas, será regulada nas seguintes bases:

1. a inteligência simples e adequada, que for mais conforme a boa-fé, e ao verdadeiro espírito e natureza do contrato, deverá sempre prevalecer à rigorosa e restrita significação das palavras”.

Constituía portanto a boa-fé, já naquela época, cláusula geral de interpretação dos contratos, impondo a inteligência destes em adequação com os seus ditames. O contrato de compra e venda mercantil de estabelecimento fabril, não sendo negócio iminentemente personalista (fundado nos contatos pessoais do comerciante), consiste fundamentalmente na transferência e consequentemente na garantia da clientela e da posição do estabelecimento. As mercadorias têm um valor secundário, servindo apenas para facilitar a continuação e o sortimento do negócio. Assim, a interpretação do contrato, em conformidade com a boa-fé e em atenção ao verdadeiro espírito e natureza do contrato, só poderia ser a de que o dever de garantia da fruição do resultado do negócio era ínsito ao próprio contrato, sendo vedado deste modo ao vendedor estabelecer-se com igual ramo de indústria, no mesmo raio de ação (o bairro da Moóca), do estabelecimento vendido.

A mesma solução se encontra no corpo dos autos judiciais do processo Álvares Penteado/Companhia Nacional de Tecidos de Juta, numa decisão de 28 de agosto de 1843 da Corte de Apelação de Lyon, colhida na doutrina clássica de Aubry e Rau. Ensinam estes, fundados na decisão, que, na alienação de um fonds de commerce (fundo ou estabelecimento de comércio) se entende implícita a cessão do achalandage (clientela) e, como consequência desta, uma vez que os contratos devem ser executados de boa-fé, a interdição ao vendedor, ao menos em data próxima à venda, de abrir na vizinhança outro estabelecimento da mesma natureza. Como se expressa na referida decisão judicial: 

“Considerando que os contratos devem se executar de boa-fé;

Considerando que, posto contrato celebrado entre as duas partes não contenha nenhuma estipulação expressa, pela qual se privasse Moisset de exercer, na cidade de Roanne, a profissão de cafeteiro, todavia, se lhe apraz exercê-la depois da venda que fêz a Rollin, não deixa de ser obrigado a não o perturbar na legítima posse do seu contrato;

Considerando que, com estabelecer outro café, imediatamente vizinho ao que cederam a Rollin, lhe causa à sua posse Moisset uma turbação real e evidente, pois esse novo estabelecimento deve ter, inevitavelmente, como resultado atrair assim uma porção mais ou menos considerável dos fregueses do estabelecimento vendido;

Considerando, enfim, que a circunstância, invocada por Moisset, de que, na ocasião da sua venda a Rollin, explorava o vendedor o Café Helvético, circunstância por onde bem se avisava a Rollin de não renunciar Moisset a esse gênero de indústria, longe de combater a pretensão do autor, milita, pelo contrário, em seu apoio, visto como daí devia coligir ele que o vendedor se ateria ao estabelecimento do Café Helvético, e não viria fundar outro na vizinhança do que cedera e era situado em bairro diverso.

Assim, damos provimento ao pedido do Autor” (D. 49,2. 14, nota) (AUBRY e RAU. Cours de droit civil français. tome V. 5. ed. Paris: Librairie Générale de Jurisprudence, 1907, § 355, p. 76).

A Corte de Apelação de Lyon nada mais fez nessa decisão do que aplicar o art. 1134 do Código Napoleão que estabelecia que as convenções legalmente formadas devem ser executadas de boa-fé:

“Art. 1134.  As convenções legalmente formadas têm força de lei entre àqueles que as fizeram.

Elas não podem ser revogadas senão pelo consentimento mútuo ou por causas que a lei autorize.

Elas devem ser executadas de boa-fé” (tradução livre).

Embora, no entendimento então dominante, o juiz estivesse jungido à convenção do mesmo modo como estaria pela própria lei, não podendo modificá-la em nome da equidade, ele tinha, entretanto, um poder soberano de interpretá-la, sob a condição de não desnaturá-la. Foi o que fez a Corte de Lyon ao estabelecer que, considerando que os contratos devem ser executados de boa-fé, o vendedor do estabelecimento tinha para com o comprador um dever de garantia do resultado da coisa vendida (a cessão da clientela) e, deste modo, estava obrigado a não se restabelecer na vizinhança com o mesmo ramo de negócio.

A relevância do dever de garantia do vendedor para com o comprador do resultado da coisa vendida (a fruição sem obstáculo das vantagens do negócio) se encontra de maneira expressa no brilhante voto vencido do Ministro Pedro Lessa:

“Em primeiro lugar repetirei a lição de Vivante, uma das maiores autoridades na matéria, senão a maior de todas, é exatamente a que resumi:

Ceder um estabelecimento comercial importa, pois em tese, salvo estipulação contrária, na transferência e consequentemente na garantia da clientela e da posição do estabelecimento.

As mercadorias têm um valor secundário, servindo apenas para facilitar a continuação e o sortimento do negócio.

Logo depois afirma o exímio jurisconsulto que na compra e venda de um fonds de commerce tudo se concentra na freguesia, e a solução da doutrina e da jurisprudência é que o vendedor que garante as coisas vendidas, também garante a clientela, que é uma das coisas vendidas: ‘Tout converge donc vers l´achalandage, il en faut conclure; et telle est la solution adoptée par la jurisprudence et la doctrine, que le vendeur qui doit garantie des choses vendues, doit garantie de la clientéle, chose vendue’.

(..) Foi por tudo isso que eu julguei a apelação, declarando que a freguesia estava cedida e Penteado era obrigado a respeitá-la, não podendo restabelecer-se de novo com fábrica da mesma espécie” (LESSA, Pedro. Debate e julgamento no Supremo Tribunal Federal da Apelação Cível nº 2183. Sessão de 12 de agosto de 1914. in: BARBOSA, Rui. As cessões de clientela e a interdição de concorrência nas alienações de estabelecimentos comerciais e industriais. Obras Completas de Rui Barbosa. Vol. XL. Tomo I. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1948, p. 355-369, passim.).

O Ministro Pedro Lessa, no entanto, restou vencido nessa discussão. O dogma da autonomia privada preponderou para centrar a discussão unicamente no instrumento contratual e se neste se poderia considerar implícita, com a compra e venda mercantil, a cessão da clientela. A solução finalmente triunfante foi a de que, sem uma menção expressa no contrato, não se poderia considerar a clientela como cedida e que, portanto, o vendedor poderia se restabelecer na mesma localidade (Moóca), com o mesmo ramo de indústria.

Concluindo, resplandece evidente de toda essa discussão do famoso caso judicial do início do século XX a natureza juscultural da boa-fé. Enquanto a autonomia privada foi encarada como um dogma inexpugnável, que toda vinculação jurídica decorria única e exclusivamente da vontade expressa das partes, a compreensão das obrigações como uma totalidade informada pela idéia de boa-fé não pôde estabelecer-se com firmeza.

A simples existência de uma cláusula geral de boa-fé ou seu reconhecimento pela doutrina é absolutamente insuficiente para consolidar a boa-fé como um instituto jurídico atuante, dada sua natureza iminentemente juscultural, isto é, conectada umbilicalmente à uma concepção solidarista de direito e à uma referência totalizante da realidade jurídica.

Deste modo, é somente com a superação do conceitualismo e com a crise da concepção positivista do direito, sobretudo a partir do fim da Segunda Guerra Mundial, que a boa-fé, na sua acepção objetiva, como norma de correção e lealdade no vínculo obrigacional, assume foros de realidade como instituto jurídico verdadeiramente aplicado.


Notas e Referências:

[1] PINTO, Carlos Alberto da Mota. Cessão de contrato. São Paulo : Saraiva, 1985, p. 281.

[2] LARENZ, Karl . Derecho de obligaciones.  v. 1. Madri: Revista de Derecho Privado, 1958, p. 156.

[3] RGZ 111 (1926), 298-305. “Da particularidade de um contrato (negócio causal) dirigido à venda de um crédito (ou de outro direito) deriva como obrigação do vendedor pela qual, para além do cumprimento imediato – através da cessão efetuada – ele ainda permanece contratualmente responsável, no âmbito do prosseguimento de uma pretensão de cedência”. apud CORDEIRO, Antonio Menezes. Da pós-eficácia das obrigações. Estudos de direito civil. Vol. I. Coimbra : Almedina, 1991, p. 148.

[4] RGZ 113 (1926), 70-78. “Este contrato foi cumprido de ambos os lados (..). Só que também depois do cumprimento, segundo o dever de lealdade derivado dos usos do tráfico dominado pela boa-fé e da própria essência do contrato de prestação de serviços podem continuar a existir vinculações. A elas pertence (..) no contrato de publicação, a vinculação do titular de não fazer concorrência ao editor”. apud CORDEIRO, Antonio Menezes. Da pós-eficácia das obrigações. Estudos de direito civil. Vol. I. Coimbra : Almedina, 1991, p. 148.

[5] NJW, 1956, p. 1513. “Afirma o tribunal que negar ao despedido, possivelmente sem culpa, em todos os casos, a possibilidade de readmissão, significaria grande iniqüidade e que esta obrigação de readmitir é um efeito ulterior do vínculo contratual (Nachwirkung), simétrico da responsabilidade pré-contratual. A persistência dum dever jurídico de adotar um certo comportamento, conforme a boa-fé, depois da própria prestação contratual, visto ser reconhecida, sempre segundo a sentença, na doutrina e na jurisprudência, mesmo para os casos de troca de mercadorias, deveria, por maioria de razâo, ter lugar também na prestação de serviços, onde, aliás, a jurisprudência teria já reconhecido também deveres recíprocos de fidelidade e, do lado do credor do serviço, um dever de assegurar a subsistência da contraparte” . apud PINTO, Carlos Alberto da Mota. Cessão de contrato. São Paulo : Saraiva, 1985, p. 281.

[6]BGHZ 16 (1955) 4-12 (4-5). apud CORDEIRO, Antonio Menezes. Da pós-eficácia das obrigações. Estudos de direito civil. Vol. I. Coimbra : Almedina, 1991, p. 144.

[7] BARBOSA, Rui. As cessões de clientela e a interdição de concorrência nas alienações de estabelecimentos comerciais e industriais. Obras Completas de Rui Barbosa. Vol. XL. Tomo I. Rio de Janeiro : Ministério da Educação e Saúde, 1948, p. XI-XIII.

[8] Ibidem, p. XIV.

[9] Ibidem, p. XXIX-XXXII.

[10] LARENZ,Karl. Derecho de obligaciones. v. I. op. cit. p. 156.


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